"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A evolução do ensino de matemática

A evolução do ensino de matemática desde 1950, foi assim: 1. Ensino de matemática até a década de 70: Um lenhador vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de produção é igual a 4/5 do preço de venda. Qual é o lucro? 2. Ensino de matemática em 1970: Um lenhador vende um carro de lenha por R$ 100,00.O custo de produção é igual a 4/5 do preço de venda ou R$80,00. Qual é o lucro? 3. Ensino de matemática em 1980: Um lenhador vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de produção é R$80,00. Qual é o lucro? 4. Ensino de matemática em 1990: Um lenhador vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de produção é R$80,00. Escolha a resposta certa, que indica o lucro: ( )R$ 20,00 ( )R$40,00 ( )R$60,00 ( )R$80,00 ( )R$100,00 5. Ensino de matemática em 2000: Um lenhador vende um carro de lenha por R$ 100,00. O custo de produção é R$80,00. O lucro é de R$ 20,00. Está certo? ( )SIM ( ) NÃO 6. Ensino de matemática em 2009: Um lenhador vende um carro de lenha por R$100,00. O custo de produção é R$ 80,00.Se você souber ler coloque um X no R$ 20,00. ( )R$ 20,00 ( )R$40,00 ( )R$60,00 ( )R$80,00 ( )R$100,00 7. Em 2010 vai ser assim: Um lenhador vende um carro de lenha por R$100,00. O custo de produção é R$ 80,00. Se você souber ler coloque um X no R$ 20,00. Se você é afro descendente, especial, indígena ou de qualquer outra minoria social não precisa responder. ( )R$ 20,0 ( )R$40,00 ( )R$60,00 ( )R$80,00 ( )R$ 100,00.

