"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

domingo, 11 de março de 2012

DENTRO DE CASA - J. R. GUZZO ( REVISTA VEJA )

Uma das melhores decisões que o atual governo tomou na área da educação, on talvez em qualquer área, foi a criação, no ano passado, de um programa de bolsas de estudo em universidades estrangeiras para estudantes interessados em aperfeiçoar seus conhecimentos depois de formados no Brasil. Não se trata de mandar gente para Cuba, Moçambique ou coisa parecida; as bolsas se destinam a cursos em universidades dos Estados Unidos, Alemanha, Inglaterra, França e Itália, nas quais se oferece hoje, de modo geral, o ensino superior mais avançado do mundo. Também não servem para quem queira estudar movimentos sociais, direção de cinema ou gastronomia sustentável. As bolsas, aqui, são reservadas exclusivamente para coisas que têm a ver com a vida real da produção matemática, física, biologia, química e, num segundo momento, áreas como tecnologia mineral, petróleo, gás natural e outras disciplinas científicas. O Brasil, no momento, tem uma necessidade desesperada de profissionais com alta qualificação em tudo isso, Um vasto leque de atividades essenciais para uma economia moderna depende diretamente deles -sem a sua presença nas empresas, sejam elas privadas ou esfaz imaginar, o número de alunos diplomados ao fim dos cursos está diminuindo, ao invés de aumentar. Tudo bem, portanto, até aí; mas só até aí. Esta mos no Brasil o no Brasil, é bom lembrar, o governo consegue errar mesmo quando acerta. No caso, está deixando uma parte de sua máquina desmanchar o que outra faz de bom: ao mesmo tempo em que paga para jovens brasileiros aprimorarem seus conhecimentos científicos e tecnológicos nas melhores universidades estrangeiras, empenha-se ao máximo para dificultar, depois que voltam ao Brasil, o reconhecimento dos títulos que obtiveram no exterior. Não é isso que o governo, no seu comando supremo, quer. Mas é o que acontece. Como o jornal O Estado de S. Paulo relatou em artigo recente, as autoridades educacionais encarregadas de validar os diplomas dos bolsistas dedicam-se, na prática, a um trabalho de sabotagem permanente contra eles e, naturalmente, contra o público que está pagando a conta. Há exigência da mesma carga horária que teriam nas universidades brasileiras, "das mesmas disciplinas e currículos, do mesmo esquema de avaliação de teses, de traduções juramentadas e de documentos expedi dos por consulados". A Universidade de Brasília, uma das encarregadas de fazer o reconhecimento de títulos, só examina, em cada setor de estudo, seis casos por semestre. E comum o bolsista esperar um ano ou mais pela validação. Se fez seus estudos numa universidade americana, as coisas podem ficar ainda piores. Em todo o sistema o que prevalece é a hostilidade ao mérito individual, a ditadura do carimbo, a ideologia boçal que separa o conhecimento científico entre o nacional, bom e popular, e o estrangeiro, ruim e elitista.
Essa história das bolsas é mais uma demonstração , brasileiras ou multinacionais que operam no país, simplesmente não é possível executar uma infinidade de novos projetos na indústria, infraestrutura, agricultura, exploração de recursos naturais e virtualmente qualquer área do universo produtivo. Investimentos ficam bloqueados. Perde-se espaço para os competidores estrangeiros. Sofrem a criação de empregos, a melhoria de renda e a arrecadação de impostos. A iniciativa é um belo exemplo de como utilizar com respeito, inteligência e eficácia o dinheiro público, que pagará diretamente 75% de todas as despesas do programa; é investimento certo, com retorno certo e na hora certa. Serviria, quem sabe, como um contrapeso para as informações desanimadoras que acabam de sair das universidades brasileiras -ao contrário do que a propaganda oficial demonstração, entre tantas, do abismo que separa, dentro do governo brasileiro, as intenções dos resultados e mais uma prova da impotência generalizada dos que mandam em relação aos que executam. Decidir bem, como todo mundo sabe, já é uma luta. Tudo fica muito mais complicado, obviamente, se os encarregados de executar as decisões não se interessam em cumpri-las. E o que vive acontecendo. Executam mal, ou executam devagar, ou simplesmente não executam -mesmo porque, muitas vezes, devem seguir regras que não lhes permitem praticar as ordens que recebem. O que se tem, ao fim da linha, é simples: quanto mais a alta autoridade manda, tanto menos a baixa autoridade obedece. O verdadeiro inimigo a vencer está dentro de casa.

