"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

domingo, 9 de outubro de 2011

A peste

Dizem que quando os dois estavam chegando a Nova York, na amurada do navio, Freud virou-se para Jung e perguntou:— Será que eles sabem que nós estamos trazendo a peste? Não sei se a história, que li num texto do Stephen Greenblatt publicado recentemente na revista "The New Yorker", é verdadeira. Nem sei se Freud e Jung estiveram juntos em Nova York algum dia. Mas o que Freud pretenderia dizer com "a peste" é fácil de entender. Era tudo que os dois estavam explorando em matéria de subconsciente, inconsciente coletivo, sexualidade precoce — enfim, a revolução no pensamento humano que na Europa já se alastrava, e era combatida, como uma epidemia. Os agentes alfandegários não teriam identificado o perigo que os dois recém-chegados representavam para as mentes da América, deixando-os passar para contagiá-las. Todo desafio ao pensamento convencional e a crenças arraigadas é uma espécie de praga solapadora, uma ameaça à normalidade e à saúde publicas. Santo Agostinho dizia que a curiosidade era uma doença. Os que procuravam explicações para o Universo e a vida além dos dogmas da Igreja ou da ciência tradicional eram portadores do vírus da discórdia, a serem espantados como se espanta qualquer praga, com barulho e fogo. As ideias de Freud e de Jung divergiram — Jung acabou derivando para um quase misticismo, literariamente mais rico, mas menos consequente do que o que pensava Freud — mas as descobertas dos dois significaram uma reviravolta no autoconceito da humanidade comparável ao que significaram o heliocentrismo de Copérnico e as sacadas do Galileu. O homem não só não era o centro do Universo conhecido como carregava dentro de si um Universo desconhecido, que mal controlava. Agostinho tinha razão, a curiosidade debilitava o homem. A partir de Copérnico a curiosidade só levara o homem a ir desvendando, pouco a pouco, sua própria precariedade, cada vez mais longe de Deus. Marx, outro pestilento, tinha proposto o determinismo histórico e a luta de classes como eventuais formadores do Novo Homem, livre da superstição religiosa e de outras tiranias. Suas idéias, e a reação às suas idéias, convulsionaram o mundo. Esta peste se disseminou com violência e foi combatida com sangrias e rezas e no fim — como também é próprio das pestes — amainou. Todas as pestes chegam ao seu máximo e recuam. A Terra há séculos não é o centro do Universo, o que não impede o prestigio crescente da astrologia. O iluminismo do século dezoito parecia ser o preâmbulo de um futuro racional e prevaleceu o irracionalismo. O Novo Homem de Marx foi visto pela última vez pulando o muro para Berlim Ocidental. E as teses de Freud e Jung que revolucionariam as relações humanas nunca foram aplicadas nas relações que interessam, a do homem com seus instintos e a dos seus instintos com uma sociedade sadia, e na nossa explicação. Foi, como as outras, uma novidade, ou uma curiosidade, que expirou. Mas também é próprio das pestes serem reincidentes. Cedo ou tarde virá outra perturbar a paz da ignorância de Santo Agostinho. E passar.

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