"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

domingo, 29 de janeiro de 2012

NOTAS SOBRE A CRACOLÂNDIA

Alguns amigos, que perdem seu tempo lendo estas linhas, pediram que eu me posicionasse sobre a operação policial que tenta acabar com a cracolândia de São Paulo.
Aqui vão três posicionamentos. 1) Sou contra violência e abusos repressivos (em tese, o governo também é). 2) Com ou sem internações não voluntárias, com ou sem a boa vontade de ONGs e igrejas, só uma ínfima parte dos drogados desistirá do crack e da errância pelas ruas da cidade. 3) E enfim, em tese, sou a favor do projeto de acabar com a cracolândia, mas não me orgulho disso, por duas razões: a primeira é que tenho carinho pelas sarjetas urbanas e ainda sinto falta da Times Square de Nova York nos anos 1990; a segunda pede uma explicação mais longa.
A operação cracolândia e o debate que a acompanha na imprensa ilustram as dificuldades do poder na modernidade. Num dos seus melhores seminários (o de 1975, "Os Anormais", Martins Fontes), Foucault mostra que esse poder oscila entre dois modelos: o da lepra e o da peste. Os diferentes e infratores podem ser retirados da circulação, fechados na prisão, na colônia agrícola, no antigo asilo.
Esse é o modelo adotado para a lepra; ele segrega no lazareto. Mas, às vezes, os diferentes e infratores, muito numerosos, espalham-se pelo tecido social de forma que sua segregação seria improvável. É o que acontecia no caso da peste.
Os contaminados, então, não eram fechados em lazaretos afastados, mas a cidade era dividida em quadras, que eram vigiadas por, digamos, agentes sanitários: os doentes eram proibidos de deixar seu domicílio, e o governo administrava a vida (e a morte) deles dentro de suas próprias casas.
O modelo da peste tinha duas vantagens: ele permitia gerir intimamente a vida concreta das pessoas, e sua motivação aparente era nobre: "curá-las". Por isso, aliás, ele contaminou o modelo da lepra: quase não há mais detenção (modelo da lepra) que não cultive a ilusão de que ela será, para o detento, uma ocasião de redenção ou de cura (modelo da peste).
Hoje, podemos ser infratores e incômodos, mas raramente somos "ruins" e irrecuperáveis: seremos emendados pelos bons cuidados da sociedade, pois, de fato, éramos (ou melhor, estávamos) apenas "doentes". Será que este modelo nos deixa mais livres? Engano. Atrás da face indulgente do poder que se inspira no modelo da peste (o infrator estava doente, não fez por querer, está "desculpado"), esconde-se uma face especialmente tirânica: qualquer ato dissonante é reconhecido não como fruto de rebeldia ou originalidade, mas como efeito de uma patologia. Você é contra? Você é diferente? Pois bem, você está doente. Não há mais dissenso - só enfermos e loucos.
Voltemos à cracolândia. Talvez a toxicomania, uma vez instalada, seja uma espécie de doença. Mas a escolha inicial de se engajar na droga, será que é uma doença? Consideraremos doente (por alguma disfunção do córtex pré-frontal, por exemplo) qualquer sujeito que não se autorregule como a gente?
Anos atrás um amigo, jovem psicanalista, no norte da França, se ocupava de adolescentes "problemáticos" pelas drogas que consumiam, pela desistência escolar, por uma criminalidade difusa e pela violência contra os adultos que se opunham a suas vontades.
Alguns eram filhos de excluídos, outros inventavam uma marginalidade própria, não herdada. Um desses jovens escutou pacientemente enquanto este meu amigo tentava convencê-lo a frequentar as sessões de terapia e a aceitar a ajuda de uma assistente social, que facilitaria sua reinserção. Quando acabou, o jovem lhe disse, pausadamente, olho no olho: "O que lhe faz pensar que eu queira ter uma vida parecida com a sua?".
Conclusão. Podemos tentar curar os "noias", ou seja, esperar suprimi-los de um jeito mais radical do que apenas prendendo-os. De qualquer forma, agimos porque os achamos insalubres para nós.
E peço que ninguém pretenda me convencer que a dita cura, à diferença da segregação ou das porretadas, seria para o bem (ou para a dignidade) deles. Detalhe. Originalmente, os modelos da lepra e da peste foram maneiras diferentes de lidar com o risco de um contágio.
Quando tentamos "curar" vagabundos ou drogados talvez estejamos também reagindo ao risco de um contágio pelas margens sociais. Como assim? Nunca estamos realmente convencidos de que temos razão de sermos bem pensantes e bem comportados. "Curar" à força os perdidos da cracolândia nos ajuda a evitar a sedução que sua "noite suja" exerce sobre nós.

sábado, 28 de janeiro de 2012

ENEM? AH, NEM!

Estive lendo nos jornais sobre a coletânea de absurdos que o tal Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM já produziu. Desvio de provas, banco de questões insuficiente, seletividade ideológica, incompetência, fraude, negligência, facilitações, e por cima de tudo, o mais vetusto analfabetismo (digo dos professores e organizadores: da massa de alunos nem sequer comento...)
Conclusão? Nada surpreendente, para certo alívio ao Sr Fernando Haddad. Se incompetência tem havido em sua gestão, melhor será resumi-lo ao modelo que escolheu. Não que esteja eu a defendê-lo, mas o caso é que, quem quer que venha em seu lugar, cometerá mais ou menos os mesmos erros ou quiçá, até piores. Simples assim.
Por causa da mais extrema babaquice esquerdista-petista, para um módico exame escolar é necessário colocar em operação um dispendiosíssimo aparato que se assemelha em vulto ao realizado pelo sistema judiciário eleitoral, mas que lhe ultrapassa em muito em complexidade.
Sim, caro leitor, porque com o sufrágio universal a complicação envolve a contagem dos votos e em alguns casos, a discussão sobre a elegibilidade de um ou outro candidato. Já com o Enem cada uma das questões tornar-se-á objeto de contenda, isto sem dizer sobre o vazamento de informações e o problema com impressão e distribuição de material. A quantidade de informação produzida é tal que somente uma gigantesca comissão de revisão poderá atender à demanda, e levando em conta que é humanamente impossível a um só grupo atender a todos os requerimentos, isto significará a possibilidade de haver disparidades, pois que diferentes estudantes terão suas provas revisadas por diferentes subgrupos.
Uma indústria será criada em torno do exame: os professores que tiverem formulado questões serão guindados à condição de celebridades supremas, e elaborarão livros e cursos “on line”; as escolas particulares pagarão salários altíssimos para descobri-los e contratá-los. Suas convicções pessoais sobre temas não objetivos serão promovidas a verdades incontestáveis. Será criada uma jurisprudência escolar!
As dimensões colossais do Enem propiciarão a multiplicação das fraudes, porque serão mais convidativas, dado que os ganhos de escala estimularão as técnicas ilícitas mais arrojadas, que por sua vez exigirão os cuidados mais apurados por parte dos fiscais, o que aumentará mais ainda os custos dos eventos. Na esteira, entrarão em cena as polícias estaduais e a Polícia Federal, os promotores e o Ministério Público e o Poder Judicial, cada qual com o seu poder de emperrar um pouco mais todo o processo.
Aff, e dizer que minhas dúvidas de redação eu resolvia com a minha professora...
Enfim, não há uma solução razoável para este dinossauro estatal, a não ser virar fóssil. Entretanto, isto significa o extermínio do próprio MEC e de seu crucial objetivo de tomar as crianças dos seus pais para formatarem seus cérebros e embutirem neles o programa operacional do marxismo petista.
Isto significa que somente uma grita geral da população poderá dar um fim a este procedimento caríssimo e absolutamente desnecessário. Já passa da hora!

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

PRIORIDADES

É consenso entre os brasileiros que os investimentos em educação, ciência e tecnologia são fundamentais para a realização das aspirações geopolíticas brasileiras.
Nesse sentido, o governo sofre cada vez mais pressão para aumentar seus gastos com o financiamento de pesquisas universitárias.
No entanto algo de sintomático acontece na definição das prioridades de pesquisa das agências de fomento como CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e outras.
De fato, todas elas sustentam a tradição brasileira de não negligenciar nenhum setor do conhecimento, seja nas áreas de humanas, exatas ou biológicas. Esta é uma tradição louvável e importante. Mas, quando é questão de definir quais são os tópicos que, do ponto de vista governamental, devem receber prioritariamente investimentos, tudo se passa como se a área de humanas pudesse ser soberanamente negligenciada.
O CNPq, por exemplo, tem um interessante programa de financiamento de bolsas de doutorado e mestrado no exterior chamado "ciência sem fronteiras". Entre outros, um de seus objetivos é o de : "investir na formação de pessoal altamente qualificado nas competências e habilidades necessárias para o avanço da sociedade do conhecimento". Um bom objetivo que pressupõe a amplitude necessária para o país levar em conta suas múltiplas necessidades.
Porém, quando nos voltamos para as áreas prioritárias, não encontramos nada referente às ditas humanidades. Seriam elas menos relevantes para o desenvolvimento nacional? Quem em sã consciência diria que o estudo sobre as causas e ações possíveis contra a violência urbana é menos prioritário do que o estudo da biotecnologia? Ou que a reflexão sobre a natureza da noção de "sofrimento psíquico" com seus modelos de intervenção clínica é menos prioritária que pesquisas sobre fármacos? Ou ainda que a pesquisa sobre o impacto da publicidade em nossas crianças ou sobre as violações dos direitos humanos na ditadura militar não tem a mesma importância que estudos sobre biodiversidade e bioprospecção? No entanto nenhum dos primeiros tópicos foi contemplado como prioridade.
Por trás disso, encontramos a crença bizarra de que as prioridades com impacto mais direto no desenvolvimento industrial são as verdadeiras prioridades. Melhor seria olhar para as limitações da vida social brasileira. Isso faria mais justiça às contribuições que as humanidades podem dar.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

SAUDADE DO TED BOY MARINO


Alguma coisa aconteceu no coração do Brasil quando acabaram com as lutas de "catch". Elas eram um sucesso na TV e seus astros viajavam em caravanas pelo País, apresentando-se em ginásios e circos. As lutas não eram lutas, eram teatro. Não eram exatamente combinadas, mas seguiam um roteiro estabelecido e havia um acordo tácito de que ninguém sairia do ringue machucado, mesmo que saísse arremessado. O roteiro básico não variava: era os bons contra os maus, e os bons sempre ganhavam. Ou só perdiam quando o adversário traiçoeiro recorria a um golpe especialmente baixo, sob uivos de raiva da plateia. E a reação da plateia fazia parte do teatro. Havia uma suspensão voluntária de descrença, e todos torciam pelo Bem contra o Mal - ou pelo bonito contra o feio, o esbelto contra a barrigudo, o correto contra o falso - com um fervor que não excluía a consciência de que era tudo encenação.

Era fácil distinguir os bons e os maus. Os bons eram atletas como o Ted Boy Marino, caráter tão irretocável quanto os seus cabelos loiros, que lutava limpo. Os maus tinham nomes como Verdugo e Rasputin, e comportamento correspondente ao nome. Lembro de um Homem Montanha, que mais de uma vez derrubou o juiz junto com o adversário. E não havia um Tigre Paraguaio? Os bons geralmente começavam apanhando e, quando parecia que estavam liquidados e que o Mal triunfaria, vinha a eletrizante reação, durante a qual o inimigo pagava por todas as suas maldades. Humilhação e vingança, nada na história do teatro é tão antigo e tão eficaz. Nove entre dez novelas de televisão têm o mesmo enredo.

