"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O Parto Antes da Cesariana

Ao longo de muitos séculos, o trabalho de parto era o último grande mistério a marcar o processo de gestação de uma mulher. Desde o início da gravidez, tanto a futura mãe como sua família torcia para que o trabalho de parto pudesse se transcorrer da melhor forma possível. Caso contrário, o nascimento da criança poderia se transformar em uma dolorosa experiência capaz de oferecer diversos riscos tanto para a gestante como para a nova vida que estava por vir. Durante muito tempo, a situação de parto foi resolvida de modo caseiro com a atuação das mulheres da casa auxiliadas por uma parteira mais experiente. Nos casos mais complicados, a falta de técnicas, aparelhos e medicamentos transformavam o nascimento em um terrível fator de risco para o bebê e para a mãe. Sendo assim, passaram-se muitas décadas até que os estudos médicos desenvolvessem alternativas seguras aos nascimentos de difícil execução. No final do século XVI, Peter Chamberlen inventou o primeiro fórceps utilizado na retirada do recém-nascido. Nos primeiros procedimentos, a engenhoca era acoplada à cabeça da criança e puxada até que fosse integralmente retirada da mãe. Quando se realizava a remoção de um natimorto, alguns médicos utilizavam a craniotomia, um terrível procedimento médico em que se realizava a perfuração do crânio fetal até que a extração fosse possível. No século XX, os partos passaram por uma nova revolução quando as técnicas da cesariana avançaram de modo significativo. A aplicação de anestesias, os novos procedimentos de esterilização e o emprego da incisão baixa possibilitaram que partos antes considerados fatais fossem executados com grande êxito. No entanto, em meio a tantas benesses, existem equívocos históricos e culturais quando nos reportamos a essa forma de nascimento. O erro histórico consiste em acreditar que a cesariana foi criada graças ao famoso ditador romano Júlio César, que teria nascido desse modo. Na Roma Antiga, a incisão na barriga da mulher só acontecia quando esta já havia morrido ou quando nenhum dos dois resistia às complicações do parto normal. No caso de Júlio César, registros diversos apontam que sua mãe, Aurélia, ainda viveu depois de dar à luz ao seu ilustre filho. Sendo assim, era impossível que ela tivesse feito uma cesárea. Do ponto de vista cultural, vemos que a popularização da cesariana nos últimos quarenta anos marginalizou outras formas de parto seguras e mais saudáveis. O medo de sentir dor ou não resistir ao trabalho de parto fez com que diversas mulheres e médicos transformassem esse processo natural em um simples procedimento técnico. Nos últimos anos, pesquisas indicam que a opção pelo parto normal reduz o risco de uma série de complicações e produz um impacto psicológico positivo na mãe e na criança. Com isso, podemos ver que o processo de modernização dos procedimentos médicos não implica necessariamente no controle intenso dos processos fisiológicos naturais que envolvem tal situação. Não por acaso, vemos que diversos programas de saúde pública hoje incentivam a participação das tradicionais parteiras que, durante séculos, tiveram um papel fundamental para que várias vidas ganhassem o mundo. Enfim, a cesariana não pode ser mais vista como um avanço irrefutável da medicina.

A Doação de Constantino

No processo de formação da Igreja Católica, observamos que o fortalecimento dessa instituição enfrentou situações que ameaçavam a sua unidade. Uma delas ocorreu no ano de 476, quando a queda do último imperador romano do Ocidente estabeleceu o triunfo das invasões bárbaras na Europa. Mais que um simples evento de ordem política e militar, esse acontecimento poderia significar o enfraquecimento do cristianismo frente às religiões pagãs que tomavam corpo. Foi então que os clérigos da alta cúpula cristã apresentaram a chamada Doação de Constantino, um documento de 337 onde o imperador romano de mesmo nome teria reservado todo o Império Romano do Ocidente para a Igreja. Apesar de não ter assumido os reinos europeus diretamente, esse mesmo documento teve grande força política para expressar a influência dos chefes cristãos frente os reinos que se organizavam naquele tempo. É assim que vemos, entre outros argumentos, de que modo a Igreja acumulou seu poder de interferência em questões políticas da Europa. Contudo, o peso desse documento acabou sendo desmascarado no século XV, quando o estudioso Lorenzo Valla apresentou uma série de documentos que comprovaria a falsidade do tempo em que o documento da doação teria sido feita. Naquela época era impossível se valer de algum recurso tecnológico que pudesse calcular exatamente a datação do documento. Foi então que Lorenzo examinou o conteúdo do texto, observando os erros linguísticos existentes e as expressões empregadas em sua construção. Por meio de seus estudos, detectou a presença de helenismos e barbarismo que não correspondiam ao uso da língua latina naqueles tempos do império de Constantino. Além dessas questões formais, o estudioso percebeu que a natureza do documento, elaborado com um único testemunho, não correspondia ao hábito da época. Ao mesmo tempo, ele apontou como incongruente o uso do termo “sátrapa” (expressão de natureza oriental) para fazer referência aos membros do Senado Romano e a menção de Constantinopla como uma cidade cristã em um tempo em que a mesma, assim como outras regiões dadas como de dominação romana, estava longe de assumir tal posição. O trabalho de Valla, ao longo do tempo, não significou apenas uma tentativa de se desestabilizar a autoridade do clero. Para os historiadores, sua forma de questionar o documento exigiu a reunião de informações que envolviam as transformações da língua ao longo dos tempos e a necessidade de se estabelecer uma relação de identidade entre o documento e a época em que ele teria sido produzido. Desse modo, a invalidação da Doação de Constantino serviu de grande contributo no estudo do passado.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Mito da Caverna de Platão

Imagine uma caverna grande, úmida e escura. Nessa caverna vivem algumas milhares de pessoas. Essas pessoas desde que nasceram, vivem com correntes nos braços, pescoço e pés, em cadeiras enfileiradas de modo que na frente dessas pessoas há um imenso paredão fino. Semelhante ao cinema moderno. Por trás das fileiras de cadeiras, há uma fogueira. Entre a fogueira e as cadeiras passam algumas pessoas com objetos e animais. Os sons dessas pessoas, objetos e animais ecoam pela caverna até chegar ao grande paredão e por fim chegar aos acorrentados. A luz que a fogueira emite bate nessas pessoas, animais e objetos e nas demais pessoas acorrentadas fazendo surgir sombras no grande paredão. Essas pessoas acorrentadas vêem essas sombras como se fossem reais. Pois esse é o único mundo que conhecem. Mais acima da caverna, como se fosse os camarotes, vivem os chamados amos da caverna. São eles que controlam todo o esquema. No topo da caverna, existe uma pequena saída pelo qual o sol emite um pequeno feixe de luz que chega até lá embaixo, próximo às pessoas acorrentadas. Porém, entre a fogueira e o topo da caverna existe um imenso paredão bem íngreme, cheio de obstáculos, difícil de escalar. Do lado de fora da caverna existem árvores, rios, o sol... enfim, a natureza e alguns sábios. As sombras mais diferenciadas são eleitas pelos acorrentados para serem os líderes. Em diversas áreas. Enquanto as pessoas acorrentadas discutem entre si sobre o mundo em que vivem, os amos da caverna riem e caçoam deles. Uma das características desses amos é que eles não costumam aparecer. Não gostam de aparecer. Só que uma dessas pessoas, que chamaremos de Sócrates, começa a se questionar sobre toda essa situação. Quanto mais se questiona mais ele vai percebendo que há algo de errado nele e no mundo em que vive. As outras pessoas acorrentadas mais próximas já começam a olhar diferente pra ele. Sócrates não liga e começa a se remexer da cadeira. Quanto mais se remexe da cadeira, mais ele sente que há algo de estranho com ele. Até que um dia percebe que está acorrentado. Se você está dormindo, acorda e vê que está acorrentado, qual a sua reação, leitor? Pois bem, Sócrates não é diferente, e quer se libertar das correntes. Depois de muita luta, consegue se livrar das correntes. Primeiramente de braços e pescoço. Livre das correntes do pescoço ele pode olhar de lado e para trás e vê as pessoas acorrentadas, a fogueira, enfim, consegue ter uma visão da caverna e perceber que esse mundo é uma ilusão. Depois, consegue se livrar das correntes dos pés. Analise bem: ele nasceu e cresceu nessa situação, nunca andou. Quando se levanta e começa a andar tem extrema dificuldade. Já está desgastado pelo imenso esforço que teve pra se livrar das correntes. Mas consegue se adaptar e andar. Sócrates tenta alertar os outros acorrentados, inclusive os amigos, porém, sem sucesso. Pois esses acorrentados se julgam viver em um relativo "conforto" e tomam esse mundo como real. Quando vêem o estado de Sócrates, todo desgastado fisicamente e até psicologicamente, dizendo que o mundo em que vivem não é real, que vivem numa caverna úmida e escura, e etc... alguns acorrentados chegam até a chamá-lo de louco. Sócrates vê que não vai obter sucesso e, vendo um pequeno feixe de luz vindo do topo da caverna, ele decide ir em direção a essa luz. Mas para isso é preciso escalar um grande paredão íngreme, cheio de obstáculos. Na escalada, de vez em quando escorrega, cai, e volta a escalar. Depois de muita luta, ele chega ao topo da caverna, e consegue sair. Vê o sol pela primeira vez, e nesse momento quase fica cego, pois nunca havia visto tanta luz. Depois de um tempo, ele consegue se adaptar a luz do sol, mas ainda com a vista não muito boa. Ele vê a natureza, os sábios e etc. Conversa com alguns sábios e vê que este é o mundo real. Porém, bate um sentimento de misericórdia: e os amigos e todas as outras pessoas acorrentadas, vivendo nesta caverna achando que vivem num mundo real? Ele decide voltar. A descida foi tão difícil quanto à subida do paredão. Chegando nos amigos acorrentados, com a vista ruim, todo arrebentado, ele vai tentar libertar alguns acorrentados. Porém a recepção foi pior do que antes, quando ele tentou alertá-los antes de subir. Vê que alguns até são capazes de lutar ferozmente para proteger as correntes. Então, Sócrates chega a conclusão que o segredo é contar aos poucos, começando inicialmente a dizer que estão com os braços acorrentados, por exemplo. Observa também que existe algumas pessoas que começam a se questionar e tem uma certa disposição a ouvi-lo. Essas pessoas são os idealistas. Uma dessas pessoas solta os braços e o pescoço, e como esse está numa condição parecida com o amigo acorrentado ao lado, este amigo acorrentado vai estar mais disposto a ouvi-lo. Outro que consegue perceber que está acorrentado e começa a se remexer da cadeira, conta para o amigo ao lado que aquele mundo é uma ilusão e é preciso acordar. Assim uns vão se soltando, ajudando os mais próximos e também, caminhando em direção ao feixe de luz. Criando assim uma corrente discipular de mestre e discípulos. O que se solta é o filósofo. A luz do sol é a verdade. O que desce para ajudar os outros acorrentados é o político. As sombras, o mundo da ilusão. A luz da fogueira, os nossos desejos. As correntes, a ignorância. Os amos são aqueles que controlam e mantém o mundo da ilusão tirando proveito da situação. Os acorrentados são a humanidade. O caminho de escalada até a luz do sol está cheio perigos: diversas crenças estranhas, ideologias confusas, materialismo e/ou misticismo em excesso, armadilhas etc. Esses são os obstáculos. A filosofia vem pra proteger esse idealista que está se remexendo da cadeira, mostrar atalhos seguros na escalada, até chegar ao topo da caverna e voltar. Esse é um resumo do Mito da Caverna, o capítulo VII do livro A República, que é de autoria do filósofo grego Platão. Mesmo escrito no século IV a.C., continua atual. Aliás, existem várias obras que se referem a esse mito como o filme Matrix e o livro Alice no País das Maravilhas. Questione-se: será que os muitos líderes do presente e do passado, não são as sombras do Mito da Caverna? Ou são os amos? Será que não está faltando filósofos na política? Não só na política como em outras áreas? E como distinguir a verdadeira filosofia da falsa filosofia? São muitas as perguntas. Os antigos já diziam que a filosofia é a mãe de todas as ciências, e que a reposta está dentro de nós. É só procurarmos nos tornar, verdadeiramente, o que somos: seres humanos. Assim sendo, reconheceremos facilmente, quem é quem e qual caminho seguirmos. Como diria Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo".