sábado, 10 de março de 2012

FUNDAMENTOS DO ATEÍSMO

Já que duas personalidades, Ives Gandra Martins e Daniel Sottomaior, se engalfinharam em polêmica acerca de um suposto fundamentalismo ateu, aproveito para meter o bedelho nessa intrigante questão.
Não se pode chamar de fundamentalista quem exige provas antes de crer. Aqui, o alcance do ceticismo é dado de antemão: a dúvida vai até o surgimento de evidências fortes, as quais, em 2.000 anos de cristianismo, ainda não apareceram.
Ao contrário, dogmas vão contra tudo o que sabemos sobre o mundo. Virgens não costumam dar à luz e pessoas não saem por aí ressuscitando. Em contextos normais, um homem que veste saias e proclama transformar vinho em sangue seria internado. Quando se trata de religião, porém, aceitamos violações à física e à lógica. Por quê?
Ou Deus existe e espera de nós atitudes exóticas -e inconsistentes de uma fé para outra-, ou o problema está em nós, mais especificamente em nossos cérebros, que fazem coisas esquisitas no modo religioso.
Fico com a segunda hipótese. Corrobora-a um número crescente de cientistas que descrevem a religiosidade ou sua ausência como estilos cognitivos diversos. Ateus privilegiam a ciência e a lógica, ao passo que crentes dão mais ênfase a suas intuições, que estão sempre a buscar padrões e a criar agentes.
Posta nesses termos, fé e ceticismo se tornam um amálgama de influências genéticas e culturais difícil de destrinchar - e de modificar.
Como bom agnóstico liberal, aplaudo avanços no secularismo, já que contrabalançam o lado exclusivista das religiões, que não raro degenera em violência e obscurantismo. Mas, ao contrário de colegas ateus mais veementes, acho que a religião, a exemplo do que se dá com filatelia, literatura e sexo, pode, se bem usada, ser fonte legítima de bem-estar e prazer.

quarta-feira, 7 de março de 2012

OBJETOS DE ARTE: TABAQUEIRA COM CAMAFEU (C.1780/1810)

O uso do tabaco, assim como aconteceu com outros hábitos adotados pelo homem, levou a várias manifestações nas artes plásticas. Em pintura, em escultura, em fotografia, no cinema, etc.
A criatividade e a beleza se uniram ao lado prático. Os que mascavam as folhas de tabaco puderam contar com lindas facas para picar o fumo, potes para guardar as folhas, caixas e bolsas de incrível beleza.
O uso do rapé possibilitou a criação, na China, de pequenas garrafas para guardar o tabaco seco e moído, enquanto que no Ocidente davam preferência às caixas de rapé, ou tabaqueiras. Porém nos dois lados do mundo artesãos e ourives se esmeraram na criação de lindos objetos, cuja beleza intrínseca ou história de uma época ou momento, hoje encantam os visitantes dos museus.
A beleza não era o único elemento a atrair o comprador desses objetos. Era necessário que fossem fáceis de carregar e de manusear. Como era hábito caro ao qual só os ricos tinham acesso, era natural que fossem feitas em materiais nobres e que a decoração fosse importante.
Mas o fator principal era que a tabaqueira fosse à prova de vazamentos e que mantivesse o rapé em boas condições.
A caixa que mostramos hoje é um dos mais perfeitos exemplos: une beleza à eficiência, pois fica hermeticamente fechada, o que podia conservar o fumo seco e perfumado. É criação de Neuber (1736/1808), um ourives que aprendeu seu ofício com o sogro, Heinrich Taddel, famoso ourives saxão.


Neuber se especializou em criar objetos onde misturava pequenos pedaços de pedras duras, ou semipreciosas, como mármore, jade, ágata, ônix, alabastro, e outras, cortados e lapidados com muita criatividade, e inseridos no ouro, o que formava lindos mosaicos que mais pareciam pinturas. O desenho podia variar, mas o comum eram formas geométricas que aproveitavam a beleza das inúmeras cores dessas pedras. A técnica, italiana, data de 1500 e atingiu seu auge em Florença
No início do século XIX surgiu a moda de exibir nas tampas das tabaqueiras miniaturas ou camafeus. A caixa em ouro e pedras duras feita por Neuber em c.1780, apresenta um detalhe curioso: por volta de 1810 recebeu um camafeu, obra do gravador romano Nicolò Morelli (1771/1838.
O camafeu, em marfim, representa a cabeça de Minerva. Ao que parece, o dono da caixa queria estar na moda, mas não queira se desfazer de um objeto cuja eficácia já comprovara.
Acervo Museu Britânico.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Dia Internacional da Mulher