Não sei se ainda fazem espetáculos de "catch" pelo interior do País. Hoje na TV o que se vê é o "ultimate fighting", ou "mixed marital arts", dois lutadores simbolizando nada trocando socos e pontapés sem simulação, quando não se engalfinham no chão como um bicho de duas costas e oito patas em convulsão. Nessas lutas não vale, exatamente, tudo - parece que esgoelar o outro e xingar a mãe não pode. Mas é o "catch" despido da fantasia, com sangue de verdade. Não há mais mocinho e vilão, apenas duas máquinas de brigar, brigando. Nem Ted Boy Marino nem Homem Montanha, apenas a violência em estado puro. Sei não, acho que empobrecemos.

EMBAIXO DO EDREDOM DO "BBB"


Na madrugada entre sábado e domingo retrasados, o "brother" Daniel Echaniz, 31, e a "sister" Monique Amin, 23, deitaram-se numa cama do "Big Brother Brasil 12". Ao que parece, ambos estavam para lá de Bagdá.
Graças a câmaras hipersensíveis, os assinantes do "BBB" 24 horas entreviram assim uma movimentação sugestiva debaixo do edredom de oncinha que cobria Daniel e Monique. Alguns se indignaram porque, aparentemente, Daniel se agitava, enquanto Monique ficava parada.
Mais tarde, Monique disse se lembrar de beijos e amassos, e só: se Daniel tivesse feito mais, ele seria "mau-caráter", pois ela tinha desmaiado. Daniel afirmou que não houve relação sexual. Mesmo assim, ele foi expulso do "BBB" por "comportamento inadequado" e encara agora, "no mundo real", uma acusação de estupro (caso seja provado que ele transou com Monique enquanto ela estava inconsciente).
Certa vez, viajando por Madri, meti na cabeça que queria assistir todas as touradas que pudesse.
Não é que eu fosse um "aficionado" da cruel e requintada arte de tourear; eu só queria ver sangue na arena, esperava que, ao menos uma vez, o touro enfiasse seu corno na pança do toureador. Depois de um mês vendo cavalos de picador sendo feridos, tive "sorte": vi um toureador esventrado por um majestoso Miúra, da Andaluzia.
O espectador do "BBB" não é diferente de mim naquela temporada espanhola, e a Globo, no caso, aposta em sua curiosidade um pouco mórbida: a possibilidade que haja comportamentos inadequados é a razão para alguém ficar acordado de madrugada, assistindo ao "BBB" 24 horas. Tanto faz, você dirá: que os espectadores queiram comportamentos inadequados ou se indignem por causa deles, de qualquer forma, Daniel teria ido longe demais -transar com uma mulher inconsciente é crime.
Concordo. Mesmo assim, quando li que a polícia tinha indiciado Daniel, achei bizarro, como se as forças da ordem se metessem num palco de teatro ou num set de cinema, para prender um ator que teria realizado o crime previsto no roteiro.
Espere aí, alguém objetará, o "BBB" não é uma ficção! Esse, de fato, é o argumento de venda de todos os reality shows. No entanto, segundo, por exemplo, Scott Stone (roteirista de "The Mole", "The Man Show" etc.), os reality shows, antes de serem escrotos, são, sobretudo, escritos. Obviamente, eles não seguem um roteiro acabado, com cenas e diálogos detalhados, mas se alimentam numa sinopse escrita de situações, conflitos e alianças desejáveis entre personagens.
Daniel e Monique podem não ser atores, e o episódio do edredom pode não ser dramaturgia. Mesmo assim, as ações entre "brothers" e "sisters" do BBB não são propriamente "realidade".
No mínimo, os reality shows são parentes da "commedia dell'arte": improvisações a partir de um "canovaccio" (roteiro rudimentar), com personagens escolhidos porque eles correspondem às máscaras estereotipadas das quais o "canovaccio" precisa. De muitas dessas máscaras, aliás, espera-se que produzam comportamentos inadequados.
Então, se Daniel for acusado e processado, o "BBB" deveria ser acusado e processado com ele, por instigar o crime, ou seja, por ter, de uma certa forma, "roteirizado" o suposto estupro de Monique.
Em suma, a "realidade" produzida pelos "reality shows" é duvidosa, e considerar crime o "comportamento inadequado" de Daniel não é muito diferente de a polícia invadir o set de "Dormindo com o Inimigo" para salvar Julia Roberts e prender Patrick Bergin, o marido espancador.
Mas talvez eu esteja me preocupando por nada; talvez, nessa confusão entre realidade e ficção, a chegada de polícia e procuradoria ao "BBB" seja apenas mais um artifício dramático, para convencer o público de que o show é mesmo "de verdade".
Bom, nesta semana, além de Daniel e Monique, tivemos a grávida de quadrigêmeos factícia e a Luiza que está no Canadá. Não sei se Daniel e Monique se darão mal ou bem. Luiza ganhou vários contratos comerciais "reais". Resta que a mulher dos quadrigêmeos pode ser acusada de falsidade ideológica.
Será que é justo? Ela inventou uma história, que se tornou pauta e nos entreteve. Ganhou um dinheiro com isso? E por que não? Afinal, foi menos do que ganha um ficcionista médio.
Seja como for, os cronistas de humor brasileiros são sortudos: sem querer desmerecer seus talentos, é óbvio que o mundo (ou é só o Brasil?) faz de tudo para facilitar o trabalho deles.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

AS LIÇÕES DE CHURCHILL

Winston Churchill faleceu no dia 24 de janeiro de 1965. Este artigo é uma homenagem a este que foi a figura política de maior destaque no século 20. Liderança inquestionável nos turbulentos anos 40, Churchill foi o maior responsável individual pela derrota nacional-socialista na Segunda Guerra Mundial. Não é pouca coisa.
De sua longa vida, podem-se tirar diversas lições importantes. Superação é uma das primeiras palavras que vêm à mente. A quantidade de adversidades e obstáculos que surgiram em seu caminho apenas fortalece o mérito de suas conquistas. Churchill não era de desistir, e usava cada tropeço para se reerguer com mais determinação ainda. Para ele, sucesso era a habilidade de sair de um fracasso para outro sem a perda do entusiasmo.
Como todo ser humano, Churchill tinha suas falhas e contradições. Nem sempre foi correto, e errou em suas previsões em importantes situações. Mas todos estes defeitos servem para torná-lo mais humano, e não eclipsam de forma alguma seus tantos acertos, fundamentais para preservar a liberdade naqueles ameaçadores anos.
Uma de suas maiores qualidades como estadista era seu realismo. Enquanto muitos preferiam o falso consolo de esperanças ingênuas, Churchill analisava os fatos com maior frieza. Como escreve Paul Johnson em sua biografia, “Churchill era realista o bastante para perceber que as guerras aconteceriam e, por mais terríveis que fossem, ele preferia vencê-las a perdê-las”. Ele sabia ser pragmático quando necessário, mas sua essência era basicamente a de um liberal, defensor da democracia e também do livre mercado.
Sobre a democracia, aliás, Churchill tornou famosa a ideia de que se trata do pior modelo político, exceto todos os outros. Ele era realista o suficiente para não esperar escolhas democráticas fantásticas, e costumava dizer que o melhor argumento contra a democracia era uma conversa de cinco minutos com um eleitor médio. Esta postura cética é importante para limitar os estragos que podem ocorrer com o abuso de poder do governo, mesmo sob regimes democráticos.
Nas grandes batalhas do século 20, tanto ideológicas quanto físicas, Churchill esteve do lado certo. Ele abominava os monstros aparentados: o comunismo, o nazismo e o fascismo. Considerava a tirania bolchevique a pior de todas. Chegou a afirmar que “o vício intrínseco do capitalismo é a partilha desigual do sucesso”, enquanto “o vício intrínseco do socialismo é a partilha equitativa do fracasso”.
Ainda assim, soube fazer concessões práticas quando a própria sobrevivência dos valores ocidentais estava em jogo. Até mesmo com Stalin ele costurou um pacto para derrotar Hitler, após este trair o ditador soviético. Para Churchill, se Hitler invadisse o inferno até o diabo mereceria ao menos uma palavra favorável.
Churchill havia lido “Mein Kampf” e, ao contrário de tantos que consideravam Hitler apenas um aventureiro iludido, ele acreditou em suas promessas. O “pacifismo” era o credo da moda, mas Churchill soube enxergar melhor a realidade. Isso fez com que a Inglaterra estivesse preparada quando o inevitável ataque nazista ocorreu. O papel de liderança exercido por Churchill neste momento de vida ou morte foi crucial para a vitória inglesa. “Nós nunca nos renderemos”, enfatizou em seu famoso discurso.
Ele era a “personificação do entusiasmo”, como explica Johnson. Sua retórica não era, entretanto, vazia, e suas ações incansáveis colocavam em prática sua mensagem. Sua coragem na liderança da máquina de guerra inglesa comprovava sua fala. Sua confiança era contagiante, e sua determinação, inspiradora. Segundo o historiador Paul Johnson, seria legítimo dizer que Churchill realmente salvou a Inglaterra (e, portanto, o Ocidente).
Além das medalhas militares, Churchill publicou quase 10 milhões de palavras em discursos e livros, pintou mais de 500 telas, construiu pessoalmente boa parte de sua propriedade particular, foi membro da Royal Society, foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, foi exímio caçador e jogador de pólo, criou cavalos vencedores e consumiu espantosa quantidade de champanhe, em companhia de seus charutos. Era muito espirituoso, com incríveis tiradas dignas de uma mente rápida e sagaz.
Para Paul Johnson, a vida de Churchill passa ao menos cinco lições importantes: pense sempre grande; nada substitui o trabalho árduo; nunca deixe que erros e desastres o abatam; não desperdice energia com coisas pequenas e mesquinhas; e, por fim, não deixe que o ódio o domine, anulando o espaço para a alegria na vida. Belas lições!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

'VADA A BORDO, #&%@!'