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Tartaruga paraplégica andando de ré

Leio em uma mesma semana que o ex-jogador Edmundo está livre de qualquer punição por conta do acidente provocado por ele, em que houve vítima fatal, posto que o processo prescreveu; o Superior Tribunal de Justiça tornou sem efeito as provas apresentadas pela Polícia Federal na Operação Boi Barrica, que investigava as ações da família Sarney; a família do de Carlos Lamarca quer indenização de mais de R$ 900 mil, além de pensão e promoção do terrorista à patente de coronel e o recebimento de todos os vencimentos retroagidos e o reconhecimento, por parte do Exército, que Lamarca não foi um desertor. No caso do Edmundo, tenho certeza que a maioria dos brasileiros deve ter imaginado o alívio do ex-atleta ao ser comunicado da decisão dos juízes, mas quantos pensaram nos familiares das vítimas? Este é um ponto. O outro é o descalabro de ver um caso de morte ser deixado caducar, não bastasse a própria aberração da possibilidade de casos de morte prescreverem. No mínimo é um acinte às famílias das vítimas. Se Edmundo fosse absolvido em juízo, poderia até causar discordâncias daqui e dali, mas ficaria o alívio de a justiça ter sido feita. O inaceitável é a falta de diligência, o desinteresse com o público. E a imprensa dando a entender que a causa tinha apenas um lado, o da celebridade, esquecendo-se das muitas outras vítimas diretas e indiretas. Costumo assistir aos programas policiais americanos e uma coisa que sempre percebo nos agentes da lei é a importância que dão em trazer esclarecimentos às famílias das vítimas, a questão humanitária a que se dá importância em casos onde há morte. Por aqui, em que tráfico de influência e que jeitinhos são dados de acordo com o grau de amizade que uma das partes tem com os agentes legais, aos mortais comuns tenta-se dar uma aparência de que o que interessa é a frieza da lei. Um engodo a mais para uma sociedade passiva. E a Operação Boi Barrica... Jamais saberemos se, do ponto de vista legal, a família Sarney é culpada ou inocente das acusações que a Polícia Federal lhe imputa. Assim como na Operação Satiagraha, os tecnicismos anulam a verdade. Não bastasse o tempo – mais uma vez o grande aliado das injustiças – longo para que os crimes sejam julgados, prefere-se culpar os investigadores do que esclarecer a verdade dos desmandos, com o medo, conivência ou fazendo jus às vendas de sentenças (talvez haja uma quarta possibilidade, mas me recuso a ventilá-la) nosso Judiciário das altas esferas prefere ajoelhar-se diante dos mandatários da nação do que darem satisfações satisfatórias aos cidadãos. Já que o fato está consumado e não existe mais a Operação Boi Barrica, me prenderei a uma questão “menor”. Acabou-se, por conseguinte, a censura ao jornal Estado de São Paulo, proibido de falar o nome dos filho do Zezinho Ribamar, providentemente salvo pelos amigos juízes, ou continuará censurado? O Lamarca morreu há 40 anos, o regime militar acabou há 16 anos e a sentença sobre seu caso ainda não saiu? O que há de tão difícil nessa questão para que se levem décadas para se chegar a uma decisão? Apelemos para o Aulete Digital: Deserção: 1 Mil. Ação ou resultado de desertar. 2 Ato de abandonar (um partido, uma causa etc.); DEFECÇÃO Desertar: 1 Abandonar o serviço militar sem licença 2 Passar para outro partido, país etc.; BANDEAR-SE (o grifo é do dicionário) 3 Desistir ou desviar-se de. Pelo Código Militar, se um sentinela, que fica tres horas na guarita, deixar o posto para tirar uma soneca, é considerado um desertor. Não seria deserção, portanto, o militar abandonar TODAS as suas funções, levar armas (furto) e uniformes, combater o próprio Exército, assassinar os antes companheiros de farda, bandear-se para o lado opositor? A ditadura foi truculenta em várias ações? Sim. Mas não saiu pelas ruas matando qualquer cidadão. A luta armada foi decretada pela oposição, foi opção dos indivíduos, não deve ser o Estado punido por ações decididas pela consciência dos cidadãos. Lamarca foi para as armas por vontade própria, não por imposição das Forças Armadas. Sem falar que a luta armada não trouxe qualquer ganho para a sociedade, só fez vítimas de ambos os lados. Nem um milímetro da redemocratização pode ser creditado aos terroristas armados. Se ela, a redemocratização, pode ser creditada à oposição que seja feita na medida certa, aos que lutaram democraticamente, dentro do que a legislação permitia. Nomes como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães e Teotônio Vilela fizeram muito mais pelo país, mesmo não se concordando com a essência de seus atos, do que bandidos armados, assassinos indiscriminados que mataram até mesmo companheiros que passaram a discordar das táticas utilizadas. Seria cômico, se não fosse tão grave, a justificativa da família de Lamarca que o capitão não desertara do Exército, as Forças Armadas é que teriam desertado de Lamarca. Uma inversão de valores tão absurda que é capaz da absurda Justiça lhe dar razão.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Quase perfeita

A cada dia fica mais evidente a dicotomia entre o discurso e a prática petistas. Salta aos olhos o irritante discurso divorciado da prática, como se vivesse o governo/PT num mundo paralelo, um País das Maravilhas inimaginado em qualquer ficção infanto-juvenil. Lula havia afirmado que a saúde pública estava perto da perfeição, em mais um espetáculo de escárnio e cretinice, pouco caso com a realidade sofrida de quem buscava o sistema estatal em seus momentos de dor, trauma e desespero. Se nessas horas de emergência o sistema é falho, sucateado, mal assistido, deficitário e desequipado de aparelhos, remédios e pessoal, nada ou muito pouco pode-se falar da quase inexistente medicina pública preventiva. Sua sucessora fala em 10% de inaceitabilidade da máquina pública de saúde. O que inaceitabilidade para essa gente? Filas absurdas para atendimento emergencial? Meses de espera para uma consulta ou um exame? Hospitais caindo aos pedaços, como bem exemplifica o Hospital do Fundão, da UFRJ? Falta de medicamentos em postos de saúde? Ambulâncias sucateadas em pátios enquanto inúmeras localidades periféricas em todos os estados e em mais da metade dos municípios encontram-se desassistidas desses veículos? Nas fraudes descobertas, nas desconfiadas e na, por enquanto, escondidas? Se esses e muitos outros problemas resumem-se a 10% de inaceitabilidade do sistema, então Lula tinha razão, estamos perto da perfeição. 90% perto da perfeição. Não é assim, porém, que percebem a realidade as multidões que afluem diariamente aos hospitais e postos de saúde, gente que chega com unha encravada e volta para casa com gangrena na mão, gente que pernoita doente nas calçadas para conseguirem uma senha para exames clínicos. Morre-se em silêncio nas filas e este silêncio é esporadicamente quebrado quando os Jornais Nacionais da vida flagram a morte de um velhinho à porta de um hospital por falta de assistência enquanto milhares de outros velhinhos sofrem Brasil a dentro e os gerentes do país tratam-se nos Sírios e Libaneses e Alberts Einsteins de excelência, às custas do mesmo erário que engorda e continua deficitário. Pelo tanto de impostos que pagamos, não queremos “aceitabilidade”, mas qualidade superior.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O Brasil no show business

Nos anos 50 e 60 o Brasil era parada obrigatória dos grandes astros do show business americano e os artistas brasileiros eram tratados a pão de ló naquelas bandas acima do Equador. Nat King Cole, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Orson Wells e tantos e tantos outros passaram por aqui, fosse de férias, fosse para shows ou para conhecer o que é que a brasileira tem. A fama do Hotel Copacabana Palace deve muito a esses astros que se hospedavam ali costumeiramente. Na mão inversa, o Brasil mandava para lá Carmem Miranda, a mais brasileira de todas as portuguesas, Tom Jobim, João Gilberto, além de outros muitos com pouca fama, principalmente músicos, nas trilhas sonoras de filmes hollywoodianos. Aí veio a ditadura e, já com o ranço incolor politicamente correto, passou a ser de mau tom visitar o país. Os astros sumiram, Brasília virou capital da Bolívia, nossa arte não passava da esquina e nossos astros não passavam de meteoritos, salvo um ou outro de talento acima da média e que se destacava lá fora sem ser conhecido por aqui, embora a Europa fosse o palco predileto para Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Grande Otelo, Jorge Amado. Depois de 85, findo o regime militar, as moscas verdes dos dólares voltaram a atrair timidamente as estrelas estrangeiras, muitas das quais jamais havíamos ouvido falar, como Nina Hagen, uma despirocada que veio drogar-se como Janis Joplin já fizera em Búzios com aquela coisa estranha chamada Sergei (um ser gay). Medina criou o Rock in Rio, lançou dólares aos porcos e voltamos a entrar na rota do entretenimento internacional. Ufanismo à parte, nossa xenofilia, o espírito caipira que acha lindo tudo o que vem do estrangeiro, as praias com muita bunda de fora, a tolerância com embriaguez alheia e os preços baratos para produtos e pessoas foram nos colocando novamente em evidência. De Dire Straits a Silvester Stallone, todo mundo vem tirar uma casquinha. Bandas em final de carreira passam por aqui para ressuscitarem suas contas bancárias cobrando ingressos ao triplo do preço que cobram na Europa ou na Austrália e são tratados como semideuses. Depois que voltamos a entrar em cartaz, apresentamos a performance moderna do silvícola exótico que fala nossa língua, melhor do que os silvícolas que os franceses levavam para entreter a burguesia do século 17 que apenas faziam mungangos e comiam bananas. O melhor exemplar que levantou aplausos e ooohhhss da platéia boquiaberta, que falava asneiras com tradutor que as traduzia como a salvação do mundo, como fizeram com o pedófilo Gandhi e o sem teto Dalai Lama; tinha a língua presa, o que deve dar um trabalho danado para o tradutor entender o que dizia, o que aumentava os erros de tradução e concatenação das idéias do louco; usava ternos traçados pelos mais finos alfaiates, quem diria?, europeus e não bebia cauim ou água na moringa de barro, mas finos vinhos. O povo urbano, desconhecedor dos costumes da colônia ultramar, admirava-se da maneira como um ser analfabetizado falava das coisas do mundo com tanta sapiência, tanto conhecimento de causa, tanta propriedade. Aquele ser não deveria ser brasileiro, mas um espécime extraterrestre que nos trazia a grandeza do pensamento venusiano, só podia. Se Patativa do Assaré, um analfabeto do interior cearense havia feito tanta poesia linda que os franceses tanto admiravam, e com razão, por que aquele semi-anão pernambucano não poderia encantar todo o planeta com suas ficções político-sociais-econômicas e filosóficas? Passados oito anos, o encanto da novidade esvaiu-se. Somente o povo português, aquele que ainda vive das memórias do tempo em que era império naval, o trata deveras como doutor, os demais, na bancarrota – não que o português não esteja – começam a perceber que se deram mal justamente por terem tentado seguir a receita socialista fácil ministrada pelo etezinho de Garanhuns. O que era bom para a América, era bom para o Brasil, mas, provou-se, o que é bom para o Brasil – a compra de votos e aceitação tácita do povo através de discursos e bolsas – não pode ser bom para a Europa. Vencido o prazo de validade das engabelações do pequeno beócio, porém sábio enganador, eis que a mesma empresa que produzia seus shows apresenta sua sucessora. Uma e.t. fêmea, sem estado natal, como o pigmeu cerebral. Ele, nascido em Pernambuco, enriquecido em São Paulo; ela, nascida (?) em Minas Gerais e amamentada pelos gaúchos. Na escolaridade também uma parecência: ele analfabeto funcional que cursou até a quinta série, ela uma graduada que falsificou um diploma para dar-se um pouco mais de respeitabilidade. O comportamento moral também apresenta similitudes, ambos mentem com um cara inexpressiva, como bem fazem os psicopatas que acreditam nas próprias mentiras ou demonstram muito bem que acreditam para convencer a platéia a acreditar. Sua visões sociais são similares: a esmola dignifica o homem e o trabalho sustenta a esmola. Embora uma recente assessora da e.t. fêmea afirme que a compensação financeira para pobres que fazem filhos não incentive a gravidez, não são poucos os pobres que parem de olho na adoção de suas crias por todos os cidadãos do país. Cada brasileiro é mantenedor de centenas de milhares de brasileiros que nascem sob o incentivo da política social. Mais uma semelhança entre os dois seres estranhos: para apresentar-lhes nos palcos internacionais, ambos contavam com um barbudinho grisalho com visões comunistas e vistas grossas para os erros futuros, demonstrando que seguem bem a receita dos bichos-grilos dos anos sessenta: viva hoje como se não houvesse amanhã, esquecendo-se que para um país e suas relações internacionais o amanhã tem que ser pensado a longuíssimo prazo. Muito boa a Prestidigitações Tropicais, a empresa que monta os espetáculos, seleciona os astros e os treina e ensaia até que a afinação, que surge a duras penas ou engana bem diante da assistência, torne o espetáculo convincente. À moda de Hollywood,a PT entretenimentos descobriu que as sequências, como Super Man II, III e IV, Rambo, II, III, IV..., O Planeta dos Macacos, Star Trek, Sabe Com Quem Está Falando e blá-blá-blá só dão certo se alguns elementos dos personagens e das tramas forem mantidos e assim vai engabelando os públicos nacional e internacional, agora também com shows explícitos de mágicas.

sábado, 24 de setembro de 2011

Dom Quixotes Modernos

Sempre gostei de Dom Quixote, o cavaleiro de triste figura e seu fiel escudeiro Sancho Pança. Cheguei à conclusão que não existe personagem maior para dar direcionamento a nossa vida. Com o passar dos anos, quer queira quer não, vamos todos ficando alijados da importância que um dia achamos que tínhamos e passamos a ser um nada, só vivendo do passado, com lembranças que não têm o menor significado, a não ser para nós mesmos. O que passou, passou e ninguém está interessado em nossa história. Amores acabam, filhos nos esquecem e sempre se aborrecem conosco. Os mais jovens só estão mesmo preocupados com si próprios e com mais ninguém, assim como fomos um dia. E o que acontece com os que têm a ventura ou a desgraça de terem se tornado velhos? Ninguém os quer, se tornam na grande maioria estorvos para a família, sociedade e governo. Alguns, por terem dinheiro, ainda são lembrados principalmente pelos que são seus herdeiros e que o tempo todo lamentam a “saúde irritante” do velho. Aqueles que achavam que a aposentadoria seria a solução financeira para o resto dos seus dias percebem hoje que foram mais uma vez enganados e que seus merecidos proventos na última fase da vida só diminuem, em função da política implantada por nossos dirigentes que relega a maioria dos velhos à miséria. E o que lhes resta? Muito pouco além da penúria, solidão e das dores, tão comuns nessa idade. E como vencer essa última batalha, como tornar esse período da vida mais útil, prazeroso e digno? Acho que, assim como Dom Quixote, é preciso descobrir novos desafios a serem vencidos, defender alguns sonhos e quimeras e acreditar em algumas causas, mesmo as que possam ser somente moinhos de vento. É tempo de se preparar para os últimos obstáculos que a vida nos impinge. É hora de dom e damas Quixotes irem mais uma vez à luta, como sempre fizeram. É hora de reivindicar nossos direitos e se formos mais de um, nem que seja só um Sancho Pança, não importa, temos de ir à luta. A primeira batalha já se avizinha, que é a ”Revolução das Bengalas”, para exigir dos nossos governantes que devolvam o que nos foi roubado de nossas aposentadorias. As eleições estarão aí no próximo ano e o nosso voto será a arma de um exército de quase 25 milhões de combatentes que ainda mantêm seus sonhos e a esperança até o fim. Somos todos cavalheiro e damas de triste figura, mas ainda temos força para exigir somente o que nos é de direito. Precisamos nos engajar em todos os movimentos que nos defendam, pois se nos acomodarmos, ninguém estará nem um pouco preocupado com a nossa sorte.