Existem pessoas frágeis, mas sexo frágil, esqueça. As mulheres nunca estiveram tão fortes, decididas, abusadas até. O que é saudável: quem não busca corajosamente sua independência acaba sobrando e vivendo de queixas. Uma sociedade de homens e mulheres que prezam sua liberdade e atingem seus objetivos é um lugar mais saudável para se viver. Realização provoca alegria.
O que não impede que prestemos atenção no que essa metamorfose pode ter de prejudicial. As mulheres se masculinizaram, é fato. Não por fora, mas por dentro. As qualidades que lhes são atribuídas hoje, e as decorrentes conquistas dessa nova maneira de estar no mundo, eram atributos considerados apenas dos homens. Agora ninguém mais tem monopólio de atributo algum: nem os homens de seu perfil batalhador, nem as mulheres da sua afetividade. Geração bivolt. Homens e mulheres funcionando em dupla voltagem, com todos os atributos em comum. Mas seguimos, sim, precisando uns dos outros – como nunca.
Não são poucas as mulheres potentes que parecem conseguir tocar o barco sozinhas, sem alguém que as ajude com os remos. Mas é só impressão. Talvez não precisem de quem reme com elas, mas há em todas elas uma necessidade ancestral de confirmar a fêmea que invariavelmente são.
E isso se dá através da maternidade, do amor e do sexo. Se não for possível ter tudo (ou não quiser), ao menos alguma dessas práticas é preciso exercer na vida íntima, caso contrário, virarão uns tratores. Muito competentes, mas com a identidade incompleta.
A virilização da mulherr é interessante em muitos pontos, mas se tornará brutal se chegarem ao exagero de declarar guerra aos seus instintos.
Ok, ser mãe não é obrigatório, ter um grande amor é sorte, e muitas mulheres fazem sexo apenas para disfarçar o desespero da solidão, mas seja qual for o contexto em que se encontrarem é importante seguir buscando algo que as conecte com o que lhes restou de terno, aquela doçura que cada mulher sabe que ainda traz em si e que deve preservar, porque não se trata de uma fragilidade paralisante, e sim de uma característica intrínseca ao gênero, a parte delas que se reconhece vulnerável e que não precisa se envergonhar disso. Se é igualdade que a mulher quer, extra, extra: homens também são vulneráveis.
“Cuida bem de mim”, dizia o refrão de uma antiga música do Dalto, e que Nando Reis regravou recentemente. Cafona? Ora, se a mulher não se desfizer da prepotência e não se permitir um tantinho de insegurança e delicadeza, a construção desta “nova mulher” terá se desviado para uma caricatura. A intenção não era a mulher se transformar no estereótipo de um homem, era?
Cuide-se bem, e permita que os outros lhe cuidem também. Viva o dia internacional dessa porção mulher que anda resguardada demais, mas que não deveria ficar assim tão escondida: não a desmerece em nada.

O Amor

Não me venha Vinicius com essa história de amor infinito enquanto dure... se é infinito é também eterno.
Não me venha Drummond com essa história de o primeiro amor passou... se passou não era amor.
Não me venha Rachel de Queiroz dizer que o amor começa a morrer no dia que nasce, o amor não é apenas uma célula (ou, como diria Deleuze, são organismos que morrem, não a vida).
Não me venha Gautier dizer que só a arte é eterna, nenhuma arte se constrói fora do amor.
Não me venham tantos outros falar do amor verdadeiro, amor falso não é amor.
O que o meu coração se lembra todas as manhãs são as palavras do mais sábio de todos os homens, Salomão, que escreveu: "As muitas águas não podem apagar este amor, nem os rios afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens de sua casa pelo amor, certamente o desprezariam."
O que meus poros exalam em todos os momentos são os versos de Becquer:

Podrá nublarse el sol eternamente;
Podrá secarse en un instante el mar;
Podrá romperse el eje de la tierra
Como un débil cristal.
¡todo sucederá! Podrá la muerte
Cubrirme con su fúnebre crespón;
Pero jamás en mí podrá apagarse
La llama de tu amor.

E todos os dias seu amor, enche a minha mente de poesia, mas o que é poesia mesmo??

¿Qué es poesía?, dices mientras clavas
en mi pupila tu pupila azul.
¿Qué es poesía? ¿Y tú me lo preguntas?
Poesía... eres tú.

Obrigado por me dar essa certeza o tempo todo.

sexta-feira, 2 de março de 2012

O BIG BANG É UM MAL-ENTENDIDO

 

Site Geografia Hoje – Publicado na Revista Superinteressante



Hubert Reeves, um dos mais instigantes astrofísicos da atualidade, diz que a ciência não sabe como o Universo surgiu: `Ela nem sabe se o Universo teve uma origem^. Para ele, a Grande Explosão é só uma metáfora sobre o estado de Cosmo há cerca de 15 bilhões de anos.
O lançamento de um telescópio espacial e a construção de um anel subterrâneo para o choque de partículas subatômicas têm mais em comum do que a vista alcança: astrônomos, de um lado, e físicos, de outro, todos querem à sua maneira enxergar o Universo como era há uns 15 bilhões de anos, quando surgiu de uma explosão cósmica. Surgiu? Explosão? De repente, o Big Bang, uma das idéias científicas mais elegantes do século XX, sucesso de público e de crítica, começa a ser duramente questionado. Nada prova que o Universo tenha surgido, dizem os novos céticos. E, se surgiu, nada prova que tenha sido de uma explosão.
Nesse fascinante debate, uma voz ocupa cada vez mais o centro das atenções. Trata-se do astrofísico franco-canadense Hubert Reeves, 67 anos, doutor em Física pela Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, ex-conselheiro científico da NASA e diretor de pesquisa do renomado Centro Nacional de Investigações Científicas (CNRS), em Paris. De aparência frágil, embora seu esporte preferido seja esquiar, e temperamento afável, embora não se recuse à polemica. Reeves cultiva uma barba bíblica e uma louvável atitude de humildade cientifica. Conhecido divulgador de obras de ciência, dedicou "a todas as pessoas maravilhadas com o mundo" um de seus livros editados no Brasil, Um pouco mais de azul (1986). O outro é A hora do deslumbramento (1988). 