Crimes sexuais: da antiga capação para a moderna castração química

Todo crime sexual é acompanhado de ato depravado, sórdido, repugnante, horrendo e produz seqüelas irreparáveis para as vítimas e seus familiares. Tais crimes sempre foram combatidos pela sociedade desde os tempos mais remotos. De uma maneira geral, em quase todas as nações, os crimes de ordem sexual eram punidos nos parâmetros da Lei de Talião, ou seja, o autor sofria castigo igual, parecido ou relacionado ao dano por ele causado. A máxima OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE fora vivenciada por muito tempo em quase todas as Leis das diversas Nações, em destarte, na Idade média através da Inquisição comandada pela própria Igreja católica. A Lei de Talião era interpretada não só como um direito, mas até como uma exigência social de vingança em favor da honra pessoal, familiar ou tribal. O Brasil colônia de Portugal, assim como tal, também seguia tais parâmetros punitivos para os seus diversos tipos de criminosos. As Ordenações do Reino que compunham as Leis Manuelinas, Afonsinas e Filipinas, formavam a base do sistema penal português, que por sua vez também vigoravam no Brasil. Entre as penas estavam a morte, a mutilação através do corte de membros, o degredo, o tormento, a prisão perpetua e o açoite. Até mesmo depois da sua Independência de Portugal, o Brasil continuou adotando penas não menos violentas e cruéis, seguindo de certa forma, os antigos ensinamentos de Talião na sua organização penal. O homem que praticasse determinados atos sexuais considerados imorais ou criminosos poderia ser condenado à castração, então conhecida por capação que podia ser concretizada de várias maneiras, contanto que com o castigo o agressor não tivesse mais possibilidade de voltar a delinqüir devido a perda total do seu apetite sexual. Buscando um caso prático para melhor ilustrar o presente texto só encontrei a suposta e inusitada Sentença Judicial datada de 15 de outubro de 1833 ocorrida na antiga Villa de Porto da Folha, hoje município, situado às margens do rio São Francisco no Estado de Sergipe. A referida Sentença que é relacionada a uma tentativa de estupro possui a linguagem arcaica da época e dizem que o dito documento está guardado no Instituto Histórico do Estado de Alagoas. Tal sentença fora divulgada em alguns jornais virtuais e sites jurídicos do Brasil, a exemplo das páginas Ad referendum, Usina de letras, Recanto das letras, o Norte de Minas Gerais, Jus navigandi, Teologikas, Livros e afins, Estudos de direito, Fórum Jurídico, Jurisciência, Consultor Jurídico, Almanaque Brasil, Pérolas do Judiciário... Por isso a transcrevo acreditando ter sido fato real e documento verídico:
SENTENÇA DO JUIZ MUNICIPAL EM EXERCÍCIO, AO TERMO DE PORTO DA FOLHA – 1883.
SÚMULA: Comete pecado mortal o indivíduo que confessa em público suas patifarias e seus boxes e faz gogas de suas víctimas desejando a mulher do próximo, para com ella fazer suas chumbregâncias.
O adjunto Promotor Público representou contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Senhora Sant´Anna, quando a mulher de Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de tocaia em moita de matto, sahiu dela de sopetão e fez proposta a dita mulher, por quem roía brocha, para coisa que não se pode traser a lume e como ella, recusasse, o dito cabra atrofou-se a ella, deitou-se no chão deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará, e não conseguio matrimônio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreyo Correia e Clemente Barbosa, que prenderam o cujo flagrante e pediu a condenação delle como incurso nas penas de tentativa de matrimônio proibido e a pulso de sucesso porque dita mulher taja pêijada e com o sucedido deu luz de menino macho que nasceu morto. As testemunhas, duas são vista porque chegaram no flagrante e bisparam a pervesidade do cabra Manoel Duda e as demais testemunhas de avaluemos. Dizem as leis que duas testemunhas que assistem a qualquer naufrágio do sucesso faz prova, e o juiz não precisa de testemunhas de avaluemos e assim: Considero que o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento, por quem roía brocha, para coxambrar com ella coisas que só o marido della competia coxambrar porque eram casados pelo regime da Santa Madre Igreja Cathólica Romana. Considero que o cabra Manoel Duda deitou a paciente no chão e quando ia começar as suas coxambranças viu todas as encomendas della que só o marido tinha o direito de ver. Considero que a paciente estava pêijada e em consequência do sucedido, deu a luz de um menino macho que nasceu morto. Considero que a morte do menino trouxe prejuízo a herança que podia ter quando o pae delle ou mãe falecesse. Considero que o cabra Manoel Duda é um suplicado deboxado, que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer coxambranças com a Quitéria e a Clarinha, que são moças donzellas e não conseguio porque ellas repugnaram e deram aviso a polícia. Considero que o cabra Manoel Duda está preso em pecado mortal porque nos Mandamentos da Igreja é proibido desejar do próximo que elle desejou. Considero que sua Majestade Imperial e o mundo inteiro, precisa ficar livre do cabra Manoel Duda, para secula, seculorum amem, arreiem dos deboxes praticados e as sem vergonhesas por elle praticados e apara as fêmeas e machos não sejam mais por elle incomodados. Considero que o Cabra Manoel Duda é um sujeito sem vergonha que não nega suas coxambranças e ainda faz isnoga das incomendas de sua víctima e por isso deve ser botado em regime por esse juízo.