Novo mote na praça. Sai "Menos a Luiza, que está no Canadá" (até porque ela está de volta) e entra "Vada a bordo, cazzo!". O resto do mundo não tomou conhecimento do bordão paraibano, febre na internet de fala portuguesa, mas a curta e grossa ordem do comandante da Capitania dos Portos de Livorno ao capitão do Costa Concordia já estampa até camisetas ucranianas. Sempre na versão original, eufonicamente insuperável. Experimente: "Volte já pro navio, cacete!" Não tem o mesmo efeito.
Em determinadas situações, nada compete com a arrebatada língua italiana. Palavras como "disgraziato" já vêm com um ponto de exclamação embutido. Operístico e tragicômico, quase tudo em italiano parece subir pelas paredes e descambar para a galhofa. "Disgraziati!" foi o que Fabiola Russo, mulher de Francesco Schettino, o capitão do sinistrado navio, berrou para os repórteres e paparazzi que se acotovelavam à porta da casa do casal, em Meta di Sorrento, na província de Nápoles. Já vimos a cena um sem-número de vezes no cinema.
Nem a xingação de Fabiola nem a solidariedade de parentes, vizinhos e amigos ("é um grande sujeito", disseram uns, "sempre pronto a ajudar o próximo", afiançaram outros, "o que estão fazendo com ele é uma infâmia, uma crueldade, um linchamento midiático", protestou dom Genaro Starita, pároco da cidade, "ele ajudou a salvar milhares de passageiros", socorreu-lhe uma amiga moldávia, testemunha ocular da colisão) conseguiram aliviar a barra do capitão, que antes mesmo de admitir sua barbeiragem já fora arrastado pela mídia ao Gólgota da difamação.
Um canal de televisão atribui-lhe "traços lombrosianos"; outro comparou-o maliciosamente ao comandante da antiga telessérie O Barco do Amor; um colunista de província, pegando carona na invectiva de um procurador, tachou Schettino de "scellerato". Estava armada a catarse de um povo que o atual arrocho econômico tornou ainda mais propenso à histeria.
O desastre em si, simbolicamente enriquecido pela evocativa imagem do navio a soçobrar (que nem a Itália, que nem o euro, que nem a União Europeia), foi relativamente modesto em número de vítimas: 11 mortos e 21 desaparecidos. Só o transatlântico italiano Andrea Doria, naufragado a caminho de Nova York em 1956, levou para o fundo do Atlântico 51 pessoas, estatisticamente irrisório se comparado ao naufrágio do Titanic (1.517 desaparecidos), para não mencionar os campeões da categoria: Doña Paz (1987, Filipinas, 4.375 mortos), MV Le Joola (2002, Costa de Gambia, 1.863) e o vapor Sultana (1865, Rio Mississippi, 1.800).
Uma catarse com direito a vilão e herói claramente definidos: Schettino, o bode expiatório para desafogar uma raiva coletiva recalcada há não sei quantos anos, e Gregorio Di Falco, comandante da Capitania dos Portos de Livorno, o oficial imaculado para aplacar a honra ferida da coletividade - o italiano mau, "vigliacco", e o italiano bom, eficiente
"Io sono Di Falco" (Eu sou De Falco) virou brado na blogosfera, a propagar um equívoco que o próprio comandante apressou-se em desfazer. "Só cumpri com meu dever", reiterou várias vezes o autor de "Vada a bordo, cazzo!". Como Di Falco não arriscou sua vida, o sine qua non do heroísmo, o único herói do resgate aos passageiros do Concordia acabou sendo aquele comissário de bordo que, mesmo ferido na perna, continuou salvando gente.
Segundo o jornal La Stampa, de Turim, Schettino e Di Falco nunca se toparam. Temperamentos conflitantes. O primeiro é extrovertido, bon vivant, gozador; o segundo, tímido, arredio, certinho. Dionísio e Apolo. Eis um contraste na medida para o fino olhar de Umberto Eco, que ainda não se manifestou a respeito do desastre, mas é provável que o faça em sua próxima coluna na revista L'Espresso, comparando Schettino, suponho, não a Berlusconi mas ao desertor Henry Fleming de O Emblema Vermelho da Coragem, de Stephen Crane, e a Lord Jim, o conflituoso homem do mar criado por Joseph Conrad.
Fleming e Jim são os dois mais notórios paradigmas da covardia que o imaginário criou nos últimos 120 anos, com ligeira vantagem para o personagem de Conrad: Jim, afinal, também abandonou os passageiros de um navio à própria sorte no meio de uma viagem. Todos se salvavam, menos Jim, que, transformado em bode expiatório de um delito com vários culpados, passava o resto da vida tentando purgar sua culpa nos cafundós da Malásia.
Um segundo vilão veio à tona na tragédia anunciada do Concordia: o prefeito da Ilha Giglio, Sergio Ortelli. É o maior incentivador dos shows de exibicionismo que os colossais cruzeiros turísticos costumam fazer a uma distância temerária da costa, com todas as luzes acesas e sirenes a mil decibéis, para ele, "um espetáculo inigualável" e "uma tradição indispensável", disse-o por e-mail ao comandante do Concordia, em agosto. A revista alemã Der Spiegel revelou o e-mail; o diário italiano Corriere della Sera pespegou-lhe o apelido de "magnetizador de cruzeiros" (que, obviamente, soa melhor no original, "sindaco acchiapa navi da crociere").
Há fortes interesses eleitoreiros em jogo nas relações entre os políticos italianos, sobretudo dos prefeitos, e as empresas de navegação turística. Se Schettino tem partes com Lord Jim, Ortelli lembra o prefeito do filme O Tubarão, que se recusava a suspender o banho de mar em suas praias para não afetar o afluxo de turistas. Depois do desastre do dia 13, Ortelli não falou mais em "tradição", que não é uma exclusividade da Ilha de Giglio nem do Tirreno, mas uma praga de toda a costa italiana, tema, aliás, de um recente dossiê da L'Espresso, pautado pelo estrago ambiental que mastodontes do porte do Concordia (59 m de altura, 294 m de comprimento, 3.800 passageiros) e até maiores vêm causando à Lagoa de Veneza. Ano passado, 800 navios dessa envergadura despejaram 2 milhões de turistas em Veneza, provocando o mesmo impacto que 11 milhões de automóveis causariam ao meio ambiente. De que adianta proibir a circulação de veículos dentro de Veneza se os seus maiores danos vêm pelo Adriático?

POR QUE DUVIDAM DA EVOLUÇÃO?

Os mais crentes se opõem mais à teoria da evolução. Ao menos nos EUA, a evidência é indiscutível. Em uma pesquisa do grupo Gallup na véspera do aniversário de 200 anos do nascimento de Charles Darwin, no dia 12 de fevereiro de 2009, apenas 39% dos americanos responderam que "acreditam na teoria da evolução".
Não há dados semelhantes no Brasil, mas imagino que os números sejam semelhantes ou piores.
A mesma pesquisa relaciona o resultado com o nível educacional dos respondentes. Apenas 21% das pessoas com ensino médio completo ou menos acreditam na evolução. O número sobe para 53% nos graduados e 74% em quem tem pós-graduação.
Outra variável investigada foi a relação do resultado com frequência à igreja. Dos que acreditam em evolução, 24% vão a igreja semanalmente, 30% ao menos uma vez por mês e 55% nunca vão. Quanto mais crente, maior a desconfiança em relação à teoria de Darwin.
Por outro lado, a evidência em favor da evolução também é indiscutível. Ela está no registro fóssil, datado usando a emissão de partículas de núcleos atômicos radioativos. Rochas de erupções vulcânicas (ígneas) enterradas perto de um fóssil contêm material radioativo. O mais comum é o urânio-235, que decai em chumbo-207.
Analisando a razão entre o urânio-235 e o chumbo-207 numa amostra de rocha ígnea e sabendo a frequência com que o urânio emite partículas (em 704 milhões de anos, a quantidade de urânio numa amostra cai pela metade), cientistas obtêm uma medida bastante precisa da idade do fóssil. Por exemplo, os dinossauros desapareceram há 65 milhões de anos.
A evidência em favor da evolução aparece também na resistência que bactérias podem desenvolver contra antibióticos. Quanto mais se usam antibióticos, maior a chance de que mutações gerem bactérias resistentes. Esse tipo de adaptação por pressão seletiva pode ser investigado no laboratório, sujeitando populações de bactérias a certas drogas e monitorando modificações no seu código genético.
Posto isso, pergunto-me por que a evolução causa tanto problema para tanta gente. Será que é tão ofensivo assim termos tido um ancestral em comum com outros primatas, como os chimpanzés?
A nossa descendência é ainda muito mais dramática: se formos mais para o passado, todos os animais que existem descenderam de um único ancestral, o Último Ancestral Universal Comum (na sigla Luca, em inglês), que provavelmente era um ser unicelular.
Essa desconfiança do conhecimento científico é muito estranha, dada a nossa dependência dele no século 21. (De onde vêm os antibióticos e iPhones?) O problema parece estar ligado ao Deus-dos-Vãos, a noção de que quanto mais aprendemos sobre o mundo, menos Deus é necessário. Os que interpretam a Bíblia literalmente veem nisso uma perda de rumo. Se Deus não criou Adão e Eva e se não nos tornamos mortais após a "queda do Paraíso", como lidar com a morte?
Uma teologia que insiste em contrapor a fé ao conhecimento científico só leva a um maior obscurantismo. Mesmo que não acredite em Deus, imagino que existam outras formas de encontrar Deus ou outros caminhos em busca de uma espiritualidade maior na vida.

domingo, 22 de janeiro de 2012

ATÉ PARECE INSULTO

O governo brasileiro anunciou duas medidas para lidar com a recente imigração para o Brasil: fechamento da fronteira para haitianos e "tapete vermelho" para profissionais qualificados, sobretudo os provenientes da Europa. Para ambas as políticas, a justificativa é a de que o Brasil precisa controlar o fluxo migratório, que só deve aumentar nos próximos anos caso o país, como é previsto, mantenha-se como uma das maiores economias do mundo.
A iniciativa de tratar do tema é bem-vinda. Afinal, nosso Estatuto do Estrangeiro foi criado em 1980, durante o período militar, e é considerado por organizações de direitos humanos extremamente restritivo aos imigrantes. A entrada de haitianos pela fronteira norte do Brasil, na cidade de Brasileia, no Acre, tornou urgente para as autoridades brasileiras a revisão de nossa política migratória, mas a discussão, até o momento, tem caminhado no sentido de maior contenção da imigração.
Uma resolução do Ministério da Justiça determinou a concessão de cem vistos mensais pela embaixada em Porto Príncipe e o estabelecimento de um prazo de cinco anos para o imigrante haitiano conseguir um trabalho regular no Brasil. Os haitianos que já se encontram no Brasil serão legalizados, mas quem entrar sem visto depois da nova medida será considerado ilegal e estará sujeito à extradição.
Não há, portanto, qualquer intenção do governo de flexibilizar o Estatuto do Estrangeiro. Este continua valendo para todos, inclusive haitianos que ingressarem no Brasil após a publicação da resolução. Os cem vistos mensais são apresentados como um ato de solidariedade com o povo haitiano, quando na verdade não passam de uma forma de controle e restrição da imigração.
Paralelamente, o governo anunciou que a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência está elaborando uma política de imigração para facilitar a vinda de profissionais estrangeiros altamente qualificados. O objetivo seria promover um "processo de imigração seletiva, que priorize a "drenagem de cérebros", mas estabeleça limites para os estrangeiros que chegam fugindo da pobreza de seus países". A inspiração para o projeto seria a política de imigração seletiva praticada no Canadá e na Austrália, países que praticam as políticas imigratórias mais cruéis e discriminatórias.
O governo afirma que "é preciso definir até onde irá a nossa generosidade". Falar em generosidade numa hora dessas parece até um insulto. Se selecionamos os mais qualificados e desprezamos os outros - que são os mais necessitados -, não estamos praticando generosidade nenhuma, mas simplesmente cuidando dos nossos interesses de forma imediatista.
Em 2009, ao sancionar a Lei de Anistia Migratória, o presidente Lula fez questão de destacar que o Brasil é um país que tem lição a dar sobre tratamento de imigrantes. Agora, em 2012, estamos prestes a praticar uma política imigratória moralmente indefensável, baseada na discriminação.