- Hoje em dia, não é só aos homens de fé, mas, sobretudo aos homens de ciência, que se pergunta a respeito das grandes questões existenciais. Principalmente àqueles, como o senhor, que buscam encontrar nossas origens nas estrelas. Será que a Astrofísica quer se impor como uma nova metafísica?
 - Nem seria preciso. Se desde alguns anos os astrofísicos tornaram-se freqüentemente ouvidos sobre questões religiosas, se tanto as pessoas se perguntam qual o lugar do homem no Universo, talvez seja simplesmente porque tomamos consciência da nossa fragilidade e da do nosso planeta. Mas não se deve esquecer que ciência e religião percorrem campos muito diferentes: a primeira se pergunta como o mundo é feito: a segunda, como viver nossa vida de homens. Elas podem se esclarecer mutuamente, mas desde que cada uma permaneça em seu território. De rosto, sempre que a Igreja tentou impor sua explicação do mundo resultou um conflito. Lembrando-nos de Galileu e de Darwin.
- Não obstante, a religião católica parece aceitar bem atualmente as proposições da Astrofísica, a famosa teoria do Big Bang, por exemplo.
- Sim. Talvez porque se fez do Big Bang uma nova mitologia, identificando-o à criação bíblica do mundo, o Fiat Lux (Faça-se a luz).
- Mas como não fazer a aproximação? No princípio era o Big Bang, uma formidável explosão de luz, a 15 bilhões de anos, dando origem no Universo. Não é o que dizem os astrofísicos?
- Não. Não podemos afirmar que o Big Bang seja a origem do Universo.
- Mas é o que os senhores vêm repetindo há anos.
- Eu sei. Provavelmente nós nos exprimimos mal e fomos também mal compreendidos. Hoje a ciência de modo algum pode afirmar que conhece a origem do Universo. Ela nem sequer sabe se o Universo teve uma origem. Falar de um começo implica obrigatoriamente a idéia de que antes desse acontecimento não havia nada. Ora, isso não sabemos.
- Se assim é, se o Big Bang não é a Origem, o que quer dizer afinal essa expressão?
- Ela designa o estado em que se encontrava o Universo há 15 bilhões de anos, eis tudo. Ou seja, a época mais longínqua que nossos meios atuais permitem alcançar. Somos como exploradores diante de um oceano: não sabemos se existe algo além do horizonte. Com efeito, o Big Bang não representa os limites do mundo, mas unicamente os limites dos nossos conhecimentos. Tudo o que sabemos é que há 15 bilhões de anos o Universo era muito diferente do atual: era extremamente quente — bilhões cie graus —, muito denso e desorganizado. Evidentemente, nada de vida, nada de estrelas, nada de galáxias. Nada de moléculas, nada de átomos, nada mesmo de núcleos atômicos. Apenas uma sopa gigantesca, um purê de partículas elementares: elétrons, fótons (ou seja, pequenos grãos de luz) e também quarks e neutrinos, os futuros constituintes dos átomos. Numa palavra, o caos.


- Como se sabe disso?


- Graças às descobertas da Física e da Cosmologia. Um primeiro grande princípio foi enunciado por Galileu. Antes dele, acreditava-se que existiam dois mundos: o nosso, cambiante e perecível: e o outro mundo, situado além da -Lua, imutável e eterno. -Não obstante, a Lua tem montanhas como a Terra'', constatou Galileu. O que sugere que ambas são astros que fazem parte de um mundo único e que este é regido pelas mesmas leis. É uma descoberta fundamental aquela que Newton enunciará por sua vez: as leis da Física se aplicam tanto à Terra quanto ao Universo inteiro. Graças a esse principio, desde o século XVIII foi possível, por exemplo, estudar o espectro atômico das estrelas e hoje simular as forças do Universo nos grandes aceleradores de partículas. Agora, existem provas de que as constantes universais, como a velocidade da luz ou a massa de um elétron, não variam há bilhões de anos.


- Que provas são essas?


- Ao contrario dos historiadores que jamais poderão contemplar Roma Antiga, os astrofísicos podem verdadeiramente ver o passado. Na escala do Universo, a luz não viaja tão depressa assim. Um telescópio é uma maquina de voltar atrás no tempo: permite observar astros muito longínquos como os quasares, cuja luz levou 12 bilhões de anos para nos alcançar, astros que não existem mais hoje.


- Quer dizer que os astros que vemos essas miríades de estrelas, todas essas galáxias não passam de uma ilusão, uma imagem do passado?