Verdadeiro Barril de Pólvora

As chamadas “autoridades” não percebem, mas existe sentimento de ódio e insatisfação a se acumular a olhos vistos em todas as camadas de nossa população, saturadas com a roubalheira e discursos de bom-moço que uns e outros jogam na mídia como se ainda fosse possível enganar a tudo e a todos durante todo o tempo. Quando ainda era presidente da República, Lula (PT-SP), do alto de sua capacidade ilusionista, declarou em visita a Pernambuco (ele inaugurava Unidade de Pronto Atendimento – UPA -, na Cidade de Paulista), que “a Saúde no Brasil está à beira da perfeição”. Como vivemos num país anestesiado pela televisão, transformado em bordel por incansáveis novelas diárias, sua então excelência afirmou também que a UPA estava tão bem equipada que dava “até vontade de adoecer somente pra ficar internado ali”. Pois bem: não é que ele teve um piripaque e teve de ser hospitalizado às pressas? Mas não escolheu a UPA, não senhor! Foi removido para o melhor hospital do estado, o Português, ficando com equipe médica das mais qualificadas e equipamentos modernos à inteira disposição. Vencida a crise inicial, foi imediatamente transferido para o Sírio-Libanês de São Paulo, onde concluiu tratamento médico indispensável. Dinheiro público existe. O governo federal todos os meses anuncia com estardalhaço que a arrecadação cresceu. O problema não é de falta de dinheiro, mas de excesso de roubo! O mundo, desde que é mundo, é comandado por vivaldinos a massacrarem seus semelhantes, no acúmulo indiscriminado à custa de muita miséria. Mas tem de haver prática afinada para que o cenário não desabe. Não fique assim como acontece agora com a Renascer: a principal líder daquela Igreja, “bispa” Sônia, que passou um tempo presa nos EUA (juntamente com o marido) e depois foi banida daquele país, é uma das organizadoras da “Marcha Para Jesus”. Mas o que vai ficando claro é que “milagres” alcançados por fiéis que depositam parcos recursos nas arcas da Igreja não acontecem dentro da casa da própria “bispa”. A revista IstoÉ mostrou que a Renascer está quase fechando, que o filho de sua líder está morrendo de câncer e o que ela mais precisa é de um milagre. Pura ironia! A CPMF foi criada no governo FHC (1995-2003), por insistência do médico Adib Jatene, justamente para resolver o problema da saúde. O dinheiro arrecadado financiou festa, corrupção, bandalheira, só não serviu à atividade final para a qual foi criado, a de recuperar a Saúde. A CPMF servia para brecar fraude e sonegação e, justamente por isso, foi distorcida em seu significado. Muita gente queria vê-la morta e sepultada, mas não por conta dos desvios que ocorriam. É que ela servia para impedir sonegação em casos de lavagem de dinheiro. Morreu e foi substituída, em parte, pelo IOF. A extinção da CPMF não reduziu, de maneira alguma, a arrecadação de impostos. A tributação subiu todos os meses, desde então, com a vantagem de não se ter controle realizado na cobrança, na “boca do caixa”, que a impedia de ser fraudada pelos situados no topo da pirâmide. O IOF continua aí, vivinho da Silva, mas já se fala abertamente em novo imposto, porque a maioria da população não tem noção do que acontece e quem dita a pauta e a discussão dos fatos diários, num país em que só se presta atenção à pornografia e ao futebol, são as emissoras televisivas. Vivemos numa cultura oral. Mesmo de nada sabendo, a população desconfia de tudo porque a roubalheira é visível. E o acúmulo de insatisfação irá levar a organização social de ralo abaixo, quando a economia não conseguir mais prover o feijão básico diário na mesa do povo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Sobre a Comissão da Verdade

São preceitos da ética e fundamentos da honra pessoal do militar o culto à verdade, a lealdade, a probidade e a responsabilidade como fundamentos da dignidade pessoal. Portanto, nenhum soldado poderia ser contrário a uma comissão que pretendesse revelar a “verdade” sobre qualquer assunto ou fato histórico. Por outro lado, contam as lendas que a verdade foi enviada por Deus ao mundo em forma de um gigantesco espelho. E quando o espelho estava chegando sobre a face da Terra quebrou-se, partiu-se em inumeráveis pedaços que se espalharam por todos os lados. As pessoas sabiam que a verdade era o espelho, mas não sabiam que ele havia se partido. E, por essa razão, as que encontravam um dos pedaços acreditavam que tinham nas mãos a verdade absoluta, quando, na realidade, possuíam apenas uma pequena parcela (do livro A um passo da imortalidade, FRANCO, Divaldo P. São Paulo: Leal, 1998). Desta forma, quem quiser conhecer a “verdade” deve buscar todos os pedaços do espelho e não contentar-se apenas com os que encontrou ou com os que lhe foram mostrados, estes não serão mais do que pontos e vista ou, no máximo, uma versão pessoal da verdade, porquanto esta é, também, relativa e dependente do crivo dos valores de quem por ela se interessa e das circunstâncias que a envolveram. Pesquisar as atitudes, as formas de atuação e os possíveis excessos dos órgãos e agentes do Estado, sem antes conhecer os atos de violência seletiva e indiscriminada que impuseram a postura repressiva, é o mesmo que querer tratar a doença sem conhecer suas causas. É trabalho incompleto, faccioso, distorcido e fadado ao fracasso, caso busque, de fato, apenas a verdade! Assim, erra quem pensa que aos militares não interessa tornar público, claro e transparente todos os fatos ocorridos no período abrangido pela pesquisa que se pretende fazer, entregando-os ao julgamento dos valores e dos princípios de cada cidadão brasileiro. Erra também quem, inocentemente ou não, aceita as condicionantes parciais impostas na proposta revisionista, detendo-se nas conseqüências e fechando os olhos para as causas, as circunstâncias e o ambiente em que se deram. Como muito bem se expressou o Governador do Rio Grande do Sul, Sr Tarso Genro, ao referir-se a recentes manifestações de Policiais Militares de seu Estado: “Atitudes de marginais devem ser tratadas em inquéritos policiais”. Ou seja, há que se devassar os fatos para conhecer a verdade e fazer justiça. Qualquer coisa diferente disso revelará tão somente os pontos de vista dos que se interessam apenas por mentiras ou meias verdades.

O preço da Grécia

Os tumultos na Grécia são a conseqüência natural de uma longa trajetória de fantasias e artificialismos que formam a história moderna do país OEstado grego é uma invenção das potências europeias: por isso mesmo não é legítimo aos olhos dos próprios cidadãos gregos. A invenção da Grécia em 1830 esclarece o comportamentos dos contribuintes, sem pressa de pagar seus impostos, e de um Estado que nunca se livrou de suas origens duvidosas. A história contemporânea, melhor que considerações genéricas, explica a bancarrota que se ameaça. Tudo começou com os Românticos, com Chateaubriand, grande escritor, mas mentiroso magnífico; depois Lord Byron que acreditou redescobrir, na Grécia, as fontes da civilização ocidental. Um mal-entendido cujas consequências nós pagamos: se os gregos contemporâneos vivem no mesmo endereço que Aristóteles e Péricles, não existe muita continuidade entre a civilização helenística e a Grécia moderna. A filiação com Bizâncio, que os gregos modernos reclamam para si, é igualmente frágil. Mais realista, Mark Twain, visitando Atenas em 1865, admitiu que encontrou alguns pastores e seus carneiros pastando entre as colunas caídas do Partenon. Esses gregos, na verdade, eram uma tribo cristã no meio de tantas outras no Império Otomano, mas, tal como Dom Quixote sonhou que um feio camponês era sua Dulcineia, os europeus insistiram a todo custo que os gregos eram os próprios Helenos. Não se pode censurar os gregos beneficiados durante todo o século XIX: o financiamento do Estado grego foi sustentado pelos britânicos, pelos franceses e pelos alemães. Esses últimos pagaram para impor um príncipe alemão como rei da Grécia em 1833: o descendente de Alexandre, o Grande, se chamava curiosamente Othon de Baviere e reinou sobre uma tribo otomana. Dessa forma, o principal recurso do novo Estado grego foi explorar o mito helênico para manter a dependência do financiamento dos outros estados europeus. Mesmo com o Estado e a economia gregas não reunindo condições necessárias para a adesão da União Europeia, a Grécia conseguiu entrar para o grupo em 1981, com o apoio particular de Valéry Giscard d’Estaing, grande leitor de Chateaubriand. “A Grécia”, declarou ele, “foi o berço da civilização europeia, os artesãos da Europa têm uma dívida histórica com ela.” Ou seja, não é a Grécia que não paga suas dívidas; é a Europa que tem uma dívida com ela. Não há dúvida que a maior parte dos gregos concorda com esta elevada opinião sobre si mesmos, opinião essa atribuída externamente. E por que pagar a dívida de hoje se a dívida histórica não foi saldada? A mistificação, inesgotável, foi reiterada em 2001, quando a Grécia entrou na área do euro sem satisfazer totalmente as condições de acesso. Atualmente, os dirigentes gregos são acusados de fraudar a situação nacional até os mercados financeiros terem descoberto o truque. Mas não é exatamente assim: em 2001, os dirigentes europeus sabiam e confessavam, em particular, que os números apresentados pelo Estado grego eram falsos, mas simbólicos, pois a Grécia era um deles. A dívida histórica novamente! E de novo, quando Atenas foi candidata aos Jogos Olímpicos de 2004, o Comitê Olímpico Internacional sabia que a Grécia não tinha meios, que as dívidas não seriam pagas, mas, como recusar os Jogos Olímpicos de Atenas, mesmo sendo as olímpiadas uma recriação aqui e ali e reinventada por Pierre de Coubertin em 1896? Por todas essas razões, o Estado Grego não se sente verdadeiramente obrigado a pagar os seus credores, da mesma forma que os cidadãos gregos não se sentem obrigados a pagar seus impostos a um Estado qualquer. Certamente, o governo não é mais alemão, nem militar (depois de 1973), mas a república continua não sendo completamente legítima: em razão da corrupção generalizada dos políticos, da ineficácia da administração e também – falamos menos porque muitos gregos não digeriram – da guerra civil de 1949, extinta por uma intervenção militar anglo-americana. Acrescente a isso: milhões de cidadãos obrigados a falar grego; minorias culturais cuja legitimidade é negada; eles são de origem albanesa ou turca. No total, a base dos cidadãos que estima a Grécia como um estado legítimo é tão frágil como a base econômica que, essencialmente, está longe do fisco. Por essas razões históricas e culturais, o governo grego é conduzido a multiplicar compromissos que não poderia ter – os impostos não vão subitamente fluir para os cofres do Estado – ou que não vão conseguir segurar – as privatizações poderiam retirar do Estado sua influência e reduzir o clientelismo com a esperança implícita que os europeus cederiam novamente ao fascínio do mito. O resultado é incerto, pois a Europa sofre de um “Complexo de Édipo” em relação à Grécia: se a Grécia é nosso pai e nossa mãe, ela convida a matar esse mito, para que os europeus e os gregos reconheçam que a Grécia é um país normal, a fim de saldar a Dívida Histórica e regularizar as dívidas presentes.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Dificil identificar o animal...