sábado, 21 de janeiro de 2012

RELIGIÃO E ÉTICA

Não li "Religião para Ateus" (Ed. Intrínseca), de André de Botton, e sim a recente resenha que lhe dedicou Terry Eagleton, filósofo e crítico literário inglês. Eagleton diz que, ao contrário de Marx e Nietzsche, que diretamente combatiam a religião, muitos filósofos, como Maquiavel, Voltaire, Rousseau, Diderot, Tolland, Gibbon, Matthew Arnold, Auguste Comte e o contemporâneo Habermas, compartilham a descrença nos dogmas religiosos, mas, ainda assim, consideram que a religião é útil para manter sob controle a ralé, a plebe, o populacho, a massa, a chusma... De forma irônica, Eagleton resume a postura desses pensadores, entre os quais inclui Botton, num mote - "eu mesmo não acredito, mas, do ponto de vista político, é mais prudente que você acredite". A seu ver, uma contraditória forma de pensar por aqueles que, enquanto filósofos, deveriam zelar pela integridade do intelecto.
Se Eagleton está correto em sua leitura, Botton e demais autores citados parecem incorrer no erro decorrente de uma indiscriminação entre os campos da religião e da ética, confusão sobre a qual Jacques Derrida se debruçou no Seminário de Capri, em 1994.
A maioria das pessoas pensa que os valores mais elevados da humanidade - o amor, o respeito ao outro, a abdicação da agressividade, o desejo de estabelecer a paz na comunidade - estão depositados e resguardados na religião. Por esse motivo, qualquer crítica que se lhe faça é entendida como um ataque a esses valores fundamentais para a civilização. Ao não se discriminar o que é próprio da religião e o que é próprio da ética, conclui-se apressada e erroneamente que o não religioso, o ateu, é um ser aético e antimoral.
No empenho de estabelecer o que é estritamente do domínio do religioso, Derrida pinça duas experiências especificas - a da fé e a do sagrado. À primeira vista, seriam elas exclusivas da religião. Mas Derrida mostra que não é bem assim. Em primeiro lugar, se entendemos a religião como a prática ligada ao trato com o divino e suas revelações, logo percebemos que a fé não se restringe a esse campo. A fé se faz imprescindível em qualquer contato entre os homens. É preciso ter fé no outro, é preciso crer no que ele diz, acreditar que ele fala a verdade. De forma semelhante, o sagrado também não se limita ao divino, pois a consideração à vida e ao outro deve ter essa conotação. A vida, diz Derrida, é algo que deve permanecer "indene, sã, a salvo, intocável, sagrada".
Na medida em que evidencia que a fé não é uma experiência própria e exclusiva da religião e sim algo inerente e indispensável no relacionamento humano, Derrida desfaz a incompatibilidade entre fé e razão, oposição tradicional mantida com grande vigor desde o Iluminismo por aqueles que julgam nela se apoiar a possibilidade do pensamento científico. Derrida afirma o contrário. É justamente por ter fé na palavra do outro que a transmissão de conhecimento se faz possível.
Qualquer relação humana se baseia na possibilidade de aliança com o outro, na crença de ouvir dele a verdade e, em retribuição, para ele também falar a verdade, de ter com ele uma "fé jurada". Esses atos de grande importância nas relações pessoais geram quase automaticamente a figura necessária de uma testemunha, aquele que garante e dá credibilidade às sempre frágeis e incertas promessas e alianças entre os homens. Ninguém melhor do que um deus para cumprir essa função.
O que Derrida propõe é que aquilo que aparece simbolizado, idealizado e "purificado" na religião, e que se acredita ser específico dela, na verdade são aspectos essenciais das relações entre os homens. Aponta para uma religião não "religiosa" no sentido comum, "ateologizada", fruto de necessidades humanas. Nesse sentido, o título do livro de Botton, uma religião para ateus, parece apontar para a mesma direção, mas por vias não coincidentes.
Freud também concebia a religião como fruto de necessidades humanas, atendendo a anseios arcaicos por um pai poderoso que garantisse amor e proteção contra os perigos existentes e a ameaça onipresente da morte. Na religião, são reencontrados os pais fortes da infância e dos quais não se quer abrir mão, na relutância em se assumir a própria autonomia na vida adulta.
Ao fazer a discriminação entre religião e ética, persiste uma questão. Muitos pensam que a ética decorre de preceitos religiosos, seria ela um depurado leigo dos mandamentos divinos. Entretanto, Freud mostrou que a ética decorre de procedimentos humanos necessários para a sobrevivência. Cada homem deve conter sua sexualidade e sua agressividade para que seja possível a convivência em comum, para que o grupo social sobreviva. No correr do tempo, essa contenção se codifica em normas de conduta que regem as relações humanas.
O filósofo Philip Kitcher diz algo semelhante no artigo Ethics without Religion, ao enfatizar a importância de compreender as raízes históricas de nossas práticas éticas. Afastando-se da ideia de que mandamentos semelhantes possam ter sido enunciados por diferentes deuses em épocas e culturas diversas, pensa que tais mandamentos teriam surgido como soluções práticas para problemas sociais. Posteriormente teriam sido absorvidos pelos diferentes contextos religiosos, o que lhes teria dado uma força suplementar. Ou seja, a ética não decorreria de preceitos divinos revelados e sim da codificação de procedimentos e condutas impostos pela necessidade de viver em grupo. Essas regras humanas teriam sido absorvidas pela religião e transformadas em mandamentos divinos.
Mostra Kitcher que entender a natureza humana da ética nos possibilita ter uma ideia do trajeto percorrido e do estágio que atingimos - de hordas de primatas às nossas complexas sociedades -, dando-nos forças para continuar melhorando um projeto jamais acabado, em permanente processo de aprimoramento.
Os que defendem a religião como necessária para a estabilidade social, como Eagleton diz que fazem Botton e outros filósofos citados, esquecem que ela muitas vezes coloca em risco o laço social. No momento em que dogmas diferentes entram em choque, impera a violência, instala-se a intransigência e intolerância.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

"TEMPUS FUGIT"

Depois de nos privar de Plutão, que teve sua planetariedade cassada em 2006, cientistas agora ameaçam bagunçar o tempo.
Pretendem eliminar os segundos bissextos ocasionalmente introduzidos no calendário para fazer com que o tempo dos relógios atômicos (oficialmente, 1 segundo equivale a 9.192.631.770 ciclos de radiação emitidos pelo césio-133) não se divorcie de vez do tempo astronômico, em que o segundo vale 1/86.400 do dia.
Até os anos 60, a astronomia era a guardiã absoluta do tempo, mas aí descobrimos que o planeta é pouco pontual: a velocidade da rotação terrestre atrasa um número variável de milissegundos a cada ano.
Se os segundos corretivos forem de fato eliminados -a decisão foi adiada para 2015-, o tempo se tornará mais abstrato. Não dirá mais respeito à noite, ao dia, às estações e aos anos.
Os cientistas, é claro, têm suas razões. O problema é que nossos corações são insensíveis a elas. O tempo encerra uma dimensão psicológica à qual não podemos escapar.
Nas "Confissões", Santo Agostinho vislumbrou o tamanho da encrenca: "Se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente. De que modo existem aqueles dois tempos -o passado e o futuro-, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade".
Não é por acaso que, além de Agostinho, vários filósofos se apressaram a concluir que o tempo não passa de uma ilusão. Mesmo que ele seja uma realidade ontológica, como querem os físicos, continua despertando perplexidades e até paixões.
Nem toda ciência, filosofia e poesia do mundo nos fazem deixar de lamentar o passado e temer o futuro. Quem traduziu bem esse sentimento foi Virgílio: "Sed fugit interea, fugit irreparabile tempus" (mas ele foge: foge irreparavelmente o tempo).

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

TRIUNFO DA CHINELAGEM

Até que ponto o gosto do outro deve ser respeitado? O primado da tolerância deve silenciar a crítica? Toda crítica frontal a um tipo de gosto é preconceito? A expulsão de um participante do BBB12, reality show da Rede Globo, por suspeita de estupro obriga a falar disso. Quem gosta do programa, escorado na ideia simples de que é brincadeira, lazer e um jogo inofensivo, detesta que se fale mal do baixo nível do que é exibido. O Brasil parece ser um dos poucos ou o único país com 12 edições do Big Brother em rede nacional aberta e em horário nobre. É inegável uma evolução no programa: a cada ano, fica pior. Como se sabe, a baixaria não tem piso nem teto. Mas estamos vivendo a era do consumidor mimado, triunfante, incriticável, infantilizado, agressivo, sempre com razão, que se regala espiando o gozo obsceno dos outros para satisfazer os seus mais baixos e selvagens instintos.
Não se trata de dar lições de moral ou de fazer pose de intelectual. A questão é outra: como chegamos a esse ponto? Houve um tempo em que o elitismo sufocava os gostos populares. A hipocrisia se impunha como uma máscara social. Hoje, os gostos ditos populares, fabricados pela chamada indústria cultural, asfixiam qualquer crítica como expressão de preconceito, o que esconde um preconceito maior, a ideia de que as tais camadas populares só se divertem com chinelagem. O que é mesmo chinelagem? Uma casa com um número de camas inferior ao de moradores para obrigá-los a dormir juntos em público. Um jogo em que o sexo deve ser o horizonte incontornável para delírio de milhões de voyeurs. Uma brincadeira que termina em suposto estupro, em Polícia nos domínios da televisão e em constrangimento nacional.
Chinelagem também é colocar fama e dinheiro absolutamente acima de tudo. Chinelagem é produzir um imaginário centrado na ideia de que o mais importante é se tornar celebridade e que esse objetivo justifica os maiores micos e o abandono de qualquer limite. O suposto estupro do BBB12 é a cara de certo Brasil, o Brasil que quer cometer infrações de trânsito sem ter de pagar multas, o Brasil onde parlamentares são os primeiros a não respeitar normas, o Brasil onde estádios de futebol são prioridades em relação a hospitais, o Brasil onde os muito ricos pagam menos impostos, o Brasil que só quer gozar, ainda que seja um gozo passageiro, escabroso, cínico e feio.
Está mais do que na hora de se atacar em várias frentes: acabar com preconceitos, respeitar diferenças, levar na boa brincadeiras de estação e, ao mesmo tempo, defender uma utopia: a possibilidade de diversão para todos que exija um pouquinho mais do cérebro de cada um, o que, há alguns anos, era chamado de criatividade e inteligência. O pior mesmo, enquanto a utopia não se realiza, é a hipótese radical que rola nas redes sociais: o suposto estupro do BBB12 seria apenas uma estratégia de marketing. Aí, claro, só resta gritar: que baita chinelagem! Esse pode ter sido o nosso 11 de Setembro. Ainda que, claro, tudo acabe na pizza do mal-entendido.