- Mas, tudo o que vemos é assim. Não se vê jamais o presente. Quando eu olho, para você, eu a vejo no estado em que estava há um centésimo de microssegundo, o tempo que a luz levou para chegar até mim. Um centésimo de microssegundo é muito tempo na escala atômica. Felizmente, os seres humanos não desaparecem nesse lapso de tempo e eu posso formular sem risco a hipótese de que você está sempre aí. O mesmo vale para o Sol: durante os oito minutos que sua luz leva para chegar à Terra, ele não muda fundamentalmente. Mas, para os astros distantes, é diferente. Quando se fixa um quasar, se recebe uma luz velha, emitida há 12 bilhões de anos. Ora, sabemos que a luz - outra importante descoberta da Física - é na verdade um fluxo de minúsculas partículas a que chamamos fótons. No nosso olho, ou na objetiva do telescópio, recebemos, portanto fótons muito velhos, que viajaram durante 12 bilhões de anos. Em laboratório podemos perfeitamente estudá-los e analisar, por exemplo, sua freqüência ou sua energia. Além disso, sabemos fabricar simplesmente um novo fóton, ao criar um lampejo de luz. Comparando as duas partículas, a muito velha e a nova em folha, encontramos as mesmas constantes físicas. As leis não mudaram passados bilhões de anos.


- Ainda assim, o Universo mudou.


- Sim, é de resto a grande descoberta do nosso século: o Universo evolui, tem uma historia, não é nem imóvel nem eterno, assim como Galileu, Newton e mesmo Einstein o pensaram.


Dispõe-se até de provas visíveis: a escuridão do céu por exemplo.


- Por que isso seria uma prova da evolução do Universo?


- Se o Universo fosse eterno, as estrelas teriam emitido luz desde sempre e o céu estaria repleto de claridade. Se é negro, é porque as estrelas nem sempre existiram. E porque, de resto, o espaço entre elas aumenta sem cessar. Disso estamos hoje convencidos: o Universo está em expansão. Foi um astrônomo americano, Edwin Hubble, chie por volta de 1930 constatou que as galáxias se distanciavam umas das outras, tanto mais rapidamente quanto is distantes fossem. Algo como um pudim de passas que se leva ao forno: á medida que ele cresce as passas se distanciam umas das outras. Esse movimento conjunto foi confirmado depois por numerosas experiências e hoje se admite que o Universo infla e esfria há cerca de 15 bilhões de anos.


- Por que se chegou a 15 bilhões?


- Basta passar o filme ao contrário. Quanto mais se volta atrás no tempo, mais as galáxias se aproximam: o Universo é cada vez mais denso, logo cada vez mais quente e cada vez mais luminoso. Chega-se assim a 15 bilhões de anos. Nesse instante a densidade da matéria é infinita, assim como a temperatura do Universo. Tudo isso está confirmado por fósseis descobertos recentemente.


- Fósseis?


- Fósseis cosmológicos são, com efeito, os dados de observação que permitem reconstituir o passado. Algo como os pré-historiadores fazem com fragmentos de ossos. Assim descobrimos uma "radiação fóssil" que permitiu calcular que há 15 bilhões de anos o Universo tinha uma temperatura de pelo menos 3 mil graus. Outros elementos recentes, as medidas da relativa abundância de hidrogênio e de hélio, mostram que cerca de 1 milhão de anos antes o calor alcançava 10 bilhões de graus. E mesmo somente alguns minutos antes, vários bilhões de graus.


- Eis então nosso Big Bang. Voltamos à idéia de um começo. Se retornamos no tempo, o seu Universo-pudim é apenas uma bola, com todas as passas agrupadas.


- Não. Nossos modelos matemáticos sugerem que, nesse instante, mesmo que a matéria estivesse num estado de densidade muito grande, o Universo era já infinito. Ou, se você preferir, um purê de dimensões infinitas.


- Nada de explosão inicial então?


- Podemos reter a imagem da explosão se admitirmos que aquilo explodia em toda parte, em cada ponto do espaço.


- Por que o nome Big Bang?


- Foi por desprezo que um pesquisador, Fred Hoyle, assim designou, ridicularizando essa teoria de que ele não gostava. Hoje é aceita por todos os cientistas, mas o Big Bang para nós é apenas uma metáfora, pois, em relação àquele momento, nossas noções tradicionais de tempo e espaço não fazem mais sentido.


- Por quê?


- Porque, nessas altíssimas temperaturas, nossas teorias não se aplicam mais. Toda a Física afunda. Atualmente dispomos de duas grandes teorias: a Física Quântica, que explica muito bem o funcionamento dos átomos e de suas interações, desde que estes não sejam expostos a uma forte gravidade: e a Teoria da Relatividade, que descreve bem o comportamento da matéria sob forte gravidade desde que não se a considere como um conjunto de átomos. Portanto, nenhuma se permite estudar as partículas submetidas a uma forte gravidade, como, foi o caso há 15 bilhões de anos. E o problema fundamental da Cosmologia contemporânea: não conseguimos conciliar essas duas teorias. Muitos pesquisadores, entre os quais Stephen Hawking, trabalham nessa direção. Eles inventam modelos físicos muito complexos, como a "supersimetria", as "supercordas", a "supergravidadc" ou ainda os "miniuniversos". Mas até o presente com pouco sucesso.