Nos presentes dias, tudo concorre para que a natureza humana seja degradada: aprovação de leis abortistas, facilitação do uso de drogas, imoralidade galopante, músicas frenéticas, arte delirante, e o que mais se queira. Nesse contexto social de rebaixamento humano, não poderia deixar de acontecer que seres irracionais, de natureza inferior, fossem promovidos a gozar direitos semelhantes aos dos humanos. Donde a propaganda insistente quanto aos “direitos dos animais”. Ninguém defende que os animais devam ser maltratados, pois seria uma insânia. Eles existem para o serviço do homem e devem ser tratados de modo racional. Desde tempos imemoriais os cães são considerados amigos do homem e são bem tratados por ele. O trinado melodioso de um pássaro ou o colorido de um pavão sempre foi muito apreciado. Mas procurar equiparar o animal ao homem, não engrandece o animal — incapaz de elevar-se acima de sua natureza — e degrada o homem. Seguindo essa onda, a prefeitura de Porto Alegre instituiu uma Secretaria dos Direitos Animais, aprovada pela Câmara Municipal. Noticia o site daquela prefeitura: “O prefeito José Fortunati sancionou nesta segunda-feira [25-7-11], a lei que cria a Secretaria Especial dos Direitos Animais (Seda), durante solenidade no Salão Nobre do Paço Municipal. A pasta tem como objetivo estabelecer e executar políticas públicas destinadas à saúde, proteção, defesa e bem-estar animal da cidade. [...] A prefeitura terá uma estrutura, com 14 cargos, e orçamento para trabalhar ações com mais contundência. O prefeito assumirá a responsabilidade pela pasta com o apoio voluntário da primeira-dama Regina Becker”. Diante dessa notícia, cabe aqui uma observação preliminar: somente os humanos, racionais, podem ser sujeitos de direito; nunca os animais. E o homem não deve maltratar a estes, porque tal atitude é oposta à sua racionalidade. Entretanto, chegamos ao extremo de mães que abortam seus filhos e concedem a seu cão ou gato tratamento que talvez não dariam à sua prole! A moda agora é hotel de luxo e salões de beleza para cães e gatos, incluindo perfumaria, piscinas, manicure, quitutes e gozo de férias… Acrescentem-se “casamentos” com festa e convidados! Não estamos exagerando. Em Londres, “casaram-se” Lola [uma cadela] e Mugly [um cachorro], numa aristocrática mansão toda decorada em branco, prata e rosa. “A ‘noiva’ usou vestido em organdi suíço, em camadas, sem mangas, decote canoa, com manteaux de renda prata e branco, braceletes com navetes e colar de contas de cristal. O ‘noivo’ vestiu austero colete de cetim preto, colarinhos brancos engomados, gravata papillon preta, e meia cartola. A madrinha [dona dos bichos] e convidadas ostentavam chapéus.” “A madrinha, Louise Harris, convidou 80 pessoas para a cerimônia. Ela investiu 20 mil libras, ou R$ 52,30 mil, na festa. Só o aluguel da mansão custou R$ 6.540,00, ou 2500 libras esterlinas. No coquetel, mais 3 mil libras, ou R$ 7,85 mil. Os floristas cobraram mil libras (R$ 2,6 mil). Não faltaram os seguranças, com cachê de 400 libras (R$ 1050,00). Louise Harris fez um emocionado discurso, com a noiva no colo, e comemorou brindando com champagne” (http://margaritasemcensura.com/fotos-da-semana/cachorros-casam-com-luxo ; 6-4-11). Ao colocar os bichos no nível humano, afrontam-se todas as normas, não só as leis da natureza. Como ensina Tomás de Aquino na Suma Teológica, “na hierarquia dos seres, aqueles que são imperfeitos são criados para os mais perfeitos [...] assim, os seres que têm apenas a vida, como os vegetais, existem no seu conjunto para todos os animais; e os animais existem para o homem. Eis porque, se o homem se serve das plantas para o uso dos animais, e dos animais para seu próprio uso, isto não é ilícito, como já o demonstrou Aristóteles. [...] Se a ordem divina conserva a vida dos animais e das plantas, não é para eles mesmos, mas para o homem”.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

É proibido perceber

A desgraça vai mais fundo. Pouco a pouco, o código de inibições fabricado por grupos de pressão vai sendo elevado à condição de único sistema moral vigente. Será que já esqueceram? O projeto de lei que dá à corrupção o estatuto de "crime hediondo" não teve origem inocente, nem sequer decente: foi enviado à Câmara em 2009 por aquele mesmo indivíduo que, acusado de inventor e gestor do maior esquema de corrupção que já se viu neste País, apostou na lentidão da Justiça como garantia de sua eterna e tranquilíssima impunidade. Nada mais típico da mentalidade criminosa que a afetação de honestidade exagerada, hiperbólica, histriônica. Encobrindo com uma máscara de severidade o sorrisinho cínico que lhe vai por dentro, o capomafioso não se satisfaz com ostentar a idoneidade média do cidadão comum. Não. Ele tem de ser o mais honesto, o mais puro, o modelo supremo das virtudes cívicas e, no fim das contas, o caçador de meliantes, a garantia viva da lei e da ordem. Confiante, como sempre, na eficácia da sua performance, o indivíduo permitia-se até blefar discretamente, sabendo que, no ambiente de culto reverencial montado em torno da sua pessoa, ninguém se permitiria perceber que ele falava de si mesmo: "corrupto é o que mais denuncia, porque acha que não será pego." Isso era, de fato, mais que o resumo sintético de trinta anos de luta de um partido que galgou os degraus do poder escalando pilhas de cadáveres políticos embalsamados em acusações de corrupção. Era a definição do que aquele homem estava fazendo naquele mesmo momento. Mas quem, neste País, ainda é capaz de comparar a fala com a situação e distinguir entre a sinceridade e o fingimento? Li outro dia um estudo sobre os males do botox, que, travando o jogo natural dos músculos da face, destroi a expressão emocional espontânea e confunde a leitura imediata de sinais em que se baseia toda a convivência humana. Mais que o botox, porém, têm esse efeito as imposições legais e morais de um Estado psicologicamente prepotente e invasivo, que em nome dos direitos humanos extingue o direito às reações naturais. Se por lei é proibido distinguir, na fala e no tratamento, entre uma mulher e um homem vestido de mulher, ou entre a voz feminina e a sua imitação masculina, se a simples associação da cor preta com o temor da noite é alusão racista, se o simples fato de designar uma espécie animal pelo seu exemplar masculino é um ato de opressão machista, todas as demais distinções espontâneas, naturais, autoevidentes, arraigadas no fundo do subconsciente humano pela natureza das coisas e por uma experiência arquimilenar, tornam-se automaticamente suspeitas e devem ser refreadas até prova suficiente de que não infringem nenhum código, não ofendem nenhum grupo de interesses, não magoam nenhuma suscetibilidade protegida pelo Estado. Quantas mais condutas pessoais são regradas pela burocracia legiferante, mais complexa e dificultosa se torna a percepção humana, até que todas as intuições instantâneas se vejam paralisadas por uma escrupulosidade mórbida e estupidificante, e o temor das convenções arbitrárias suprima, junto com as reações espontâneas, todo sentimento moral genuíno. Não é de espantar que, nessa atmosfera de inibição geral das consciências, a encenação de combate moralista por um corrupto notório não desperte nem mesmo o riso, e que a proposta cínica com que ele encobre seus próprios crimes seja levada literalmente a sério no instante mesmo em que ele, brincando com a platéia como gato com rato, se permite mostrar sua face de denunciante hipócrita sem o menor temor de que alguém venha a comparar suas palavras com seus atos. A desgraça vai mais fundo. Pouco a pouco, o código de inibições fabricado por grupos de pressão vai sendo elevado à condição de único sistema moral vigente, e ninguém parece se dar conta de que o nível de corrupção tem algo a ver com a moralidade comum. À medida que as consciências se entorpecem, as aspirações morais perdem toda ligação com a realidade e se enrijecem num ritual mecânico de poses e caretas sem sentido. Todos parecem imaginar que, num ambiente de degradação geral onde cinquenta mil homicídios anuais são aceitos como uma banalidade indigna de discussão, é possível preservar intacto e imune um único bem – o dinheiro público –, isolado e protegido de todos os pecados. Num Estado para o qual as fantasias sexuais são mais santas, mais dignas de proteção do que os direitos da consciência religiosa e os princípios da moral popular, todo combate oficial à corrupção nunca pode passar de uma farsa – esta sim – hedionda.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

AS ESCOLAS BRASILEIRAS SÃO PIORES QUE O ENEM

O resultado alarmante o ENEM (apesar do governo Dilma entendê-lo satisfatório dentro de sua perspectiva de uma melhoria efetiva em um processo de 10 anos) mostra apenas aspectos objetivos da questão. Não adentra nos subjetivos que estão em aspectos como a falta do interesse dos pais no desempenho escolar, ou ainda, o interesse de outros pais em se livrarem dos filhos chatos depositando-os nas escolas para que nelas pratiquem a falta dos modos que não aprendem em casa. Notaram os ótimos resultados de escolas militares? Que fator às faz mais eficientes? Pois é! O Brasil experimentou uma onda libertária com o fim do regime militar. A partir de 1985, toda disciplina imposta de cima para baixo passou a ser tratada como algo ruim e "não pedagógico". O resultado é o que está aí - não existe mais autoridade nas escolas - professor virou refém ou dos alunos mal-educados ou dos pais incapazes de contrariarem seus reizinhos particulares, impondo o primado do quem pode mais, a prática do vale-tudo, o "sabe com quem está falando?", o clientelismo e uma relação consumidor-fornecedor e ao cúmulo de escolas públicas terem virado palco da politicagem mais rasteira de prefeitos e vereadores analfabetos, com regras estúpidas de "eleição" de diretores que no passado eram escolhidos por competência, não por votação. Tudo o que desde então se ganhou em universalização foi anulado na incapacidade das escolas em impor disciplina para ensinar alguma coisa. Há mais alunos estudando, há transporte, uniformes, livros e materiais gratuitos nas escolas públicas e inovações tecnológicas de ponta nas escolas privadas. Mas em essência, a escola virou um lugar para diversão e suposta socialização dos alunos sem muita relação obrigacional com quem quer que seja. Professor não apita mais nada (isso quando não é pura e simplesmente agredido) e a antiga chamada para a sala do diretor virou motivo para processos de dano moral, partidos de famílias cujos pais envergonhados com sua falta de tempo para os filhos, lhes dão razão em tudo mesmo nas situações mais extremas. O brasileiro pobre tende a pensar que a escola vai por freios nos filhos que não soube educar e o brasileiro rico acha que pagando, isso será suficiente para seu filho aprender valores. Etiqueta não se produz em sala de aula e valores não se compram apesar da publicidade agressiva das escolas que dizem formar cidadãos, mas em verdade formam consumidores com suas listas enormes de material escolar, com a tolerância com mochilas cada vez mais caras estampadas com os astros de TV do momento, suas festas juninas animadas com sertanejo universitário a ensinar a "pegação" e a bebedeira como formas de alegria (e nesse item, não diferente nas escolas públicas), e suas mil formas de nunca reprovarem ninguém porque isso pode expor o jovem a uma situação supostamente vexatória. As Leis de diretrizes e bases da educação esqueceram de blindar as escolas da paranóia generalizada contra a autoridade confundida com autoritarismo. Se um professor não tiver a prerrogativa de ralhar com um aluno ou se o diretor não puder suspendê-lo, o fato é que as famílias lenientes com os maus modos (e diga-se de passagem, estas são a maioria)do jovem vão apelar para a velha desculpa da perseguição que hoje é corroborada com ameaças de processos com inversão do ônus da prova por se tratar ou de relação com o Estado, ou de relação de consumo. A escola tem que voltar a ser obrigação, o desempenho escolar precisa ser cobrado. É inaceitável que um país que nas últimas décadas tenha aumentado (e muito, eles praticamente foram multiplicados por 5 na esteira do aumento do percentual sobre o PIB e do próprio PIB) os recursos para a educação, não consiga sequer dar um passo a frente nesse assunto, sujeitando-se a uma falta dramática de mão-de-obra em todos os setores, desde os menos necessitados de formação, mas especialmente nos que mais dependem dela. O ENEM apenas demonstrou que o Brasil está é completamente paralisado quando o assunto é educação.