A LOTERIA ENEM

A prova tem falhas logísticas e há incerteza sobre os critérios de correção; as questões têm textos longos demais e apresentam filtros ideológicos.
O governo federal acaba de receber cerca de 3,4 milhões de inscrições para as pouco mais de 100 mil vagas no ensino superior pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Foram 1,7 milhão de candidatos (os alunos podem se inscrever para mais de um curso). Em média, mais de 30 candidatos disputam cada vaga.
Trata-se do maior vestibular do país, e a sua forma de organização poderia sugerir um grande avanço ao poupar os alunos das gincanas dos múltiplos vestibulares. Mas tal processo seletivo constitui, de fato, um enorme monstrengo educacional, uma espécie de loteria.
O primeiro sintoma de anomalia é o fato de o Enem ser o instrumento de avaliação utilizado.
Mesmo quando realizado de modo absolutamente consistente, sem os desvios logísticos e conceituais que têm acompanhado o exame nas últimas realizações, o Enem não foi projetado para ser um processo seletivo. Ele não é adequado para classificações finas, como as que ocorrem nos vestibulares. A prova poderia até ser utilizada como um indicador, entre outros instrumentos, mas nunca como o elemento decisivo para a aprovação.
Os maiores desvios decorrem, no entanto, do modo atabalhoado como o Enem tem sido realizado.
Problemas logísticos como roubos de provas, quebras de sigilo, inadequações na pré-testagem e nas dimensões dos bancos de itens têm se sucedido, ano a ano, minando a integridade e a credibilidade da prova. Além disso, há questões estruturais referentes às provas.
Com a transformação de uma única prova de 63 questões em quatro provas, uma para cada área em que se organiza o ensino médio, com 45 questões cada uma, o teste ficou excessivamente longo para o conteúdo que examina.
Ocorreu então um desbalanceamento, com uma supervalorização da prova de redação. Tal problema tem sido amplificado pelo fato de as incertezas nos critérios de correção da prova terem sido levadas aos tribunais competentes e estarem, hoje, no centro das discussões.
Há outras questões conceituais que eivam o processo de elaboração do Enem: a premissa de que as questões das provas devem ser "contextualizadas" é uma delas.
Em muitos dos itens da prova, a palavra "contexto" é tratada como se significasse uma abreviatura de "com muito texto". Os enunciados tornam-se desnecessariamente longos, levando alguns professores a dar um conselho excêntrico: sugerem que os alunos não leiam os enunciados logo de início, indo diretamente à pergunta feita. Eles garantem que, na maioria das vezes, a resposta correta pode ser indicada, sem perda de tempo.
Outro desvio conceitual mais sutil é a interpretação da contextualização como filtro ideológico primário. De modo defensivo, quase cínico, os alunos "aprendem" e divulgam regrinhas do "politicamente correto", referentes, sobretudo, a questões ambientais ou aos direitos humanos, tais como definidos em catecismos partidários.
O mais grave dos desvios, no entanto, é a pretensão de utilização de uma sofisticada Teoria da Resposta ao Item (TRI) na correção das provas. As limitações na qualidade e na quantidade dos itens dos bancos de questões minam qualquer possibilidade de sucesso no recurso a tal parafernália matemática.
Objetivamente, o que se conseguiu foi a transformação da correção da prova em uma verdadeira loteria. Ninguém sabe, ao certo, quantos pontos vai obter. Aos alunos, cabe fazer o exame e torcer ou rezar por uma boa sorte.
O ponto mais notável em todos esses desacertos é a recepção passiva dos resultados do Enem como um tipo legítimo de credenciamento pela maior parte das escolas.
Já passou da hora de as boas escolas privadas manifestarem seu desapreço pela grande loteria que a prova se tornou, após serem depositadas tantas e tão justas expectativas sobre ela.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

MORRER PELOS HOMENS?

Ligo a TV. Notícias tenebrosas sobre os implantes mamários franceses e o risco que representam para milhares de mulheres no mundo inteiro. O meu interesse é cultural, não médico: quem diria que décadas de lutas feministas seriam enterradas por próteses de silicone defeituosas.
As lutas feministas, convém lembrar, tinham uma ambição civilizacional considerável: virar do avesso o mito de Pigmalião, o artista imortalizado pelo poeta Ovídio que, certo dia, esculpiu uma bela figura, apaixonou-se pelas suas formas e, como brinde dos deuses, viu a estátua virar mulher de verdade.<
história sempre me comoveu por motivos essencialmente "românticos": Pigmalião renunciara ao amor antes de esculpir a estátua; mas o destino é irônico e, por vezes, o que consideramos adormecido acaba por despertar novamente. Que a deusa Vênus tenha recebido as preces reprimidas de Pigmalião, concedendo vida à matéria inerte: eis a ideia redentora de que só o amor triunfa sobre a morte.
Mas isso sou eu a falar. Ou a delirar. Porque a sensibilidade feminista é mais literal e menos generosa: o mito de Pigmalião representa apenas a secular submissão da mulher ao homem. E quem é que os homens pensam que são, ao pretenderem "esculpir" a mulher para que ela cumpra os desejos falocêntricos dos machos?
Boa pergunta. George Bernard Shaw, um panfletário com talento, deu a resposta: revisitou o mito de Pigmalião na sua peça homônima e concedeu-lhe um final progressista.
Sim, o prof. Henry Higgins transforma a plebeia Eliza Doolittle numa verdadeira "lady" da retórica e das maneiras. Exatamente como no musical "My Fair Lady", inspirado na peça.
Porém, e ao contrário do que sucede no musical, é legítimo pensar que Eliza dá o seu grito do Ipiranga, abandonando o prof. Higgins no final por não suportar a natureza condescendente e desrespeitosa dele. É o supremo sonho feminista: a criatura liberta-se do criador e decide seguir em frente.
Infelizmente, muitas mulheres não conseguem seguir em frente. Que o digam as mulheres brasileiras, campeãs mundiais em cirurgias estéticas. Motivos do recorde?
Uma parte opta pela cirurgia por razões estritamente médicas: reconstruções do peito depois de doença oncológica ou acidente. São razões compreensíveis e sobre elas nenhuma palavra a dizer.
Mas existe uma vasta legião de mulheres saudáveis que se submete à cirurgia por motivos de "autoestima". A expressão, usada e abusada pelas revistas mentecaptas, pretende iludir uma verdade desconfortável: a "autoestima" das mulheres, sejamos honestos, depende da estima que elas esperam receber dos homens.
Claro que o leitor, e sobretudo a leitora, poderá argumentar que os homens funcionam da mesma maneira em matéria de vaidade física. Quem não conhece casos dramáticos de heterossexuais inseguros que passam horas na academia, em malhação marcial, em busca dos músculos perfeitos?
Verdade. Acontece que não conheço nenhum homem que, para obter o mesmo resultado e conquistar as atenções do sexo oposto (ou até do mesmo sexo), esteja disposto a passar pelo calvário das mulheres siliconadas.
No fundo, não conheço nenhum homem que esteja disposto a deitar-se numa sala de operações; a suportar os rigores da anestesia e do bisturi; a implantar uma qualquer prótese no interior do corpo para simular firmeza ou juventude; e, Deus nos livre, a correr sérios riscos de vida para ficar com aspecto de Adônis. Há limites. Até para conquistar mulheres.
O problema é que não parece haver limites para as próprias mulheres. O que nos leva de volta para o mito de Pigmalião, na sua interpretação literal: foram anos de lutas feministas para que elas deixassem de estar submetidas ao cinzel e ao escopo do escultor falocêntrico.
Mas ninguém esperava que, libertas, as mulheres corressem para o passado e voltassem a se submeter, de forma voluntária, ao escopo e ao cinzel do cirurgião plástico.
Na minha qualidade de homem, admito que tanta dedicação é comovente. Mas, acreditem, minhas senhoras, não vale a pena sofrer e morrer por nós.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A DOR NA FACE

Muitas vezes apenas gostaríamos de dizer "não". Coisa difícil dizer "não", porque o "sim" é civilizado na sua condição de hipocrisia necessária para a vida em grupo.
Não dizer bom-dia, não dizer que gostou, não dizer que quer ir, não dizer que ama, dizer apenas "não".
Na ordem capitalista em que vivemos, onde tudo circula na velocidade do vento que nos constitui como miserável mercadoria que somos, o "não" aparentemente vende mal.
Mas não é verdade. O "não" é a alma do luxo. "Não quero" pode ser a diferença entre sua banalidade e sua sofisticação não afetada. Mas como tudo que é luxo, o "não" é difícil de achar, de cultivar, de sustentar.
Vende-se muito livro de autoajuda por aí. Aqueles que me conhecem sabem como detesto autoajuda. Uma indústria que cresce na mesma proporção em que tudo perde o valor. Mas com isso não quero dizer que não precisemos de ajuda na vida. Somos uns coitados. Mas tem coisa melhor do que esse lixo.
Outro problema é que umas das maiores contradições da vida é que o cotidiano das relações quase sempre inviabiliza afetos espontâneos e nos arremessa a convivência estratégica que apenas "lida" com problemas.
Em resumo, quase sempre os membros da nossa família não são nossos melhores amigos e não é gente em que podemos confiar nossos desesperos porque sempre esperam de nós soluções para as demandas do dia a dia.
Maridos, esposas, filhos, irmãos, pais, quase sempre não servem para ouvir nossos segredos, mas apenas servem para constatar nossas misérias secretas.
Não há relação evidente entre família e paixões alegres (como diria, mais ou menos, o filósofo do século 17 Baruch Spinoza).
As responsabilidades são muitas, as expectativas excessivas, o que era amor se transforma em exigência de sucesso material e segurança previdenciária.
Comumente ataco manifestações de jovens e do povo. Não porque ache que a vida como está seja grande coisa, mas porque considero a infelicidade eterna e atávica do homem a razão final de todo desconforto político, moral e afetivo.
Quem diz que a solução do homem é política é sempre um mau caráter que gosta de política. Seja na universidade, seja em Brasília. A vida é uma prisão e não gosto de rotas de fuga falsas.
No fundo, sou mais "anos 60" do que aqueles que dizem ser "anos 60", mas que viraram "ambientalista de terno e gravata", "defensores da qualidade de vida" ou "roqueiros que cantam para as crianças da África". Para mim vale sempre uma regra básica: não confio em nada em que departamentos de recursos humanos confiam.
Nutro profunda simpatia por dois pensadores utópicos, Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau, ambos do século 19, representantes do movimento libertário americano.
Há uma dor característica causada por sorrisos falsos. Os músculos da face doem por conta do sorriso mentiroso, que é sempre o mais comum em nosso cotidiano, dizia Emerson, autor de "Self-Reliance" ("Autoconfiança"), de 1841, um clássico do movimento libertário.
Os homens em sua maioria vivem uma vida de sereno desespero, dizia Thoreau, autor de "Walden" (1854), narrativa de um período de sua vida em que se isolou numa casa num bosque.
Thoreau ficou mais conhecido como o criador do conceito de "desobediência civil", quando disse que o melhor governo é o que governa menos ou de forma nenhuma.
Hoje o pensamento público tornou-se monótono porque todo mundo quer agradar e salvar o mundo. Eu não quero salvar ninguém, nem aspiro a um mundo melhor.
Como dizia Emerson, existem grandes vantagens em sermos mal compreendidos (misunderstood).
A mania de sermos completamente compreendidos nada mais é do que o desejo de agradar a todos o tempo todo, uma das pragas típicas de um mundo marcado pelo marketing de tudo.
Em 2012 espero ser muito mal compreendido por todos aqueles que quiserem fazer de mim seu ídolo, positivo ou negativo, supondo que sabem exatamente o que eu penso ou o que sou.
Espero, acima de tudo, como dizia Thoreau, que não tenha que ir a lugar nenhum para o qual eu precise comprar uma roupa nova.