- Nem se pode dizer se houve ou não um “antes”?


- Justamente, não. No passado, quando alguém perguntava o que fazia Deus antes de criar o mundo, havia o costume de responder: “Ele preparava o inferno para os que fizessem essa pergunta”. Santo Agostinho, de seu lado, respondeu: "Perguntar isso supòe que o tempo existisse antes da criação do mundos, Ora, também o tempo foi criado”. Hoje em dia os astrofísicos estão um pouco na mesma situação.


Nas condições do Big Bang já não podemos aplicar nossas teorias, o espaço-tempo não é mais definido, não sabemos mais o que significa a palavra “antes”. Eis por que a questão da origem nos deixa, a nós, astrofísicos, mudos e desamparados.


- De onde pode vir a solução? Da teoria ou da observação do céu?


- Das duas. É necessário que encontremos uma teoria mais global do Universo. Mas estou pronto a apostar que a observação e a descoberta a precederão. Os seres humanos, com efeito, não tem muita imaginação. Poderemos talvez progredir graças ao telescópio espacial, por exemplo, que nos permitirá enxergar mais longe, sem sermos atrapalhados pelo véu da atmosfera terrestre, portanto voltar atrás bastante no tempo durante o milhão de anos que se seguiu ao Big Bang.


- E talvez até a este?


- Não o “veremos” realmente, pois, quanto mais nos aproximamos, mais o Universo fica opaco, velado pela luz emitida durante o milhão de anos seguinte. Mas, com outros instrumentos, como o telescópio de neutrinos, ainda num futuro longínquo, poderíamos obter uma espécie de radioscopia do Universo, o equivalente ao que se vê do corpo ao observar as imagens de raios X ou dos scanners. Por volta do ano 2000, o telescópio de gravitons, uma espécie de sismógrafo do espaço, permitirá receber não a luz dos astros como um telescópio clássico, mas suas ondas gravitacionais.


- Já se conhece bem, agora, o enredo que se desenrolou depois do Big Bang?


- Sim, algumas etapas. Ao esfriar, o Universo vai se estruturar conforme o jogo das quatro forças fundamentais que se diferenciaram pouco após o Big Bang: a gravidade (que nos mantém no chão e governa os astros), a força eletromagnética (que une os átomos, por exemplo, o oxigênio e o hidrogênio na molécula de água), a força nuclear forte (que sol- da os núcleos dos átomos) e a força fraca (que governa os neutrinos). Alguns milionésimos de segundos após o Big Bang, as partículas de matéria, os quarks, começam a se organizar em prótons e nêutrons. Estes, por sua vez, vão formar os primeiros núcleos dos átomos simples, como o do hélio. Este último é muito estável – até demais, pois vai frear essa evolução durante um milhão de anos, tempo em que o Universo continua a esfriar e se presta a novas combinações.


- Portanto, a evolução não continuou?


- Não, houve soluços, períodos de aceleração. E fases parecidas com as da água, que , ao esfriar, passa do estado de vapor ao de liquido, depois ao de gelo. O Universo passou inicialmente do estado de radiação ao de matéria. Desde então, a gravidade começa a agir: a sopa de partículas forma coágulos, a matéria se concentra em grandes massas: as galáxias, depois as estrelas. Estas vão servir de cadinho aos prótons e aos nêutrons que ai se instalam em núcleos de átomos. Alguns milhões de anos mais tarde, certas estrelas, por falta de combustível, sucumbem e morrem, expulsando sua matéria. Dessa vez, graças à força eletromagnética, os núcleos ejetados se associam enfim em átomos e em moléculas: o hidrogênio, o oxigênio, o gás carbônico e também grãos de poeira, os primeiros sólidos, que irão se agregar para formar os planetas. O nosso nasceu há 5 bilhões de anos. No oceano primitivo, as moléculas cada vez mais complexas se combinam de modo a formar as primeiras células, os primeiros seres vivos. A evolução biológica segue se curso, o homem aparece... Pode-se dizer que os bilhões de bilhões de partículas que constituem os átomos do nosso corpo já existiam há 15 bilhões de anos. A diferença é que hoje elas não estão mais no caos, mas agrupadas na estruturas extremamente complexas que permitem o pensamento.


- Quer dizer que a história do Universo é a história da complexidade?


- Ela pode ser lida como tal. O Universo sempre evolui d simples para o complexo. Mas atenção: isso só diz respeito a uma porção muito pequena do espaço. A maior parte está ainda muito desorganizada. As nuvens de gás que existem entre as estrelas se parecem com aquilo que eram no momento do Big Bang. Podemos observar uma espécie de pirâmide da evolução cósmica. Quanto mais organizada e complexas as estruturas, menos elas são numerosas. É de certo modo como na Terra: os grandes predadores são menos numerosos que suas presas.