domingo, 18 de setembro de 2011

SATÃ VIVE

(Sugerido por Vilma Balbi e inspirado na leitura da obra O DIABO NO IMAGINÁRIO CRISTÃO, do Prof. Carlos Roberto F. Nogueira - Obrigado a ambos) Ninguém jamais recebeu tantos nomes. Nenhum ser excitou tão intensamente a imaginação humana ao longo dos séculos. Num mundo dominado pelo computador e pelas comunicações, com tecnologia, educação e informação em larga escala, imaginou-se até que não haveria mais lugar para ele. Engano. No alvorecer do terceiro milênio ei-lo aí, vivo e atuante, ainda que transformado e sem os superpoderes de antigamente. Ele – Asmodeu, Belzebu, Azazel, Belial... entre os muitos nomes com os quais os antigos hebreus o rotularam. Ou Iblis, como dizem os muçulmanos. Ou Arimã, como o chamavam os seguidores de Zoroastro, na Pérsia. Ou simplesmente, como bem o sabem os brasileiros temerosos de mencionar-lhe o nome, o Rabudo, o Tinhoso, o Sujo, o Beiçudo, o Pai da Mentira, o Coxo, o Cão. Senhores, eis Satanás, o Demo, o Diabo, a mais intrigante das figuras que povoam o imaginário ocidental. O Diabo chega ao século XXI deitado sobre a fama. Não mais aparece em murais com a aparência grotesca de um bode alado, coroado de enormes chifres, com rabo de dragão e olhos nas asas, na barriga e no traseiro. Há muito seu nome foi retirado do Pai Nosso, a principal oração cristã. Ele já não é acusado em toda parte de estar por trás das doenças, das hecatombes, das tragédias do cotidiano. Não, o Diabo teve que ceder aos progressos da ciência, à liberdade de pensamento e ao avanço da razão sobre a superstição um considerável naco de suas habilidades. Mas é inegável que, quase reduzido à quintessência de uma idéia, ele continua influente em nossos dias, qualquer que seja a classe social e o nível cultural das pessoas, respeitadas aí as diferenças de interpretação. Não é exagero dizer que, de certa forma, Satã tem sido revalorizado nos últimos tempos. Nos Estados Unidos, símbolo de sociedade regida pelos ideais iluministas e maior centro científico e tecnológico do planeta, o número de exorcistas autorizados pela Igreja Católica cresceu mais de dez vezes nos últimos dois anos. Antes, o país tinha apenas um. Na França, no mesmo período, os exorcistas saltaram de 15 para 120. Em todo o mundo desenvolvido, o Demônio e os seus sequazes continuam a rodar a roda da fortuna na literatura e na indústria do cinema (até o velho "O Exorcista", de 1973, voltou às telas apimentado com cenas cortadas na versão original). Em países ricos ou pobres Satã não pára de estimular debates, teses e, principalmente, facilitar as manipulações do jogo político – afinal, satanizar o adversário sempre foi uma arma afiada em qualquer disputa. Entre fundamentalistas islâmicos, Iblis ganhou as cores da bandeira dos Estados Unidos, país rotulado pelos radicais como o "Grande Satã". Foi contra o Diabo, em última instância, que os terroristas liderados por Osama Bin Laden lançaram os aviões que derrubaram as torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001. E foi a mão malvada do Demo que, para muitos americanos, guiou os comparsas de Bin Laden naquela manhã. Era para impedir-lhe a ação subversiva, por meio da liberação dos costumes, que no Afeganistão os talibãs impunham às mulheres o sufoco das burkas. Da Europa pós-moderna aos grotões da África, Belzebu prosseguiu inspirando extravagâncias e violências. Enfim, como não poderia ser diferente numa sociedade marcada pelo sincretismo, Belial encontrou no Brasil um campo vastíssimo para suas trapalhadas. "O Diabo é a origem das doenças, da miséria, dos desastres e de todos os problemas que afligem o homem desde que ele iniciou sua vida na Terra", afirma o fundador e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, em seu livro Orixás, Caboclos e Guias – Deuses ou Demônios?, uma das 26 obras nas quais o religioso tenta convencer a humanidade de que Satã existe e exerce poder quase absoluto sobre as pessoas. Sua Igreja, uma das que mais crescem no segmento neopentecostal, começou apoiada nos pobres – os que mais se sensibilizam com os exorcismos espetaculares realizados em seus templos -, mas logo penetrou a classe média, desiludida com os meios convencionais de solução de seus problemas. Após 25 anos de atuação, já é possível ver nos cultos da Universal alguns novos ricos preocupados em manter a prosperidade. O que busca a multidão que não se importa de engordar o caixa da Igreja do bispo Edir com doações generosas? A garantia de que Azazel, aprisionado pelas orações dos pastores, não mais atrapalhará seus negócios, sua saúde, seus desejos. A Igreja Católica, que até meados do século passado, oferecia ao mundo o retrato mais detalhado - e terrível – do Tinhoso, decidiu retocá-lo numa adaptação aos novos tempos. Mas que ninguém se engane: o Demônio católico, despido de sua aparência ridícula, não virou um mero símbolo, a não ser para alguns poucos religiosos revisionistas. O Vaticano exorta os fiéis a considerá-lo "a causa do mal", cuja presença evidencia-se desde a crença de que a felicidade se encontra no dinheiro, no poder e na concupiscência carnal ao relativismo que induz o homem a não atender "à vontade de Deus". Satã tornou-se assim sutil e requintado, mas ainda individual e poderoso ao ponto de apossar-se de seres humanos, como esclarece o documento oficial De Exorcismis et Supplicationibus (De todos os Gêneros de Exorcismos e Súplicas), de 1999. Ao argumentar nesse sentido, o papa João Paulo II retoma o tema do poeta francês Charles Baudelaire, no século XIX, segundo o qual "o mais belo estratagema do Diabo seria o de nos persuadir de que ele não existe". O papa não tem dúvida: o Demo trabalha de modo a que "o mal que ele inculca desde o começo se desenvolva no próprio homem, nos sistemas e nas relações inter-humanas entre as classes sociais e as nações". Mas, afinal, quem é o Diabo? Desde quando ele está entre nós? Que o papel ele desempenha no mundo atual? Historicamente, Satã, do jeito como o visualizamos no ocidente – um ser que concentra em si a maldade absoluta – é resultado de uma longa gestação psicológica na qual os arquétipos (imagens psíquicas do inconsciente coletivo que, segundo Carl Jung, estruturam modos de compreensão e comportamento) do mal foram ganhando formas concretas em processos de transferência e sincretismos. O Demônio fascina a humanidade, talvez porque nele identifiquemos a expressão maior dos impulsos primários que nos submetem e o combustível dos dilemas que nos angustiam. É a sombra que se faz inseparável do homem e teima em mostrar-se em seus esforços mais sublimes. No Novo Testamento, base da doutrina cristã, há mais citações sobre o mal do que acerca do bem, mais referências a Satã do que a Deus. "No cristianismo a presença do mal é essencial como em nenhuma outra religião", diz o filósofo Roberto Romano, da Universidade de Campinas (Unicamp). O primeiro rascunho do Rabudo teria surgido no século VI antes de Cristo, na Pérsia. Ali, o profeta Zoroastro (Zaratustra) descreveu a figura de Arimã, o "príncipe das trevas" em seu permanente conflito com Mazda, o "príncipe da luz". Eram essas duas divindades, que expressam a polaridade existente no universo, que regiam o mundo de Zaratustra. Durante o cativeiro na Babilônia, os hebreus tiveram contato com o masdeísmo persa, fato que, conforme alguns historiadores, foi fundamental para a concepção do que viria a ser o Satã do judaísmo e do cristianismo. Na antiga língua hebraica, Satanás quer dizer apenas acusador, caluniador, aquele que põe obstáculos. E foi assim, sem a face aterrorizante que ganharia mais tarde, que o Diabo estreou no Velho Testamento. Agia, então, como uma espécie de colaborador de que se servia Jeová (Deus) para testar a lealdade ou castigar os seus escolhidos. Jeová, por exemplo, determinou a Satã que precipitasse o desobediente rei Saul no poço da depressão. Sob a mesma autorização divina, o Satã infligiu pesadas perdas e sofrimentos ao rico e fiel Jó, no desenrolar de um aposta na qual Jeová jogou todas as fichas na lealdade de seu servo. Na mesma linha dos deuses pagãos, que eram ambivalentes, Jeová também expressava paixões contraditórias, semelhantes às do homem, e distribuía com exclusividade tanto o bem quanto o mal. Os primitivos hebreus não tinham necessidade de corporificar uma entidade maligna. Para eles Jahveh (Jeová) era um deus tribal e, como tal, superior aos deuses das populações vizinhas, que se colocavam assim como seus adversários e como expressões naturais da maldade. Não surpreende, portanto, que ao ganhar contornos de entidade, o Diabo tenha recebido nomes como Belzebu, um deus filisteu, e Asmodeu, deus da tempestade na mitologia persa. A influência persa, forneceu o pano de fundo dualista no judaísmo, por meio da assimilação da crença em espíritos benéficos e maléficos, os gênios da religião de Zoroastro. Os anjos, antes vistos como símbolos da manifestação divina, foram transformados em entidades autônomas, enquadradas numa hierarquia que justificaria a lenda da revolta de Lúcifer, o serafim mais belo e mais próximo de Deus (lúcifer quer dizer "portador de luz"), expulso do céu e metamorfoseado no Demônio após se deixar dominar pela soberba. A mudança de perspectiva teológica se tornará mais evidente a partir do século II antes de Cristo, com o desenvolvimento, à margem da tradição judaica erudita, de uma rica literatura sobre o demoníaco, de tom apocalíptico. No Livro dos Jubileus (135-105 a.C.) são mencionados os espíritos malignos acorrentados no "lugar da condenação" . No Testamento dos Doze Patriarcas (109-106 a.C.) pela primeira vez Satã aparece personalizado na figura de Belial. As crenças populares acerca do Diabo chegaram a ser assimiladas pela elite judaica, razão pela qual muitos "doutores da lei" acusaram Jesus de promover os seus milagres "sob o poder de Belzebu". Com o tempo, porém, os rabinos perderam interesse nessas versões e Satã voltou a ser uma figura menor no judaísmo. Ao contrário, os cristãos não apenas introduziram em sua doutrina os elementos da literatura escatológica, como também ampliaram-lhe os limites concedendo poderes colossais ao Demônio. Os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, as epístolas de Paulo e o Apocalipse do apóstolo João são pródigos em referências à luta de Satã contra Deus, retomando a lenda inicial de Lúcifer e seus aliados – nada menos que um terço dos anjos - na batalha celestial ocorrida nos primórdios da criação. De qualquer modo, a corporificação do Diabo cristão consumiu pelo menos 400 anos de debates e só veio a consolidar-se no século VII com a ajuda da arte cristã. É quando a figura monstruosa de Satanás se multiplica nos vitrais, colunas e tetos dos templos, é mostrada em murais nas ruas, assume a imaginação de clérigos e do povo e abre caminho para as práticas mais obscuras da Idade Média, cujo ápice é a instituição dos tribunais da Inquisição. Tal lentidão é compreensível. Nos três primeiros séculos, os cristãos, membros de uma seita perseguida, certamente não precisavam imaginar uma face para Satã, já que a conheciam sob a forma de gladiadores e leões que os trucidavam nas arenas romanas. No século IV, quando o império romano curvou-se ao cristianismo, uma onda de euforia alastrou-se entre os fiéis, que viam nos sucessos da ação proselitista sinais do enfraquecimento do adversário de Cristo e sua iminente derrota final. Mas logo a persistência de conflitos, desigualdades e paixões depois desse grande marco arrefeceu o otimismo e acabou por sedimentar a crença de que a força de Satanás era bem maior do que se imaginara. Precaver-se contra suas manhas e combater permanentemente o seu trabalho maléfico tornaram-se, então, uma obsessão. Na Idade Média, como ainda hoje, entre as seitas fundamentalistas, via-se o Diabo e seus auxiliares por toda parte. Imaginava-se pactos entre homens e Satã, em troca de fortuna, conhecimento e poder - tema cujo paradigma é a história de Johannes Faustus, de Heidelberg (1480-1540), retratado mais tarde em Doutor Fausto, o famoso drama de Goethe. Acreditava-se que, enquanto dormiam, mulheres podiam ser possuídas sexualmente por demônios chamados de íncubos, enquanto homens eram atacados por demônios súcubos, travestidos de belas mulheres. Eremitas do deserto se diziam tentados diretamente por seres infernais com apelos luxuriantes. O sexo tornou-se a armadilha predileta de Satã para conduzir os homens à perdição, o que justifica uma das mais conhecidas representações iconográficas do Demo – aquela em que ele aparece com patas de bode, olhos oblíquos e chifres, tomados por empréstimo à imagem de Pã, divindade greco-romana que se divertia em orgias. O Diabo era apontado como a causa de quase todas as doenças. Os médicos medievais, para livrar a própria pele, afirmavam que a simples impossibilidade de diagnosticar a enfermidade era em si um sinal de que se estava diante de um caso de possessão demoníaca. Satã podia entrar no corpo, segundo a crença popular, através dos orifícios, razão pela qual nos países anglo-saxônicos até hoje saúda-se o espirro, então visto como a expulsão de um demônio, com a frase "Deus o abençoe". O Tinhoso também costumava ocultar-se sob mil disfarces, em lances dignos de um conto de fadas. Que o diga o papa Gregório Magno, em cujos Diálogos está registrado o caso de uma pobre freira, endemoniada porque colhera alface na horta do convento sem a devida oração – Belzebu, espreitara-lhe, escondido nas folhas da singela planta. A histeria coletiva e o jogo político nos bastidores da vida religiosa nesse período levaram milhares de pessoas a arder nas fogueiras da Inquisição, o jeito piedoso estabelecido pela Igreja para "salvar" a alma de quem se deixasse ludibriar pelo Demo. Com o tempo, as imagens e a nomenclatura demoníaca, sempre relacionadas aos deuses que guerrearam contra Jeová e às divindades e tradições pagãs abominadas cristãos (é bom lembrar que a palavra demônio deriva do grego daimon, que significa tão somente espírito ou gênio), foram sendo enriquecidas conforme os novos adversários definidos pelo catolicismo. No período das Cruzadas, a figura de Satã ganhou pele morena e barbicha que o identificavam com os árabes. Com a chegada dos primeiros missionários ao Oriente, logo Sita e Rama, deidades do hinduísmo, se tornaram codinomes do Diabo. O que isso quer dizer é mais ou menos óbvio. "Significa que Satanás é o inimigo, é aquele que não concorda conosco", diz Elaine Pagels, professora de história da religião na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Tem sido assim até hoje. Para a especialista, autora do livro As Origens de Satanás, esse adversário sequer precisa ser alguém distante e estranho. Na maioria das vezes é um inimigo íntimo, o companheiro, o colega, o irmão divergente – o herético que afronta a crença imposta pela organização religiosa com idéias próprias. O começo da era moderna na Europa seria marcada por um enorme medo do Demônio, um momento psicológico retratado na trama da Divina Comédia, de Dante, e na assustadora iconografia do inferno presente na arte renascentista: demônios desenrolando os intestinos dos invejosos e enterrando ferros em brasa nas vaginas de mulheres levianas, pântanos fumegantes onde animais asquerosos atacam as almas pecadoras. O surgimento da imprensa e as reformas religiosas conferiram a Satã difusão e superpoderes ainda mais amplos. A didática do medo na catequese cristã parecia embutir um prazer estético com o mal. Belial mostrava-se à vontade mesmo após a vitória da revolução francesa e a conseqüente separação entre a Igreja e o Estado, no final do século XVIII. Mas, fora do círculo religioso, sua imagem começara a sofrer uma mutação radical. O romantismo, em rebelião contra o autoritarismo católico, transformou Satã num símbolo do espírito livre, da ciência, do progresso e da revolta contra a moral tradicional – um aliado do homem condenado ao sofrimento. Em Fausto, de Goethe, a visão do demoníaco reflete não apenas a questão do mal, mas também o problema do conhecimento e o desejo do homem de dominar as forças da natureza. O Diabo entrou no século XX como um personagem mais comportado, apesar de sua popularidade, da proliferação de seitas que lhe reverenciam os atributos mitológicos e da sua enorme utilidade como marketeiro, dentro e fora da religião. Pagou um preço alto por essa inesperada secularização, sob a forma de perda do respeito que sua figura sempre inspirou. Para alguns estudiosos do comportamento social, isso não é um bom sinal. "Trata-se de uma situação perigosa, pois significa que o mundo moderno está perdendo o senso do mal", diz Jeffrey Burton Russel, professor da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, nos Estados Unidos. "E sem o senso do mal a civilização pode desagregar-se, ir direto para o inferno". Mas, então, podemos deduzir que Satanás, enfraquecido, anda sem utilidade nos dias atuais? Não é bem assim. No início deste texto dissemos que o Diabo está vivo, desafiando os que achavam que não haveria mais lugar para ele num mundo regido pela ciência e pela razão. E, a julgar pelo cotidiano do homem moderno, também prossegue ocupado, muito ocupado. Na política (como na religião) a satanização do adversário continua em alta, do confronto entre os americanos e fundamentalistas islâmicos às disputas paroquiais entre os partidos brasileiros. Nos negócios da indústria cultural ou nos das igrejas apocalípticas, como em todos os empreendimentos nos quais sua imagem é utilizada para chocar, assustar ou simplesmente divertir, Satã é garantia de produto competitivo e de lucro certo. No plano psicológico, enfim, o Beiçudo continua imbatível na função de livrar o homem do fardo da culpa. Nesse sentido, o Diabo é um grande achado, dizem psicólogos e psicanalistas. Graças à crença na existência de um Príncipe das Trevas, as vítimas dos infortúnios não se sentem responsáveis por eles. Há mesmo quem se beneficie dos préstimos do Demo para fazer o mal por interposta pessoa – como nos casos de magia negra –, apoiado na sensação de impunidade decorrente de tal expediente. "As pessoas atribuem ao outro algo que está em suas atitudes, em seu inconsciente", afirma o psicanalista Renato Mezan. Satã, por tudo que já foi dito e escrito, é esse "outro" talhado para cumprir o papel de bode expiatório. A verdade é que, embora a plasticidade de suas manifestações e representações ao longo dos séculos, o Diabo tornou-se algo indispensável ao pensamento cristão e à filosofia ocidental. Com ele, é possível explicar de modo simples a existência do mal, justificar a concepção de Deus como um ser perfeito em sua bondade e dar sentido aos permanentes dilemas da vida. Com ele, fica mais fácil esclarecer, nos limites do mesmo pensamento cristão, a capacidade divina para ordenar a criação em relação a seus fins. Sendo agente tentador, o Diabo força o homem a optar, cria condições que o obrigam a decidir, o que em última análise tem um sentido potencialmente positivo.