domingo, 15 de janeiro de 2012

OUTRO PARADIGMA: ESCUTAR A NATUREZA

Agora que estão aí as grandes chuvas, inundações, temporais, furacões e deslizamentos de encostas, temos que reaprender a escutar a natureza.
Toda nossa cultura ocidental, de vertente grega, está assentada sobre o ver. Não é sem razão que a categoria central – idéia – (eidos em grego) significa visão. A televisão é sua expressão maior. Temos desenvolvido até os últimos limites a nossa visão. Penetramos com os telescópios de grande potência até a profundidade do universo para ver as galáxias mais distantes. Descemos às derradeiras partículas elementares e ao mistério íntimo da vida. O olhar é tudo para nós.
Mas devemos tomar consciência de que esse é o modo de ser do homem ocidental e não de todos.
Outras culturas, como as próximas a nós, as andinas (dos quéchuas e aimaras e outras) se estruturam ao redor do escutar. Logicamente eles também veem. Mas sua singularidade é escutar as mensagens daquilo que veem.
O camponês do antiplano da Bolívia me diz: “eu escuto a natureza, eu sei o que a montanha me diz”. Falando com um xamã, ele me testemunha: “eu escuto a Pachamama e sei o que ela está me comunicando”.
Tudo fala: as estrelas, o sol, a lua, as montanhas soberbas, os lagos serenos, os vales profundos, as nuvens fugidias, as florestas, os pássaros e os animais. As pessoas aprendem a escutar atentamente estas vozes.
Livros não são importantes para eles porque são mudos, ao passo que a natureza está cheia de vozes. E eles se especializaram de tal forma nesta escuta que sabem, ao ver as nuvens, ao escutar os ventos, ao observar as lhamas ou os movimentos das formigas o que vai ocorrer na natureza.
Isso me faz lembrar uma antiga tradição teológica elaborada por Santo Agostinho e sistematizada por São Boaventura na Idade Media: a revelação divina primeira é a voz da natureza, o verdadeiro livro falante de Deus.
Pelo fato de termos perdido a capacidade de ouvir, Deus, por piedade, nos deu um segundo livro que é a Bíblia para que, escutando seus conteúdos, pudéssemos ouvir novamente o que a natureza nos diz.
Quando Francisco Pizarro em 1532 em Cajamarca, mediante uma cilada traiçoeira, aprisionou o chefe inca Atahualpa, ordenou ao frade dominicano Vicente Valverde que com seu intérprete Felipillo lhe lesse o requerimento, um texto em latim pelo qual deviam se deixar batizar e se submeter aos soberanos espanhóis, pois o Papa assim o dispusera, caso contrário poderiam ser escravizados por desobediência.
O inca lhe perguntou de onde vinha esta autoridade. Valverde entregou-lhe o livro da Bíblia. Atahaualpa pegou-o e colocou ao ouvido. Como não tivesse escutado nada, jogou a Bíblia ao chão.
Foi o sinal para que Pizarro massacrasse toda a guarda real e aprisionasse o soberano inca. Como se vê, a escuta era tudo para Atahualpa. O livro da Bíblia não falava nada.
Para a cultura andina tudo se estrutura dentro de uma teia de relações vivas, carregadas de sentido e de mensagens. Percebem o fio que tudo penetra, unifica e dá significação. Nós ocidentais vemos as árvores, mas não percebemos a floresta. As coisas estão isoladas umas das outras. São mudas. A fala é só nossa.
Captamos as coisas fora do conjunto das relações. Por isso nossa linguagem é formal e fria. Nela temos elaborado nossas filosofias, teologias, doutrinas, ciências e dogmas. Mas esse é o nosso jeito de sentir o mundo. E não é de todos os povos.
Os andinos nos ajudam a relativizar nosso pretenso “universalismo”. Podemos expressar as mensagens por outras formas relacionais e includentes e não por aquelas objetivísticas e mudas a que estamos acostumados. Eles nos desafiam a escutar as mensagens que nos vem de todos os lados.
Nos dias atuais devemos escutar o que as nuvens negras, as florestas das encostas, os rios que rompem barreiras, as encostas abruptas, as rochas soltas nos advertem. As ciências na natureza nos ajudam nesta escuta.
Mas não é o nosso hábito cultural captar as advertências daquilo que vemos. E então nossa surdez nos faz vitimas de desastres lastimáveis. Só dominamos a natureza, obedecendo-a, quer dizer, escutando o que ela nos quer ensinar. A surdez nos dará amargas lições.

sábado, 14 de janeiro de 2012

SILÊNCIO POR ESCRITO

Por que tantos livros?, pergunto-me toda vez que entro numa livraria. Nas semanas que precedem o Natal, o assombro é ainda maior. As livrarias abarrotadas deveriam me encantar, mas elas, sinceramente, me assustam um pouco.
"Demasiados libros", queixou-se o poeta e ensaísta mexicano Gabriel Zaid, num ensaio de cento e poucas páginas que, inevitavelmente, materializou-se como livro, no início da década. Porcarias em demasia - deformo, pero no mucho, a tradução. Às vezes penso que a tão temida e discutida crise da indústria editorial talvez seja uma hipérbole, ou não haveria tanta gente escrevendo e publicando qualquer coisa para gratificar o ego e cevar a vaidade. E me lembro de Sócrates.
Sócrates não escreveu uma linha, e no entanto "inventou" a filosofia. Sem gastar tinta, Jayme Ovalle enriqueceu mais a vida cultural brasileira do que muitos escribas do passado e do presente. Graças apenas a quatro cartas contra a guerra, endereçadas a André Breton, Jean Vaché entrou para a história da literatura francesa da primeira metade do século passado.
O que me faz lembrar de todos aqueles autores e personagens literários que, por agudo senso de autocrítica, desencanto com o alcance das palavras, respeito ao próximo ou motivo mais nobre, optaram pelo silêncio, preferiram ser parcimoniosos ou mesmo ágrafos a entregar-se à grafomania. De Rimbaud, por exemplo, que aos 22 anos trocou em definitivo a poesia pela aventura. De Juan Rulfo, que ficou 30 anos em voluntário jejum literário. Do catalão Felipe Alfau, precursor do pós-modernismo, que passou em branco as últimas cinco décadas de sua vida. E de Monsieur Teste, alter ego de Paul Valéry, que não só desistiu de escrever como atirou sua biblioteca pela janela.
Adorno achava impossível escrever versos depois do Holocausto. Jay McInerney repetiu-lhe o exagero quando as torres gêmeas desabaram. Razões mais imponderáveis podem afetar ou mesmo esterilizar a criatividade de poetas e escritores. Por acreditar que "tudo já havia sido dito", La Bruyère não produziu mais que uma obra de textos curtos, embora essenciais para a compreensão dos costumes na França no século 17. Hugo von Hoffmanstahl projetou-se em pelo menos dois personagens, Lorde Chandos e Hans Bühl, para dar vazão à sua crescente descrença na linguagem, incapaz de "penetrar no âmago das coisas" e "expressar nossas emoções". Bühl, o desiludido protagonista da comédia "Der Schwierige "(O Difícil), chega mesmo a confessar que entende menos a si próprio quando fala do que quando está calado.
George Steiner, um dos primeiros teóricos da "poética do silêncio", deixou de escrever pelo menos sete livros por não ter suportado o desgaste emocional e a pressão psicológica que seus temas lhe impuseram. Os livros foram abortados, mas renderam um ótimo ensaio confessional de 209 páginas, editado há três anos com o título de My Unwritten Books. Os livros que afinal não escrevemos, diz Steiner, geram mais que um vazio, são uma "sombra ativa, irônica e angustiante", a nos lembrar sempre de vidas que deixamos de viver e caminhos que deixamos de trilhar. Mas eles nos dão a chance de "errar melhor", se soubermos aproveitá-la.
De um aforismo de La Bruyère - "A glória ou o mérito de certos homens consiste em escrever bem; o de outros, em nada escrever" - Enrique Vila-Matas pinçou a epígrafe perfeita para as fascinantes divagações sobre o que rotulou de "literatura do não", sobre romancistas e poetas que nada ou quase nada escreveram, contidas em Bartleby e Companhia, assunto de um debate que a Cosac Naify e a livraria Cultura programaram para breve.
Em Bartleby, o parabólico amanuense de Herman Melville, Vila-Matas identificou a origem de uma vertente fundamental da literatura contemporânea. Bartleby é um personagem kafkiano avant la lettre, símbolo e síntese do silêncio criativo ou da impossibilidade de escrever, que, para Kafka, é a premissa básica da literatura. Numa de suas parábolas, o silêncio das sereias afigurava-se mais ameaçador (e "inescapável") que seus cantos.
Quando as palavras se saturam de selvageria e mentiras, nada fala mais alto que um poema não escrito. Steiner desenvolveu essa tese num ensaio publicado há quase 50 anos, em boa parte articulado em torno do sentimento de impotência criativa de Hoffmanstahl e outros autores austríacos dos anos 1920 (destaque para o Hermann Broch de Os Sonâmbulos), todos ressabiados, em graus diversos, com a deterioração semântica da língua alemã e a instabilidade crônica da Europa Central. Um lamento sobre a "perda da palavra" concluía a ópera Moisés e Aron, que Arnold Schoenberg compôs em 1933, justamente no ano da ascensão do nazismo ao poder.
Steiner sugeriu que se fizesse um estudo entre as parábolas do silêncio de Kafka, Hoffmanstahl, Broch, Karl Wolfskehl, e o filósofo Wittgenstein. Para o autor do Tractatus Logico-Philosophicus, o mais expressivo de sua obra era o que não havia sido escrito.
Blaise Cendrars flertou um bocado com a ideia de uma bibliografia de obras jamais escritas. Marcel Bénabou foi além, publicando em 1986 um manifesto em favor da "literatura em potencial", intitulado Pourquoi Je n’ai pas Écrit Aucun de Mes Livres (Por Que não Escrevi Nenhum de Meus Livros). Já publicara meia dúzia, até aquela data, mas queria vender o peixe de que as obras que só ficaram na sua imaginação tinham lá seu valor e existiam virtualmente, em alguma biblioteca borgesiana de ficções fantasmagóricas. Com notas de rodapé que Vila-Matas confessadamente adoraria ter escrito.

O HAITI É AQUI

Para escrever como pretendo, sobre a “invasão haitiana” das fronteiras brasileiras, vou precisar recorrer aos ensinamentos, no Curso de Direito da AVEC nos idos de 2001/2002, do Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Vilhena, Dr. Gilberto Gianazi (acho que errei de novo...), de quem prezo e me orgulho da amizade.
A chegada, vá lá, maciça, de haitianos ao Brasil é uma ótima oportunidade para refletir sobre o que transforma grupos de pessoas em povos. E a nossa reação à, vá lá, invasão é uma medida insofismável de nossa generosidade.
A discussão sobre o que constitui um povo não é nova e permeou parte do século 19. A contraposição básica é entre o jus sanguinis (direito de sangue), pelo qual a nacionalidade de um indivíduo é dada por sua ascendência, e o jus soli (direito de solo), pelo qual ela decorre do local de nascimento ou, de modo um pouco mais fraco, do lugar que a pessoa escolheu para viver.
Mais do que uma minudência jurídica, a distinção traz consigo duas visões de mundo antagônicas.
Como regra geral, a maioria dos países europeus adotava o jus sanguinis - a exceção é a França pós-revolucionária. A ideia aqui é que é o passado comum, consubstanciado em categorias como sangue, raça e língua, que forja uma nação. A nacionalidade se torna assim um atributo imutável do indivíduo. Essa concepção encontra amparo nos textos de pensadores românticos, notadamente o alemão Johann Gottlieb Fichte (1762-1814).
Menos essencialista e, por isso mesmo, mais democrático, o jus soli encontrou seu maior advogado no filósofo francês Ernest Renan (1823-1892), que escreveu em meio à disputa entre a França e a Alemanha pelo controle da Alsácia-Lorena. Para ele, o que definia um povo era a vontade das pessoas de construir um futuro juntas. A existência de uma nação, dizia, era um "plebiscito diário" e envolvia "ter feito coisas grandes juntos e querer fazer ainda mais". Não é coincidência que quase todos os países do Novo Mundo tenham adotado o jus soli.
Assim, restringir a concessão de vistos a haitianos como parece querer parte do governo é uma ideia que vai contra o espírito que presidiu a própria criação do Brasil.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