- Em suma, o senhor estendeu ao Universo inteiro a idéia darwiniana da evolução e fala como se o Universo tivesse obedecido a uma espécie de lógica. Diria o senhor que o apartamento dos planetas e da vida era inevitável?


- Eu tenderia a dizer que sim. Mas é uma opinião pessoal, da qual alguns dos meus colegas não partilham. As leis físicas são ajustadas para produzir a complexidade. Assim, de duas uma: ou elas mesmas decorrem de um principio mais geral, de uma espécie de teoria última do Universo o crente dirá que um ser supremo as fez férteis ou, como dirá ateu, elas decorrem do acaso. Mas nesse ponto se sai da ciência. O que parece assentado é que a complexidade estava inscrita desde o Big Bang. Todavia ela só pôde se expandir em razão do desequilíbrio do Universo.


- Como assim?


- Se o Universo tivesse esfriado muito lentamente, a matéria teria alcançado depressa um equilíbrio, ela se teria condensado em ferro, o elemento mais estável, e não teria evoluído. Não se conhecem elementos complexos construídos somente a partir de átomos de ferro. Felizmente, graças a seu esfriamento rápido, o Universo pôde produzir em quantidades importantes os outros átomos, corno o carbono, que se presta a muitíssimas combinações, até formar a extrema complexidade do cérebro humano, estrutura distante da estabilidade. De certo modo o equilíbrio é a morte. Um cadáver, por sinal, assume esse estado: as moléculas das quais é formado se desintegram em moléculas rnais simples.


- Será que o Universo vai recuperar um dia um equilíbrio, será que ele também morrerá ou vai inchar e esfriar indefinidamente?


- Pensa-se que ele continua a esfriar, mas cada vez menos depressa. Nosso Sol vai morrer em 5 bilhões de anos, depois de ter gasto seu combustível. Em mil bilhões de anos todas as estrelas do Universo estarão consumidas e se pensa que não haverá novos astros em formação. Restarão os buracos negros, que requerem mais tempo para se evaporar. E depois? Não se sabe. Mas é muito possível que não tenhamos arrolado todas as forças da natureza, que exista uma quinta, uma sexta força... No começo do século, só se conheciam duas. Ora, toda nova força é suscetível de prolongar a vida do Universo. De acordo corn outro enredo, a temperatura do Universo tornará a subir nesse caso seria necessário retomar filme de trás para diante. Num certo momento teria havido tanta luz que o céu se tornaria branco. A Terra se vaporizaria, a matéria se dissociaria. Nada de vida, nada de organização. As partículas dissociadas recuperariam um estado de equilíbrio. Mas esse enredo é pouco compatível com as observações e não se crê muito nele.


- Será que aparecimento do homem modifica essa longa marcha da complexidade?


- O homem já intervém na evolução, inventa inteligência artificial. Os cérebros humanos continuam a produzir complexidade. Nós apenas damos continuidade à tarefa da natureza.


- Pondo-a em perigo.


- Sim. Se nos damos conta de tudo que foi necessário para se chegar aonde estamos, à primeira margarida e a esses seres que agora podem tomar consciência do Universo e discutir suas origens, isso deveria incitar-nos a uma avaliação do nosso comportamento presente.


- O Universo começou sem o homem e terminará sem ele”, disse o antropólogo Lévi-Strauss. O senhor está de acordo com ele?


- O homem, talvez, mas não necessariamente a inteligência. Se o ser humano desaparecer, poderia haver outras espécies inteligentes que talvez alcançassem níveis de complexidade ainda mais elevados. Todo o Universo é construído de maneira homogênea. Para onde quer que se olhe se percebe que as primeiras etapas da complexidade já foram superadas: existem estrelas e galáxias que se parecem bastante às nossas e se pode postular ali a própria presença de carbono. Se uma molécula possui mais de quatro átomos, existe carbono! Pode-se assim supor que as etapas seguintes da complexidade tenham sido franqueadas em outros planetas. A inteligência e a consciência me parecem produtos mais ou menos inevitáveis da história do Universo. Penso que elas prosseguirão na sua evolução. Com ou sem nós.


A CONSIDERAR:


- Os astrofísicos são comparáveis a exploradores diante do oceano: não sabem se há algo além do horizonte.


- A grande descoberta do nosso século é a de que o Universo tem uma historia: não é imóvel nem eterno, mais evolui.