sábado, 17 de setembro de 2011

EM BUSCA DO SENTIDO DA VIDA: SONHOS

De que são feitas as grandes realizações, os grandes feitos e principalmente, de que são construídos os legados? Grandes nomes da História da Humanidade não surgiram do dia pro outro, surgiram de um desejo, de um sonho. Eles viviam e eram tratados como pessoas comuns como eu e você, e por tomar atitudes inovadoras e grandes feitos, os tornaram especiais, os tornaram gigantes, perante à História. E o que estes grandes nomes tiveram de comum? A capacidade de sonhar e transformar este sonho em realidade. É esta capacidade de sonhar nos dá uma grande motivação, uma alegria de viver e nos dá a perspectiva de vida. Claro que uma pessoa para mudar uma sociedade é uma tarefa difícil, mas não é impossível. É como uma gota de oceano que se multiplica e contamina todo o meio, até que o oceano se torna bastante irreconhecível, totalmente diferente do que ele era antes. Pode ser que você não mude o mundo, mas você é capaz de realizar um grande sonho. Não precisa ser um líder de igualdade racial, rei, cientista, músico ou até mesmo o astronauta. Pode ser um carpinteiro, um engenheiro, enfermeiro, médico, professor. Pode ser que seu nome nunca apareça em uma manchete de jornal ou muito menos nos livros de História, mas o que importa, é que você ao realizar o seu sonho, está dando uma pequena contribuição para o grande salto para humanidade, ou seja, contribuiu com um tijolo para a construção de um grande castelo. Cada um de nós temos um tijolo para contribuir, assim como os grandes nomes da História, mas estes contribuíram com o tijolo que se tornou indispensável para a estrutura do castelo. Agora vamos focar para o lado individual. Por que pretende realizar este sonho? É por causa do dinheiro, das riquezas? É porque quer trazer alegria para a sua família, para os seus pais ficarem cheios de orgulho? É para se mostrar superior e especial dentro de uma comunidade? Ou é porque é o que mais ama e mais deseja dentro do seu coração? Os sonhos tem de vir de si próprios e não de influências externas, seja família, amigos, dinheiro, entre outros. Ainda que tenha que enfrentar e guerrear contra essas influências, você não deve desanimar em procurar e buscar pelos teus sonhos, pois são eles que te dão o verdadeiro valor, o verdadeiro sentido da vida, que traz a grande alegria de viver, uma forma de ser feliz e principalmente buscar o sentido da vida. Para que estes sonhos se tornem realidade, você terá que trabalhar muito para que estes se realizem. Às vezes é preciso ter muito pulso firme e ainda tomar atitudes radicais. Não é uma tarefa fácil, não mesmo! Terá muito que enfrentar tempestades e guiar seus horizontes e por fim, jamais desistir deles. Se for preciso lutar sozinho, que lute, mas se precisa de alguém, se precisa confiar em alguém, é preciso antes de tudo, confiar em si próprio. Se não tiver autoconfiança, jamais conseguirá dar mais nenhum passo a frente e estará rodando em círculos. Tendo sua autoconfiança e também a humildade, poderá também confiar em pessoas certas que possam te apoiar e te ajudar a enfrentar tempestades e monstros que aparecerão pelo caminho, até chegar na grande realização do sonho. Ainda que seja o grande sonho que brotou apenas no seu coração, mesmo que ninguém que você deseja reconheça esse feito, a sua alegria estará completa, e isso é o mais importante!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

11/9 ou 9/11?

As datas históricas das quais tenho lembrança são escassas. Do assassinato de Kennedy, que é um marco na memória das gentes, não tenho a mínima lembrança. Só sei que estava em Pelotas, onde as notícias, naqueles dias, custavam a chegar. Da chegada do homem à lua, tampouco não lembro. Estava em Porto Alegre, mas não tenho lembrança alguma da data. Mas guardei outras duas, que talvez pouco digam ao leitor. Lembro muito bem do 28 de janeiro de 1986. Era manhã e eu tomava café em casa, vendo TV. Olhei o jornal e vi aquela estranha rosácea em pleno espaço. A Challenger explodira acima do Oceano Atlântico, após 73 segundos de vôo, ceifando a vida de sete tripulantes, entre eles Christa McAuliffe, uma professora de New Hampshire de 37 anos. Confesso que senti um nó na garganta. Outra data que não esqueço foi o 28 de maio de 87. Era manhã e eu conversava com um amigo em Vilhena. Ele botou o olho na manchete de um jornal e me disse: desta tu vais gostar. Naquele dia, Mathias Rust, um alemão de 19 anos, pilotando um monomotor e burlando toda vigilância aérea de Moscou, deu três vôos rasantes sobre o mausoléu de Lênin e aterrissou a 50 metros das muralhas do Kremlin, em pleno coração do comunismo. Estava acompanhado de uma menina. Cercados por moscovitas e turistas que lhes perguntaram de onde vinham, Mathias respondeu com a maior naturalidade: Helsinque. Um feito e tanto. O mundo todo se perguntava como um aviãozinho de turismo havia penetrado numa capital protegida por um cinturão de mísseis antiaéreos, poderosas estações de radares civis e militares e instrumentos capazes de detectar qualquer objeto voando pouco acima do solo num raio de 30 km. Por cúmulo da ironia, Rust aterrissou na Praça Vermelha quando se comemorava o Dia da Guarda Soviética das Fronteiras. Dia seguinte, caía o ministro da Defesa soviético, o marechal Sergei Sokolov, por negligência. Molecada das boas. Depois destas, a única que me marca é o 11 de setembro. Eu trabalhava no quartel, quando meu subcomandante chegou e me disse: Coronel, dê uma olhada na televisão. Olhei. Tive a impressão que todo mundo deve ter tido. Seria mais um filme-catástrofe americano. Mas, pensando bem, oito horas da manhã não é horário de filme-catástrofe. Era fato. Se houvesse um Nobel para o terrorismo, bin Laden o mereceria sobejamente. Era preciso contornar algumas variantes. Primeiro, encontrar um punhado de malucos dispostos a morrer em prol de uma causa inútil. Parece que no mundo muçulmano há farta mão de obra. Encontrados os iluminados, era preciso treiná-los como pilotos. O que não foi difícil. Depois, era só escolher o alvo, de preferência um dos ícones do Ocidente. Bin Laden, em sua paranóia, imaginava que bastava matar alguns milhares de americanos para dobrar os Estados Unidos. É o que dá viver isolado do mundo. Morreram três mil pessoas, sofreram outros milhares. O atentado abalou o Ocidente. Uma década depois, o poder americano continua intocado. Os malucos se consumiram no atentado, seu cúmplices foram mortos ou presos e bin Laden foi fuzilado. O episódio gerou uma guerra estúpida. Apesar de quinze entre os dezenove terroristas serem sauditas, Bush, o boçal, insistiu na tese de que o Iraque estava na origem do atentado. Ok! Sempre é salutar ver um ditador como Saddam Hussein fora do poder. Mas os Estados Unidos se atolaram em um novo Vietnã e os homens-bombas continuam matando no Iraque. E não há nem sombra de esperança para um regime democrático na região. Que restou do atentado de bin Laden? Fora a dor dos que ficaram, um desconforto maior nas viagens aéreas no Ocidente todo. Foi também um desserviço ao Islã. Se antes os muçulmanos, com seus malucos que se explodiam na esperança de encontrar as 72 virgens no paraíso, já eram associados a terrorismo, hoje a associação é mais evidente. Não que todo muçulmano seja um terrorista. Mas eram muçulmanos todos os terroristas que atacaram as torres gêmeas. Não partilho da idéia de que o 11/9 seja a data mais emblemática do século. Já fiz várias vezes esta experiência: perguntar a pessoas de minha idade, ou mais jovens, a universitários e jornalistas, o que ocorreu em Nove de Novembro de 1989. A data é até fácil de guardar, por ser aliterante. Ninguém lembra, ninguém sabe, ninguém viu. 11/9 todos lembram. 9/11 já está enterrado nos escaninhos da memória. Ocorre que o 9/11 transformou muito mais o mundo e o século que o incidente do 11/9. Parece que professor algum, jornalista algum, percebeu a importância do fato. Ou, propositadamente, o omite a seus alunos e leitores. Não é de espantar. Imprensa e universidade brasileiras estão contaminadas até os ossos pela nostalgia do comunismo. Viúvas sofrem muito ao relembrar a morte do marido. No 11/9 morreram cerca de três mil pessoas. No 9/11, morreu um regime que matou 20 milhões de seres humanos.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