PRÓTESES DE SILICONE

As criminosas empresas Poly Implant Protheses (PIP, francesa) e Rofil (holandesa) usaram silicone industrial em suas próteses de seios, igualzinho aos travestis pobres que por aqui se injetam com produtos comprados em loja de ferragens. Quem diria, franceses e holandeses dando uma de latinos americanos, pura lambança de terceiro mundo.
No Brasil são cerca de vinte mil mulheres e assemelhados que colocaram próteses das citadas marcas; destas talvez nem 10% o fizeram por necessidade devido ao câncer ou outros problemas, o resto foi por pura vaidade e o nosso Ministério da Saúde acertadamente se responsabilizou por atender as primeiras pelo SUS. Mas por interferência da presidente Dilma todas serão atendidas gratuitamente com nosso dinheiro pelo SUS, que costuma recusar tratamentos caros à doenças graves e outras próteses necessárias, tendo a população, além de doente, que recorrer à Justiça para conseguir atendimento.
Sempre se aponta a falta de verbas quando das queixas de mau atendimento do SUS e agora joga-se dinheiro fora para sustentar a vaidade de pessoas sadias! A conta não ficará pequena e deveria ser paga pelas clínicas que realizaram os implantes que depois acionariam os fabricantes ou então diretamente por estes. Isso cheira a lobby, suborno, corrupção, usar sem discussão dinheiro público para cobrir prejuízos de empresas desonestas. Nem mesmo os planos de saúde tem essa obrigação, quem tem que pagar são os criminosos, porventura o Estado tem indenizado as vítimas da violência no Brasil?
É necessário que o Congresso investigue essa “generosidade” toda com o nosso dinheiro, se há alguma coisa por detrás ou é apenas um ato ditatorial da Presidente. Pelo menos parece que o SUS pretende apenas retirar as próteses colocadas por vaidade e não ao absurdo maior de implantar novos e caros seios. Se as mocreias despeitadas quiserem inflar novamente sua vaidade que o façam com dinheiro próprio, não o nosso.
As últimas notícias dão conta de um desconforto e até confronto com a imposição intempestiva da Presidente e nota-se dentro do Ministério da Saúde um jogo de palavras entre "trocar"e "retirar", sendo retirar o admissível mas nunca a troca, pois o governo estaria usando nosso dinheiro para sustentar desejos de ordem psicológica, puramente estéticos de pessoas descontentes com seu corpo! Para complementar a gritante incapacidade de nossos ministérios quando surge algum imprevisto, além do trocar ou retirar, agora temos também o "todas ou só as que se romperam"! Ou seja, na mesma linha do Ministério da Integração Nacional, que não previne e só libera as verbas depois da tragédia consumada...

PS. E em nome da coerência, o SUS terá que sair por aí caçando travesti pobre a laço e retirar seus depósitos de silicone industrial...

AJUDA TAMBÉM EM CASA

Há dois anos, um fortíssimo terremoto atingia o Haiti, o país mais pobre das Américas, lançando seus mais de 9 milhões de habitantes, cuja maioria já vivia em condição de miséria, em uma catástrofe gigantesca. A capital, Porto Príncipe, foi completamente destruída. Foram cerca de 200 mil mortos em razão do tremor de terra. E o número de desabrigados subiu à casa de milhões.
No calor dos terríveis acontecimentos, a comunidade internacional se mobilizou para ajudar. O mundo se compadeceu do país caribenho, enquanto a ONU contabilizava os enormes prejuízos e classificava a tragédia como uma das maiores da história, prevendo uma difícil recuperação.
O Brasil, que está presente no país desde 2004 com um grande contingente militar para participar das forças de paz da ONU, viu-se definitivamente ligado ao Haiti.
O terremoto provocou a morte da médica e missionária católica Zilda Arns, a grande responsável pelo trabalho bem-sucedido da Pastoral da Criança. Ela se encontrava no país para levar a experiência brasileira no combate à mortalidade infantil. E as tropas brasileiras, que também sofreram baixas, logo se manifestaram para socorrer os haitianos. O governo brasileiro anunciou a doação de milhões de dólares.
Naqueles dias, o economista Irineu Evangelista Carvalho Filho, ph.D. pelo MIT, escreveu sugerindo que, diante de tal crise humanitária, o governo brasileiro acolhesse ao menos 100 mil haitianos. Observou que seria uma gota no oceano da nossa população. Propôs um grande programa de acolhimento, que daria exemplo ao mundo.
O Brasil é um país que se formou recebendo imigrantes que vieram fugindo da pobreza de guerras, em busca de uma vida melhor. Foi assim que se constituiu como uma nação culturalmente diversificada, uma das maiores riquezas de nosso tecido econômico e social. Para confirmar sua vocação, precisa, como no passado, abrir as suas portas.
Os imigrantes haitianos, aliás, se enquadram em um tipo de refugiado que tende a se tornar cada vez mais comum: o que foge de catástrofes da natureza. Eles, de um grande terremoto que potencializou a miséria. E muitos outros, de enchentes e secas, em meio às mudanças climáticas, que também têm nos atingido e transformado milhares de brasileiros em refugiados dentro do próprio país.
Vemos, agora, que o governo abriu uma pequena fresta: os cerca de 4.000 haitianos que entraram no Brasil por vias ilegais, em rotas cheias de perigos, poderão ficar. Mas por que não acolhemos mais?
Quem se propõe a ajudar, como o Brasil fez lá, há que se dispor e se preparar para ajudar também em casa. Nesse novo papel de potência emergente, deve inaugurar um novo tipo de liderança, fraterna e solidária, que o mundo tanto precisa.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

ÚLTIMA CENTELHA

Houve quem achasse precipitada a ação da polícia e do governo de São Paulo ao invadir e desbaratar, mesmo temporariamente, a cracolândia. E imprudente, ao espalhar os usuários de crack por áreas da cidade até então a salvo do convívio com aquelas pessoas. Argumentam também que as ações de segurança e saúde pública devem ser feitas em conjunto e não adianta desgraçar ainda mais a vida dos infelizes sem uma alternativa de tratamento.
Todos os argumentos são válidos, inclusive este, mas há fatores a considerar. Enquanto ilhados naquela região de São Paulo, os usuários sentiam-se seguros dentro da sua miséria. Suas únicas relações eram entre si e com quem comerciavam para conseguir dinheiro ou droga. Era uma cadeia produtiva fechada, que poderia durar pelo resto da (curta) vida de cada um, e não os induzia a considerar a hipótese de lutar pela recuperação.
Ou a sequer considerar seu dia-a-dia na cracolândia, composto de síndrome de abstinência, mendicância, extorsão, indescritível imundície, animais peçonhentos, feridas expostas, assalto sexual permanente, estupro, gravidez, aborto, fome, doença e dor -tudo isso compensado pelos breves momentos de alívio produzidos pela droga. Não existe prazer na cracolândia, só alívio.
Uma ação como a da semana passada, cortando o elo entre o usuário e seus iguais, ou entre o usuário e o traficante, tende a ser algo desesperador para o dependente. Como ele não consegue passar muito tempo sem o produto, a quebra na cadeia, se repetida, pode levá-lo, num extremo, a tornar-se violento e ameaçador - e, em outro, a procurar ajuda, quem sabe internação e tratamento.
Expulsos de seu habitat, ainda que por algumas horas, esses dependentes têm uma chance de exercer a última centelha de razão que lhes resta.

COMPORTAMENTO

Quando divididos entre comer chocolate sozinhos ou resgatar seus companheiros, ratos aparentemente escolhem libertá-los e então comer a guloseima juntos. Prender um dos animais em uma cela faz com que o outro tente abrir e soltar o amigo.
Isso é um estranho exemplo de como os ratos expressam empatia, uma ideia que nós achávamos ser exclusiva de mamíferos superiores.
A empatia é interessante de uma perspectiva evolucionária, já que sugere que o comportamento pró-social talvez tenha surgido antes do que imaginamos. E é interessante também para a neurociência, sugerindo que ratos podem ser usados como modelos de comportamentos humanos.
"Há diversos casos que mostram a empatia não apenas humana, e isso foi muito demonstrado com macacos, mas não com roedores”, afirma o coautor do estudo, Jean Decety, professor de psiquiatria e psicologia na Universidade de Chicago. “Nós fizemos uma série de experimentos com o comportamento de empatia em roedores, e foi realmente a primeira vez que isso foi realizado”.
O simples experimento não usou nada de tecnologia ou métodos estranhos – apenas dois ratos separados, que normalmente estavam juntos em uma jaula.
Os roedores começaram dividindo o local por duas semanas, o suficiente para desenvolver familiaridade. Então, eles foram colocados em câmaras especiais, onde um era inserido em um dispositivo que o prendia, mas que podia ser liberado pelo lado de fora. O outro rato era livre para andar e observar o caso do companheiro.
O rato liberto ficou agitado quando o companheiro de cela estava preso, o que, para os pesquisadores, é evidência de “contágio emocional”, uma forma menor de empatia em que animais dividem medo ou estresse um com outro.
Mas o que aconteceu em seguida foi muito empático. Apesar de agitados, eles não ficaram malucos, congelaram ou muito amedrontados. Ao invés, eles analisaram o dispositivo, morderam-no e o rato livre, além de ficar perto do outro rato preso, chegou até a tocá-lo (confortá-lo?).
Os pesquisadores tentaram de diversas maneiras entender o que motivou os ratos. Eles experimentaram gaiolas vazias, para garantir que o que os movia não era apenas curiosidade. Também tentaram manter os ratos separados após a libertação – o social seria como um prêmio por resgatar o rato preso – mas ainda assim, eles continuam os libertando.
Os cientistas até montaram o paradigma “companheiro versus chocolate”. Um rato livre era colocado em uma área com dois containers, um com um rato preso e outro com chocolate. O rato abriu ambos com quase a mesma frequência, sugerindo que “o valor de libertar o amigo era igual ao de comer chocolate”. Em mais da metade das vezes, os ratos livres não comeram todo o doce, mas deram metade para o companheiro.
Os roedores desenvolveram várias formas diferentes de abrir o dispositivo. Para os pesquisadores, eles aprenderam o sistema.
Ratas também se mostraram mais inclinadas a abrir a porta, “o que conspira para as sugestões de que as fêmeas são mais empáticas”, adicionam os autores.
O principal autor do estudo, Inbal Ben-Ami Bartal, afirma que os ratos não eram treinados, mas desenvolveram a habilidade de libertar seus companheiros. “Eles aprendem porque são motivados por algo interno”, comenta Bartal. “Eles tentaram e tentaram, e eventualmente conseguiram”.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

CHRISTOPHER HITCHENS, A MORTE DE UM INTELECTUAL "DO CONTRA"