- Se o Cosmo fosse eterno, a luz das estrelas existiria desde sempre e o céu estaria cheio de claridade


- Esfriando depressa, o Universo criou os átomos que formariam a extrema complexidade do cérebro humano.


quinta-feira, 1 de março de 2012

TRÁFICO E CLASSE MÉDIA

Engana-se quem pensa que tráfico de drogas é exclusividade dos morros e das favelas. Operações policiais, com frequência preocupante, prendem jovens de classe média vendendo ecstasy, LSD, cocaína, maconha... Segundo a polícia, eles fazem a ligação entre os traficantes e os vendedores de drogas no ambiente universitário
Crise da família, aposta na impunidade, ganho fácil e consumo garantido explicam o novo mapa do tráfico de entorpecentes. O tráfico oferece a perspectiva do ganho fácil e do consumo assegurado. E a sensação de impunidade - rico não vai para a cadeia - completa o silogismo da juventude delinquente.
O envolvimento com o tráfico de drogas bate às portas das casas dos bairros de classe média. Mostra a sua garra aos que se julgavam imunes ao seu apelo e ensombrece a alma das famílias que sucumbem ao drama da delinquência insuspeitada.
Não é de hoje que vemos jovens de classe média e média alta no noticiário policial. Crimes, vandalismo, espancamento de prostitutas, incineração de mendigos, consumo e tráfico de drogas despertam indignação e perplexidade. O novo mapa do crime transita nos bares badalados, vive nos condomínios fechados, estuda em colégios e universidades da moda e desfibra o caráter no pântano de um consumismo sem-fim.
A delinquência bem-nascida mobiliza policiais, pais, psicólogos e inúmeros especialistas. O fenômeno, aparentemente surpreendente, é o reflexo de uma cachoeira de equívocos e de uma montanha de omissões. Esse novo perfil da delinquência é o resultado acabado da crise da família, da educação permissiva e de setores do negócio do entretenimento que se empenham em apagar qualquer vestígio de normas ou valores.
Os pais da geração transgressora, em geral, têm grande parte da culpa. Choram os desvios que cresceram no terreno fertilizado pela omissão. É comum que as pessoas se sintam atônitas quando descobrem que um filho consome drogas. Que dirá, então, quando vende. O que não se diz, no entanto, é que muitos lares se transformaram em pensões anônimas e vazias. Há, talvez, encontros casuais, mas não há família. O delito não é apenas o reflexo da falência da autoridade familiar. É, frequentemente, um grito de revolta. Os adolescentes, disse alguém, necessitam de pais morais, e não de pais materiais.
Alguns pais não suportam ser incomodados pelas necessidades dos filhos. Educar dá trabalho. E nem todos estão dispostos a assumir as consequências da paternidade. Tentam, então, suprir o vazio afetivo com mesadas, carros e outros presentes. Erro mortal. A demissão do exercício da paternidade sempre acaba apresentando sua fatura. A omissão da família está se traduzindo no assustador aumento da delinquência infanto-juvenil e no comprometimento, talvez irreversível, de parcelas significativas da nova geração.
Não é difícil imaginar em que ambiente afetivo terão crescido os integrantes do tráfico bem-nascido. Artigos, crônicas e debates tentam explicar o fenômeno. Fala-se de tudo, menos do óbvio: a brutal crise que maltrata a instituição familiar. É preciso ter a coragem de fazer o diagnóstico, senão assistiremos a uma espiral de violência. É só uma questão de tempo.
Psiquiatras, inúmeros, tentam encontrar explicações para os desvios comportamentais nos meandros das patologias. Podem ter razão. Mas nem sempre. Independentemente de eventuais problemas psíquicos, a grande doença dos nossos dias tem um nome menos técnico, mas mais cruel: desumanização das relações familiares. A delinquência, o último estágio da fratura social, é, na grande maioria das vezes, o epílogo da falência da família.
Teorias politicamente corretas no campo da educação, cultivadas em escolas que fizeram a opção preferencial pela permissividade, também estão apresentando um perverso resultado. Uma legião de desajustados e de delinquentes, criada à sombra do dogma da tolerância, está mostrando as suas garras.
Gastou-se muito tempo no combate à vergonha e à culpa, pretendendo que as pessoas se sentissem bem consigo mesmas. O saldo é toda uma geração desorientada e vazia. A despersonalização da culpa e a certeza da impunidade têm gerado uma onda de infratores e criminosos. A formação do caráter, compatível com o clima de verdadeira liberdade, começa a ganhar contornos de solução válida. É pena que tenhamos de pagar um preço tão alto para redescobrir o óbvio: é preciso saber dizer não!
Impõe-se um choque de bom senso. O erro, independentemente dos argumentos da psicologia da tolerância, deve ser condenado e punido. Chegou para todos, sobretudo para os que temos uma parcela de responsabilidade na formação da opinião pública, a hora da verdade. É necessário ter a coragem de dar nome aos bois. Caso contrário, a delinquência enlouquecida será uma trágica rotina. Colheremos, indefesos, o amargo fruto que a nossa omissão ajudou a semear.
A irresponsabilidade pragmática de alguns setores do negócio do entretenimento fecha o triângulo da delinquência bem-nascida. A exaltação do sucesso sem limites éticos, desvios de comportamento e a consagração da impunidade, roteiros de algumas novelas e programas de TV, têm colaborado para o crescimento da deformação do caráter. Apoiados numa leitura equivocada do conceito de liberdade artística e de expressão, alguns programas de TV exploram as paixões humanas. Ao subestimarem a influência negativa da violência ficcional, levam adolescentes ao delírio em shows e programas que promovem uma sucessão de quadros desumanizadores e humilhantes.