MENTIRAS À MANCHEIA

“Um iPad para cada aluno”, Fernando Haddad, um governo depois de ter prometido um note book para os mesmos estudantes. “Quero ser julgado logo”, Zé Dirceu. “Não me venham com novos impostos para a saúde”, Dilma. “Eu não sabia de nada”, o ex, imortalizando a desculpa perfeita. “O PIB vai crescer 3%, mas vou me esforçar para chegar a 4%”, Dilma, de novo. “Eu não sabia que haviam desvios de conduta no ministério”, Pedro Novais, o ex-ministro do Turismo, repetindo seu ídolo em não deixar rabo preso à mostra (mas deixou). “Uma legenda não pode se comprometer por causa de uma pessoa”, Waldir Raupp, colocando a cabeça de Pedro Novais numa bandeja de latão para tentar salvar a imagem putrefata do PMDB, já comprometido por milhares de pessoas. “Vou trabalhar pelo povo”, geral. “Diminuiu a violência no estado”, Jaques Wagner e Sérgio Cabral, em uníssono. “Você são verdadeiros heróis e heroínas. Cada meta atingida é um crime a menos e um cidadão salvo a mais “, Sérgio Cabral, na solenidade que deu prêmio de 50% aos policiais pela diminuição mentirosa da criminalidade, meses depois de rejeitar aumento por heroísmo real dos bombeiros. “Aquecimento global”, Al Gore numa mentira recorrente, como se um dia a Terra tivesse temperatura e clima estáveis. “A corrupção não é maior no governo petista, apenas passou a ser mais combatida pela Polícia Federal”, um mantra entre todos os vermelhinhos da base acéfala. MST, uma das mentiras que vem ruindo aos poucos. Percebe-se, devagar, mas constantemente, que esses terroristas rurais querem renda e não terra. Não são poucos e nem possíveis de serem elencadas sequer pela metade as mentiras da esquerda, dos incolores seus comparsas imóveis e da imprensa que reproduz os releases das assessorias de imprensa sem checarem os dados. Pior, muitas das mentiras proferidas são tidas como verdades pelos seus emissários. Já dizia Chesterton, “nunca discuta com um louco, ele sempre tem razão”. Não entenda mal, sábio leitor. A razão do louco está em sua própria loucura e não se sustenta na realidade. O filósofo Olavo de Carvalho chama a isso de paralaxe cognitiva. A diferença entra as “razões dos loucos”, de Chesterton, e a paralaxe cognitiva, de Carvalho, está na intenção. As mentiras de nossos dirigentes e seus asseclas vermelhos podem ser razões de loucos, se o sujeito deveras acredita nas mentiras que fala e aí há uma intercessão com a paralaxe cognitiva. Porém, quando a mentira tem o propósito de enganar, é um engodo previamente planejada e tem propósitos escusos para a massa privada do poder de análise e interesse, deixa de ser razão de louco, mas safadeza de sãos. Mentir sobre uma prática ideal, como por exemplo a lisura no exercício da atividade pública, enquanto se beneficia da fortuna da viúva é a paralaxe cognitiva em sua essência. E assim se comporta a quase totalidade da esquerda. Os caras ignoram a realidade, o senso crítico exterior, as diferenças entre o discurso e a prática e tentam proliferar suas mentiras pelo país e pelo mundo – vide Barak Obama, Al Gore, Zapatero, Fidel Castro...- contando com a ignorância coletiva. Pior, conseguem. Gramscianamente criaram o politicamente correto, levando a massa ignara a tratar aqueles que saem dos trilhos traçados por esse mundo certinho de Hollywood ou das novelas globais, dos democratas americanos e dos petistas brasileiros, da revista Caras e das entrevistas das celebridades nescafé, aquelas que são feitas em três minutos e consumidas de um gole, de maneira mais cruel do que eram tratados os leprosos nos tempos de Cristo. Aliás, não existem mais leprosos, agora são apenas hansenianos. O grande legado de Maluf, maquiavelicamente justificado, foi o “rouba, mas faz” e esta práxis generalizou-se de cima para baixo e o rebutalho humano que é roubado repete a defesa dos ladrões que o presenteia com uma rua asfaltada ou uma escola pintada de branquinho. Na era lulista e, queira Deus, pós-lulista em andamento, o “rouba, mas faz” foi substituído por “mente, mas acaba com a pobreza” e o terrível “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O burguês segundo Marx

Toda a engenhoca explicativa do marxismo não foi concebida como pura filosofia, e sim como instrumento prático de destruição da sociedade burguesa. Um dos mais queridos entretenimentos dos marxistas, desde há um século e meio, tem sido defender Karl Marx da acusação de economicismo. Longe de reduzir tudo às causas econômicas, dizem eles, o autor de O Capital enxergava no processo histórico a ação simultânea de um complexo de fatores, incluindo o cultural e o religioso, onde a economia só viria a predominar "em última instância", cedendo frequentemente o passo às demais forças. A imagem de um Karl Marx obsediado pela onipotência da economia é, alegam, uma redução pejorativa, criada para fins de propaganda pelos críticos burgueses. Há alguma verdade nisso. Marx não era nenhum simplório, sujeito a deixar-se embriagar pela obsessão da causa única, mágica, universalmente explicativa. Acontece, no entanto, que toda a engenhoca explicativa do marxismo não foi concebida como pura filosofia, e sim como instrumento prático de destruição da sociedade burguesa, e há nela uma nítida defasagem entre a teoria geral da História e a sua aplicação ao capitalismo em especial. Ao descrever o funcionamento da sociedade burguesa, Karl Marx, alegando que assim procede por motivos de ordem metodológica, faz abstração dos demais fatores – culturais, políticos, éticos, religiosos, etc. – e reduz tudo à operação da mais-valia: o truque sujo mediante o qual o "valor" da mercadoria, definido como a quantidade de trabalho necessário para produzi-la, é subtraído aos trabalhadores e embolsado pelo burguês. 'Não interessa, aqui e agora, contestar a teoria da mais-valia. Eugen von Böhm-Bawerk já fez isso melhor do que jamais alguém poderá fazê-lo de novo. A Teoria da Exploração do Comunismo-Socialismo. O importante é notar que, de tudo aquilo que veio ao mundo como elemento constitutivo da sociedade burguesa – o humanismo, a ética protestante, a democracia parlamentar, os direitos civis, a liberdade de imprensa, as eleições, o sistema judiciário independente, a previdência social, as leis de proteção às mulheres e crianças, a escolarização das camadas pobres, a aplicação universal da ciência e da técnica ao melhoramento da vida humana – não sobra, na definição marxista do capitalismo, nada. Capitalismo é exploração da mais-valia: ponto final. Tudo o mais é elemento acidental e secundário, que a "força da abstração" (sic) deve desprezar para se concentrar no essencial. Uma vez montado esse recorte metodológico e descrita na sua lógica interna a "essência do capitalismo", todos os elementos que foram inicialmente removidos para fora do foco são declarados retroativamente irrelevantes de fato e reduzidos a "superestruturas", aparências ou camuflagens ideológicas do mecanismo central que tudo absorve e explica. O "burguês" pode então ser desenhado como o usurpador por excelência, o sanguessuga, o vampiro que engorda extraindo as últimas gotas de energia da classe trabalhadora, e que ainda tem o cinismo de adornar esse crime com as belezas enganosas da cultura moderna, da religião e da assistência social. A obsessão economicista que não se pode imputar a Marx na sua compreensão geral da História é assim restaurada com força total no desenho odiento, monstruosamente unilateral e caricatural, que ele traça do capitalismo e do burguês. Mas, como esse desenho e o rancor que ele despeja sobre a figura do burguês são declaradamente os objetivos finais da obra inteira de Karl Marx, toda a abertura que ele concede àultiplicidade dos demais fatores é apenas uma concessão provisória destinada a camuflar e preparar o economicismo brutal e cru com que ele fomenta a revolta contra a burguesia. Marx não faz o mínimo esforço para demonstrar que a exploração da mais-valia é a causa substancial por trás de todos os benefícios trazidos à humanidade pela cultura da época burguesa. Ao contrário, ele apela a um expediente que, pelo seu contágio, viria a se tornar endêmico entre hordas inteiras de praticantes das "ciências sociais": excluir do campo de enfoque pedaços enormes do objeto estudado e depois, sem a mais mínima razão, dar por demonstrado que são irrelevantes, ilusórios ou inexistentes. O que era pura restrição de método torna-se, por um passe de mágica, uma afirmação objetiva sobre a estrutura da realidade. O efeito persuasivo não se obtém por nenhum acúmulo de provas ou demonstrações, mas pela concentração hipnótica no fator escolhido como "essencial", cuja longa e exaustiva análise ocupa o horizonte inteiro das consciências, removendo tudo o mais para uma distância onde se torna invisível. Que a presença histórica de alguns fatores extra-econômicos tenha precedido de séculos o advento do capitalismo industrial é, portanto, algo que não precisa ser levado em conta, nem explicado. Sem o protestantismo e o humanismo, que remontam ao século 16, nada de sociedade burguesa, mas para que remexer o passado? As provas não só ficam ausentes, mas são criteriosamente evitadas: qualquer tentativa de examinar os elementos excluídos terminaria por trazê-los de novo para o centro do quadro, desfazendo em fumaça o efeito da concentração hipnótica. Não espanta que isso tenha realmente sucedido a vários discípulos devotos, que, no empenho de provar a veracidade do marxismo, acabaram por dissolvê-lo numa variedade de enfoques causais que não têm de marxista senão o nome. Isso já começa com Lênin: a teoria da "vanguarda" partidária que se antecipa ao proletariado e o cria depois da revolução suprime desde logo a ideia dos proletários como forças primordiais da transformação histórica e, de um só golpe, torna inviável qualquer tentativa de definir em termos econômicos as classes antagônicas. Por essa via, o historiador marxista inglês E. P. Thompson chegou à conclusão de que é impossível, mediante critérios de pura economia, distinguir um proletário de um burguês. Herbert Marcuse demite ostensivamente o proletariado da função de classe revolucionária, colocando em lugar dele os estudantes pequeno-burgueses e o Lumpenproletariat que Marx desprezava: bandidos, prostitutas, cantores de boate, drogados, bêbados e malucos em geral. Antonio Gramsci prefere os intelectuais. E Ernesto Laclau proclama que nem é preciso uma classe revolucionária existente: a mera força da propaganda cria a classe revolucionária do nada. Uma teoria que, para conservar seu prestígio, tem de ser levada a dizer o contrário do que dizia não é, com efeito, teoria nenhuma: é apenas o símbolo unificador de um grupo de interesses heterogêneos, que se define, se indefine e se redefine conforme bem lhe interessa no momento, com a inventividade insana dos oportunistas, dos mitômanos e dos criminosos pegos em flagrante.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O culto ao 11/9

O 11 de Setembro mudou o mundo, dizem os textos comemorativos dos dez anos do atentado. Sem querer atrapalhar a comemoração, vale perguntar: Mudou para onde? A humanidade ainda não absorveu o quadro bizarro dos aviões perfurando as Torres Gêmeas. E nunca absorverá. O grau de absurdo e dor contido naquela cena é indigerível. Repeti-la milhões de vezes não é sadomasoquismo. É a busca inevitável (e vã) pelo sentido da monstruosidade. Os homens civilizados não fazem questão de entender o absurdo, mas não abrem mão de explicá-lo. O 11/9 mudou o mundo, inaugurou o novo milênio, acabou com o sonho americano, instaurou a era do medo etc etc etc. Bin Laden deve estar explodindo de orgulho no fundo do mar. Mas, afinal, que mundo é esse criado por Bin Laden e referendado pela sociologia fast food do Ocidente? Se Osama venceu, onde está a prometida escalada do terrorismo internacional? Onde está a epidemia de homens-bomba barbarizando Paris, Nova York, Los Angeles e outras metrópoles pacíficas? O que houve com a al-Qaeda, que faltou a três Copas do Mundo e duas Olimpíadas? Os especialistas mais animados estão dizendo que a atual crise financeira dos EUA começou no 11 de Setembro. Ainda vão descobrir que Bin Laden maquiou o balanço do banco Lehman Brothers e engendrou a sua falência. Atribuir a escalada do déficit público americano aos pilotos suicidas da al-Qaeda é uma acrobacia e tanto. Não estraguem a teoria emocionante lembrando que há décadas os EUA crescem se endividando cada vez mais. Melhor culpar – ou condecorar – o Osama. Dizem que os americanos se afundaram em gastos militares no Afeganistão e no Iraque depois do atentado de 2001. Claro que, numa hora dessas, ninguém vai lembrar os trilhões de dólares enterrados na Guerra Fria – quando os EUA se firmaram como potência hegemônica. Perde a graça. O 11 de Setembro abalou a fé na civilização Ocidental e forjou uma geração amedrontada, analisam os categóricos do caos. É mesmo estranha essa geração amedrontada, que sai às ruas livremente nas maiores cidades da Europa e das Américas para defender seus direitos políticos, estudantis ou sexuais. Geração amedrontada que se conecta com o mundo como nenhuma outra, surfando nas maravilhas tecnológicas da comunicação em rede – nascida da civilização Ocidental, ou, mais precisamente, dos Estados Unidos da América. Esse, sim, um novo horizonte sociológico, que explodiu no mesmo período do 11 de Setembro, e dez anos depois ajudou a derrubar ditaduras no Oriente Médio. Mas há ocidentais que preferem ver a internet como arma de fortalecimento da al-Qaeda. Só não se sabe exatamente onde essa organização tão poderosa e letal para o Ocidente está atuando, fora da sociologia fast food. Talvez tenha virado acionista do MacDonalds.