Corria o ano de 2003, poucos meses após a derrubada do ditador Saddam Hussein pelas forças da coalizão anglo-americana, quando foram divulgadas fotos mostrando soldados dos EUA claramente abusando de prisioneiros iraquianos. Em imagens chocantes, presos eram mostrados amontoados, nus, cobertos de fezes, encapuzados, ameaçados por cães e em poses obscenas, enquanto sorridentes carcereiros, entre os quais uma jovem franzina de 21 anos de idade, pareciam divertir-se como se estivessem num churrasco. Logo o local dos abusos, a prisão de Abu Ghraib, viraria sinônimo, na imprensa mundial, de tortura e arbitrariedade.
Em meio à onda de revolta geral que se seguiu à publicação das fotos, a opinião que mais se ouviu foi que Abu Ghraib deitava por terra, definitivamente, a justificativa de que a guerra era necessária para derrubar uma tirania e instalar, em seu lugar, a democracia. Como demonstrava o escândalo, os americanos seriam iguais a Saddam etc. e tal.
Foi então que, no meio do clamor universal de condenação aos EUA, surgiu uma voz discordante.
Um escritor e jornalista britânico, com longos anos de militância na esquerda e conhecido por sua defesa intransigente dos direitos humanos - escrevera um livro com duros ataques ao ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, que considerava um criminoso de guerra - publicou um artigo em que, destoando radicalmente da onda mundial anti-EUA, ousava afirmar que, desde a invasão do Iraque e a queda do regime tirânico de Saddam, o respeito aos direitos humanos dos prisioneiros em Abu Ghraib aumentara drasticamente.
Como assim?, perguntaram-se muitos, atônitos. Simples, meus caros, prosseguia o autor do artigo: após a guerra, os americanos compraziam-se em humilhar e expor os prisioneiros em cenas degradantes; na época de Saddam, nenhum desses presos sairia vivo da prisão.
Em outras palavras: Abu Ghraib era agora um centro de torturas; antes, era um matadouro humano. Além do mais, os soldados americanos que aparecem nas fotos judiando dos presos que deveriam guardar responderam a processos e foram condenados, algo impensável na época de Saddam. Alguém poderia negar que houvera uma evolução?
Quem era esse escritor, jornalista e crítico literário que ousou desafiar assim um consenso mundial, do qual faziam parte a totalidade da esquerda, o New York Times, ONGs, a "Velha Europa", o papa etc.?
Seu nome era Christopher Hitchens.
No último dia 15/12, Hitchens, inglês de nascimento, morreu de câncer, aos 62 anos, nos EUA, país que (para horror de muitos de seus críticos) adotara como seu há alguns anos. Uma perda irreparável para todos aqueles que prezam a lucidez e o bom senso, pontuado por generosas doses de polêmica, que eram sua marca registrada.
Hitchens foi um dos poucos, praticamente o único public intellectual, ou intelectual público - figura absolutamente inexistente no Brasil, onde predominam os palpiteiros ou os ideólogos de quinta categoria do tipo Emir Sáder e Frei Betto - a não fazer coro com os que condenaram de antemão a intervenção anglo-americana no Iraque em 2003.
Na ocasião, ele defendeu ardentemente a mudança de regime em Bagdá como um imperativo da democracia e dos direitos humanos em face de um tirano sanguinário, que tinha em sua ficha corrida duas guerras e milhares de mortes em décadas de terror absoluto.
Por causa disso, ele, Hitchens, apanhou um bocado de seus pares, que pareceram não se importar muito com a contradição de falarem em nome da humanidade e, ao mesmo tempo, defenderem a permanência no poder de um facínora como Saddam. Hitchens, ao contrário deles, pode ser acusado de muitas coisas, menos de falta de coerência.
Poucos escritores de nossa época conseguiram revelar, com tanta verve e com tanta ênfase, a idiotia do antiamericanismo, sua completa miopia política e moral, que leva autoproclamados defensores da liberdade a se colocarem como escudo entre os EUA e regimes fascistas regidos por tiranos homicidas.
Raros são os intelectuais que, assim como Hitchens, desafiaram consensos fabricados em nome de princípios, não dando a mínima para a opinião do rebanho e para convencionalismos politicamente corretos. O fato de ser George W. Bush o presidente dos EUA não o deixou cego para o caráter realmente demoníaco (embora ele, Hitchens, fosse ateu) da ditadura de Saddam.
Tenho em Christopher Hitchens uma de minhas referências. Nem tanto por suas idéias, que quase nada tinham de originais (era um divulgador, não um filósofo). Mas, acima de tudo, por sua atitude de rebeldia intelectual, baseada no confronto da maioria e no pensar com sua própria cabeça.
Como polemista, ele era nada menos do que brilhante. Com a mesma lógica implacável com que defendia a derrubada de Saddam (cujo regime totalitário, ao contrário de muitos que se opuseram à guerra, ele conheceu de perto nos anos 70), Hitchens ajudou a demolir mitos como Madre Teresa de Calcutá e, em livros magistrais como A vitória de Orwell e Carta a um jovem contestador, firmar posição em defesa dos ideias democráticos. Era, enfim, um intelectual sem peias ideológicas, um espírito livre lutando pela liberdade - um verdadeiro "do contra".
Hitchens era ateu, e um cínico veria em sua morte prematura uma espécie de castigo divino (o que só reforçaria, a meu ver, seu ateísmo - para quê um deus que fulmina os que não se curvam perante ele?). Ninguém tentou, assim como no caso de Voltaire, chamar um padre. Sabiam que seria inútil. (Li que, em seu leito de morte, em estado terminal de câncer, ele queria falar de literatura.)
Honestamente, porém, acho essa característica de Hitchens - seu ateísmo - a menos interessante de suas qualidades. Muitos conhecem sua obra principalmente por causa do livro Deus não é grande que, juntamente com outras obras de autores como Richard Dawkins, Daniel Dennet e Sam Harris, tornou-se um best-seller da literatura ateísta que, de uns anos para cá, virou moda.
Pessoalmente, acho esse seu livro mais fraco, embora a premissa por trás dele seja interessante - em um momento em que se vê a ascensão de movimentos fanáticos e do fundamentalismo religioso, que atingiu o auge em 11 de setembro de 2001, um autor atrevido vem e ousa afirmar, com todas as letras que não, Deus não é grande, e que é melhor e mais saudável (mental e fisicamente) viver sem essa invenção de padres, rabinos e mulás...
Como polêmica, o livro é certamente eficaz, mas é raso filosoficamente, concentrando-se nos aspectos exteriores da religião, particularmente na forma como leva pessoas em outras circunstâncias boas e sensatas a cometer toda sorte de loucuras e insanidades em nome da fé. Além do mais, Hitchens ignorava que a militância atéista e anti-religiosa pode ser um instrumento para tolher a liberdade, como demonstram as ex-repúblicas comunistas e alguns "movimentos" atuais, que, em nome dos direitos de minorias, pretendem calar a maioria que reza (sim, estou me referindo aos talibãs do gayzismo e assemelhados). Prefiro o Hitchens ácido polemista político, inimigo declarado dos chavões e lugares-comuns esquerdistas que, por ter partilhado um dia, conhecia tão bem e demolia com tanta competência.
O mundo perde com a morte de Christopher Hitchens. Perde em inteligência, perspicácia, incredulidade, inconformismo e, acima de tudo, em espírito crítico e independência intelectual. E fica, infelizmente, um pouco mais parecido com o Brasil de hoje.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O CEMITÉRIO DE PRAGA

O escritor Umberto Eco completou 80 anos no último dia 5, e está de volta às manchetes literárias com seu novo romance 'O Cemitério de Praga', livro que acabo de ler (e recomendo).
Trata-se de uma história envolvente, cujo personagem principal, o único importante que é criado pelo autor, não passa de um pulha, um canalha que aceita qualquer coisa em troca de dinheiro. Sua vida é uma série de farsas e crimes, a cada momento atendendo a um cliente de lado diferente, algumas vezes simultaneamente.
Mas eis o que eu gostaria de destacar do livro: o alerta de como é perigoso selecionar uma “raça” como bode expiatório para todos os males do mundo é válido e sempre atual.
Os homens parecem inclinados a crer em teorias conspiratórias que simplificam um mundo complexo e jogam a responsabilidade de nossos problemas para ombros alheios. Se tais ombros forem de um povo minoritário e facilmente identificável, então o trabalho é mais fácil ainda.
O personagem principal, Simone Simonini, escreve em seu diário: “Sempre conheci pessoas que temiam o complô de algum inimigo oculto – os judeus para vovô, os maçons para os jesuítas, os jesuítas para meu pai garibaldino, os carbonários para os reis de meia Europa, o rei fomentado pelos padres para meus colegas mazzinianos, os Iluminados da Baviera para as polícias de meio mundo – e, pronto, quem sabe quanta gente existe por aí que pensa estar ameaçada por uma conspiração...
Aí está uma forma a preencher à vontade, a cada um o seu complô”. Por trás do encanto pelas teorias conspiratórias, jaz o ressentimento: “A que aspira cada um, tanto quanto mais desventurado for e pouco amado pela sorte
Ao dinheiro e, conquistado esse sem fadiga, ao poder (que volúpia em comandar um semelhante e em humilhá-lo!) e à vingança por todos os agravos sofridos (e todos sofreram na vida ao menos um agravo, por menor que tenha sido). [...]
Afinal, pergunta-se cada um, por que fui desfavorecido pela sorte (ou ao menos não tão favorecido quanto gostaria), por que me foram negados benefícios concedidos a outros menos merecedores do que eu?
Como ninguém pensa que suas desventuras possam ser atribuídas à sua mediocridade, eis que se deverá identificar um culpado”.
Logo, muitos desejam encontrar este grupo, esta classe, esta raça responsável por seus problemas, suas misérias. O trabalho do criador de complôs fica então bastante facilitado, pois ele encontra um público ávido por suas invenções e mentiras. “Convém que as revelações sejam extraordinárias, perturbadoras, romanescas. Somente assim tornam-se críveis e suscitam indignação”.
Além disso, “você jamais deve criar um perigo de mil faces, o perigo deve ter uma só, senão as pessoas se distraem”. Os judeus, povo durante muito tempo sem Pátria e, portanto, minoritário, relativamente fácil de ser identificado, e com muitos casos de sucesso material (até porque a Igreja sempre os ajudou, condenando a prática da usura entre seus seguidores), eram um alvo evidente para as teorias conspiratórias.
Como o russo Rachkovsky explica no livro: “Para ser reconhecível e temível, o inimigo deve estar em casa ou na soleira de casa. Eis por que os judeus. Eles nos foram dados pela Divina Providência, então vamos usá-los, meu Deus, e rezemos para que haja sempre um judeu a temer e a odiar. É necessário um inimigo para dar ao povo uma esperança. Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico. É preciso cultivar o ódio como uma paixão civil. O inimigo é o amigo dos povos. É sempre necessário ter alguém para odiar, para sentir-se justificado na própria miséria. O ódio é a verdadeira paixão primordial”.
Foi desta forma que nasceu Protocolos dos Sábios de Sião, um conjunto de textos mentirosos que imputavam aos judeus um complô para dominar o mundo. Ele fora forjado pela polícia secreta do Czar Nicolau II, e ganhou inúmeras traduções pelo mundo todo, ajudando a disseminar o antissemitismo. Em 1921, o London Times descobriu as relações com o livro de Joly, publicado muitos anos antes, e denunciou os protocolos como uma falsificação. Mas o encanto pelas teorias conspiratórias falou mais alto, e o livro foi publicado várias vezes como autêntico depois disso.
Hitler, em Minha Luta, chega a escrever que os protocolos são verdadeiros, e a melhor prova é que os judeus negam sua veracidade. Para o nazista, quando todos tiverem conhecimento dos incríveis planos judaicos, o mundo estará perto da “solução final”, ou seja, o extermínio desta “raça”.
O horror do Holocausto, resultado desta campanha antissemita intensiva ao longo de décadas, ainda está fresco na memória de muitos. Mas o risco é sempre real, especialmente em tempos de crises, pois os homens são suscetíveis a teorias conspiratórias mirabolantes, e os judeus sempre serão um alvo fácil.
Nada mais reconfortante para os medíocres do que crer que seus infortúnios são obra de uma cúpula pequena reunida em locais secretos para construir complôs e dominar a humanidade.
É tudo culpa “deles”.
E assim os fracassados alimentam o ódio que aquece suas almas.