domingo, 11 de setembro de 2011

GUIA PARA FINGIR INTELIGÊNCIA

Vamos ser sinceros: Nem todo mundo é capaz de citar as cem primeiras casas de Pi ou mudar para sempre o entendimento da raça humana sobre um campo científico. Foi pensando em vocês que este pequeno guia para ajudá-los a fingir ter inteligência foi elaborado. Pintura Lembre-se dessa regra simples: Toda pintura clássica é a relação do homem com deus. Toda a pintura moderna é a relação do homem com o homem em um mundo sem deus. Se você está parado na frente de um quadro cheio de respingos, manchas e qualquer outra coisa que uma criança no primaário faria, finja estar concentrado e se perdendo na “narrativa emocional tão presente nas pinceladas”. Diga que você quase pode sentir a pulsação do autor e sua frustração com o mundo moderno. Note que o pintor abandonou qualquer tentativa de mudar o mundo com sua arte e se concentra em mudar nós, o seu público. E emende: “E atinge de forma exemplar seu objetivo”. Se tiver que citar uma pintura predileta não se arrisque muito, cite “Noite Estrelada” de Van Gogh ou qualquer um do Da Vinci. Pintores dos quais você DEVE gostar: Van Gogh, Magritte, Pollock, Caravaggio, Goya, Da Vinci. Nota: Pessoas realmente inteligentes por terem um intelecto tão grande são extremamente seletivos, logo esnobar algum pintor de renome não é apenas natural, como desejado, já que expressa personalidade. Critique Degas, Frida e Picasso (não importa qual você escolha diga algo como “o maior atraso para a pintura nos últimos 100 anos!”). Filmes Blockbusters são acéfalos e entretenimento das massas. Pão e circo. Feito por uns fariseus que querem matar a sétima arte. Diga que nenhum diretor americano sequer chegou perto de “Morangos Silvestres” (você nem precisa saber nada, já que a maioria também não vai saber). Diga que um filme que apela para efeitos visuais sem fazer pensar é um desperdício de tempo. Mesmo que o conceito de “fazer pensar” seja totalmente arbitrário e definido por você. Diretores que você DEVE gostar: Stanley Kubrick, Akira Kurosawa, Robert Altman, Woody Allen, Ingmar Bergman, os irmãos Coen, Michelangelo Antonioni e qualquer cara europeu. Citações Use citações sempre e sempre, ad infinitum. Um indivíduo culto e instruído como você não precisa expressar seus próprios pensamentos e sua própria opinião sendo que você sabe que houve pessoas célebres muito mais inteligentes e cultas que qualquer um na sala que disse algo definitivo a respeito do assunto. Nota: Se você encontrar alguém que esteja usando esta técnica o desafie. Pessoas cultas sempre têm duelos intelectuais onde seus neurônios são postos à prova. Em algum momento diga: Como Voltaire disse: “Uma boa citação não prova nada”. O que é, em si mesma, uma citação e que portanto não prova nada, mas que por causa desse viés irônico e metalinguístico fará muito sucesso por ser pós-moderno. Pensadores dos quais você DEVE gostar: Nietzsche, Voltaire, Oscar Wilde, Einstein, Gandhi, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e a unanimidade: Confúcio. Aliás, Confúcio é meio que o Capitão Óbvio. Se não tem nada para dizer diga: “Como Confúcio disse, merda faz flores crescerem e isso é lindo”. Ou “Como Confúcio disse, virgindade é como bolhas. Basta cutucar e ela se vai” ou ainda “Como Confúcio disse, calcinhas não são a melhor coisa do mundo, mas ficam bem próximas disso”. Confúcio disse coisas demais. Filosofia A Filosofia não é como a ciência, onde se você se concentrar em Newton, por exemplo, logo que você encontrar um sujeito obcecado com Einstein você será o bundão da sala. Em Filosofia, mesmo dizendo algo completamente diferente de todos, um filosofo dentro de seu sistema de pensamento está certo. Ao menos possui lógica interna. E, lembre-se dessas palavras: “após o mundo pós-moderno fragmentar e relativizar a noção de verdade e conhecimento, mostrou-se que nossos sistemas por mais refinados que sejam jamais poderão nos dar um conhecimento da coisa-em-si, que nunca teremos contato. Resta que tudo é uma amálgama de conhecimento a priori e a posteriori que podem nos levarmos a lugar nenhum”. O que isso quer dizer? Não estou certo, mas uma parte é que não há verdade. Especialize-se em um filósofo, i.e, aprenda uma ou duas frases deles, período histórico e principal obra (veja na Wikipédia). Improvise no meio da conversa e critique qualquer outro. Simples. Por exemplo, você acabou de ver Juno e tem uma discussão sobre aborto com seus amigos. Você é um especialista em Platão, improvise, cite o mundo das idéias, que a idéia do bebê existe antes dele e que portanto o aborto é anti-natural. Cruze os dedos e torça para ninguém lhe lembrar de que na Grécia o aborto não era nem mesmo discutido pois se nascia uma criança com defeitos eles simplesmente jogavam montanha abaixo. Nota:Também critique a noção dos outros em filosofia. A maioria das pessoas mal conhece o campo e a equipara com “filosofia de vida” ou ainda puro pensamento abstrato, uma parte é, mas encha o saco deles citando Wittgenstein, Russel, filosofia analítica. E critique os existencialistas, apenas como uma forma de se divertir, “Sartre? Emo. Nietzsche? Über-emo!”. Filósofos dos quais você DEVE ter conhecimento: Platão, Aristóteles, Sócrates, Descartes, Kant, Nietzsche, Schopenhauer, Hobbes, Rosseau, Hume, Sartre, Hegel e talvez Marx. Literatura Ninguém hoje em dia escreve tão bem quanto qual qualquer clássico. Lembre isso a qualquer pessoa mesmo que ela nem queira saber. Ignore o fato de que os escritores clássicos diziam a respeito de sua própria época e escreviam em uma linguagem que espanta qualquer leitor moderno, mas que para a época era o padrão. Se um livro é best seller ele logicamente não presta. Cuidado! Se você for visto com um best seller na mão poderá ser muito ruim para a sua reputação. Se ganhar algum de presente pergunte para quem lhe presenteou se você pode trocá-lo. Claro que não precisa, mas você tem uma reputação a zelar. Dica: Goste do cânone, lógico. Mas invista em literatura marginal, subversiva. Por quê? Se o cânone quase nenhum deles leu, imagine a literatura subversiva…Então aprecie os beats como Kerouak, Burroughs. Ou algum tipo muito específico de literatura. Japonesa (Haruki Murakami), Hebraica (Amos Oz), etc. Você DEVE fingir ter lido: James Joyce, Kafka, Proust, Machado de Assis, Cervantes, Hemingway, Orwell. Política Ortega y Gasset, filósofo espanhol já dizia que ser da direita ou da esquerda são apenas mais duas formas do homem ser um completo idiota, e é assim que se divide basicamente o politizado, que se faz passar por entendimento e mesmo inteligente (vê como eu apliquei aqui dois conceitos previamente estudados (1) Citei um filosófo. Citações, citações e (2) Desprezei este tópico, política, o que mostra que seleciono como viver e pensar a minha realidade): Direita O Governo Dilma é chata, feia e boba. O presidente Lula era um bêbado (falácia ad hominem). Michel Temer é satanista! (falácia ad demonium). O FHC salvou o mundo e ainda ficou com a garota no final. Entrar na comunidade: “LUTO! Dilma foi eleita”. E se esquecer de que vive em uma democracia. Você DEVE gostar de: Casamento, deus, Capitalismo, mercado livre, Estados Unidos. Sonho de consumo: viagem para Disney Esquerda Como a esquerda era melhor há 30 anos atrás. Lembram-se das diretas já? As pessoas lutavam pelos seus direitos, hoje em dia ninguém liga para nada. Che Che Che Che Che. O Capital. Marx. Che Che Che Che Che. Maio de 68, anarquismo. Hakim Bey. Libertário. Che Che Che Che Che. Se você for jovem entrar na comunidade “Comunista não come criancinha”, cuja descrição é: “Somente garotas maiores de dezoito anos e consensual”. Você DEVE gostar de: Marx, Trotsky, Feminismo, Reforma Agrária, Creative Commons, sexo livre. Sonho de consumo: viagem para Cuba Esportes Futebol é para idiotas. Esportes inteligentes incluem: Xadrez, Esgrima e críticas destrutivas ao que quer que sua mente brilhante analise. Você também pode estar propenso a gastar 300 reais para ver uma corrida de Fórmula 1 e ficar sentado no sol para ver só uma imagem borrada passando na sua frente e um barulho que quase estoura seu tímpano. Você DEVE gostar: Zico (Pelé é para idiotas), Futebol Europeu (lá eles realmente tem inteligência no esporte – mas de onde saem os jogadores deles mesmo?), Ayrton Senna. Gastronomia Só usar “gastronomia” para se referir a “comida” já é uma grande passo que o diferenciará de 90% das outras pessoas. Você nem precisa saber fazer um miojo. Se dominar o vocabulário e o nome de alguns ingredientes já está valendo. Você DEVE gostar de: Foie Gras, Vitela, Escargot, Champagne (Espumante é para os fracos), Vinho, Filé Mignon. Dica: Nunca diga que está cheio. “Estou satisfeito” ou “Estava simplesmente fabuloso!”. Pessoas com etiqueta aparentam ser inteligentes. Invista nisso. Música A verdade é qualquer analfabeto consegue fazer música (a frase é do Millôr para quem quiser tirar satisfações — vê? Citações, citações). Rap, pagode, sertanejo, hardcore, rock, pop, disco, eletrônica são entretenimento dos imbecis, ligam o som alto para encher suas cabecinhas ocas de pensamentos. Música é a harmonia das esferas, uma arte humana matematicamente complexa. Aproveite e cite que para Schopenhauer e Nietzsche eram as mais elevadas formas de arte. Lembre-se que um sujeito altamente inteligente tende a desprezar a produção artística de seu tempo e prefere os caras mortos. Despreze o funk, sobre o qual “não emitirei juízo, pois nem música é”. E esnobe o rock, “é uma prova de que qualquer um pode fazer música, até analfabeto”. MPB convém gostar pois socialmente é ouvido pelas classes mais abastadas e uma pessoa inteligente sabe que é muito importante tê-los como amigo, mesmo achando as composições todas iguais e usando os mesmos acordes. Mas claro toda regra tem suas exceções: The Beatles, Rolling Stones, por exemplo são bandas que uma pessoa inteligente pode gostar. Radiohead entre as atuais, por fazer um “rock inteligente” também. Emita frases enigmáticas como: “Afinal em nossa sociedade, o que fazer senão gritar?”. Você DEVE gostar de: Beethoven, Mozart, Bach, Haendel, Rachmaninoff, Camille Saint-Saëns, Vila Lobos, ou se especialize em um nicho como “rock dos anos 70″, “musica pop dos 80″ e seja extremamente chato ao comparar com o “deserto contemporâneo de boas composições”. Na dúvida decore o nome de três ou quatro bandas indies que deve resolver. Blogs Uma pessoa tão inteligente como você deve ter um veículo de expressão de suas idéias. O mundo não pode ser privado de seus pensamentos. Seria um desperdício. E nesses tempos de ecologia e politicamente correto não há nada pior do que desperdício. Crie um blog! Claro que isso é só um antes de você escrever o livro definitivo, depois do qual ninguém nunca mais precisará ler coisa alguma. Use uma linguagem diferente da que usa no dia a dia. Escreva como Machado de Assis. Seja contra o “miguxês”, em suas palavras, “um atentado contra a última flor do lácio!”. Sei que espera ansiosamente por cada comentário, mas uma vez que os tenha – e será algo como “rox!!!!”, “um bjo para o Rafinha do BBB! fuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiii…..”, você vai fazer uma postagem malcriada a respeito da “imbecialidade” que assola nossos país. Você, o ápice, o zênite, a epítome, o cume, o clímax da inteligência vivendo nesse país de iletrados! Você é um oásis em um deserto. Você DEVE postar sobre: O vídeo “Dancem Macacos, dancem”, qualquer coisa da Apple (mesmo talvez 5% sendo Apple, dá a você um status cool e inteligente), trechos de livros de filosofia, opinião política e por último mas não menos importante, Pequeno guia para fingir inteligência (assim, através da ironia você se passará por inteligente). Computadores A verdade é que todo mundo hoje em dia se acha “conhecedor” de computadores. O status de ser nerd e geek até mesmo virou cool. Banalizaram tanto a coisa que muitos que assistem desenho animado japonês ou só porque sabem usar torrent já se consideram com tais rótulos. Mas você deve mostrar a eles que sabe mais. Minha primeira dica é ler sobre modelos antigos de computador. A estratégia amplamente usada de falar sobre Linux é muito importante. As pessoas comuns sofrem da chamada “Síndrome da Linha de Comando”, então invocar o Linux é um porto seguro para se fechar em sua casca de noz e se considerar o rei do espaço infinito. Mas graças ao Ubuntu as coisas estão mudando e rápido. Há, ainda que pequena, uma chance de encontrar outra pessoa que conheça Linux, então fale da superioridade dos Macs e de como Steve Jobs salvou o mundo e irá deixá-lo ainda melhor quando voltar (pois ele prometeu que voltará). Use o vocabulário religioso, trocando “Jesus” por “Steve” e “deus” por Apple que dará tudo certo. Além de fingir conhecer o tema, o alto preço dos Macs ainda lhe darão um status elitista. Coisas que DEVE citar: Ruby on Rails, Python, Cocoa, PHP, C++, Java, Firefox, “Windows é para os fracos”. E se nada disso der certo, saia com uma loira.