Posto que:
Condeno o cabra Manoel Duda pelo malifício que fez a mulher de Xico Bento e por tentativa de mais malifícios iguais, a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete. A execução da pena deverá ser feita na cadeia desta villa. Nomeio carrasco o Carcereiro. Feita a capação, depois de trinta dias o Carcereiro solte o cujo cabra para que vá em paz.
O nosso Prior aconselha:
Homine debochado debochatus mulherorum inovadabus est sentetia qibus capare est macete macetorim carrascus sine facto nortre negare pote.
Cumpra-se a apregue-se editaes nos lugares públicos. Apelo ex-officio desta sentença para juiz de Direito deste Comarca.
Porto da Folha, 15 de outubro de 1833.
Assinado: Manuel Fernandes dos Santos, Juiz Municipal suplente em exercício.”
A capação feita a macete consistia em colocar os testículos do cidadão condenado em local rígido esmagando-os com um forte golpe certeiro, usando para tanto um grosso pau roliço tipo bastão ou cassetete, ou mesmo, uma marreta fabricada com madeira de lei. Com o tempo a pena de Talião e outras cruéis desapareceram nas legislações modernas na quase totalidade dos Países, sob a influência de novas doutrinas e novas tendências humanas relacionadas com o Direito Penal, entretanto, muitas pessoas ainda defendem a volta de métodos parecidos, como fórmula eficaz para arrefecer o recrudescimento da violência urbana. Apesar do nosso ordenamento jurídico ter abolido de vez as penas cruéis, a discussão sobre a aplicação de uma pena peculiar para aqueles que cometem crimes de ordem sexual, destarte para aqueles praticados contra crianças através da chamada pedofilia, volta a tona agora de maneira mais presente, vez que tramita no Congresso nacional o Projeto de Lei nº 552/07 de autoria do Senador Gerson Camata para propor modificação no Código Penal com a pena de castração através da utilização dos recursos químicos, ou seja, a castração química para tais criminosos. A denominada castração química consiste na aplicação de injeções hormonais inibidoras do apetite sexual, aplicadas nos testículos, conduzindo o condenado à impotência sexual em caráter definitivo e de maneira irreversível. A proposta inspira-se em ordenamentos jurídicos estrangeiros onde a sanção é aplicada, a exemplo dos estados do Texas, Califórnia, Flórida, Louisiana e Montana nos Estados Unidos da America, em certos países da Europa e até aqui na América do Sul, na vizinha Argentina, entretanto, no Brasil, tal proposta esbarra em sérios óbices constitucionais, vez que é tema relativo ao direito fundamental à integridade física, assim como às garantias contra penas cruéis, desumanas, degradantes e perpétuas estatuídas para todos. Para muitos legisladores, advogados e juristas a proposta é repudiada e considerada totalmente inconstitucional. Para alguns não passa de um Projeto eleitoreiro populista que visa agradar e enganar o povo, mas que vai de encontro a Constituição Federal e, por isso, mesmo que seja aprovado no Congresso nacional será desfeito pelo Supremo Tribunal Federal. Para outros a própria Carta Magna pode também ser alterada para adaptação de tal pena. Para tantos outros tal penalidade é um retrocesso à Lei de Talião, uma volta à época medieval, um atraso na humanidade, incabível no nosso ordenamento jurídico. A discussão também gira em torno de se estudar se a castração química é uma pena cruel ou se é somente um tratamento médico, sem maiores gravidades físicas para os autores irrecuperáveis e reincidentes dos crimes sexuais, destarte para os pedófilos, que com a medida perderão apenas o libido, com grande possibilidade de não mais voltarem a delinqüir pois sem a vontade sexual não há o porque da realização do ato. A vivencia policial e a prática profissional ao longo dos tempos nos contemplam pelo lado psicológico adquirido em casos investigados, a asseverar sem medo de errar, que geralmente os maníacos sexuais parecem não ter sentimentos de culpa e, quando chegam a confessar os crimes inerentes, discorrem como se os seus atos insanos fossem normais, negam suas carências, suas dificuldades, demonstram ser completamente desconectados com sentimentos próprios e muito menos com os sentimentos alheios, com os sentimentos das vítimas e seus familiares, por isso, quase sempre reincidem nos seus crimes quando colocados em liberdade. É fato contundente e abominável para toda a sociedade que, no nosso pais, um quarto das vítimas de crimes sexuais são crianças com menos de dez anos de idade, porém esse debate não pode ficar apenas adstrito ao Congresso Nacional, deve se expandir para todas as camadas sociais. Advogados, juristas, doutrinadores, médicos, psicólogos, sexólogos, psiquiatras, professores, jornalistas, escritores, cronistas, religiosos e especialistas diversos devem ser ouvidos para formarem suas opiniões não só na pauta constitucional ou jurídica, quanto nas questões sociais, morais e éticas no seio da nossa sociedade. A experiência internacional através dos países que já adotam esta moderna pena tem muito a nos ensinar, as medidas de lá que restauram frutíferas devem ser aqui adaptadas a nossa realidade e, por fim, restando possível a aplicação de tal penalidade, o mais importante: A realização de um plebiscito para o povo decidir se é a favor ou contra a castração química.

A TRAGÉDIA GREGA

As mortes registradas nos recentes distúrbios na Grécia, são só o prelúdio do que nos espera nos próximos meses, talvez nos próximos anos. E não apenas naquele infeliz país, mas em todo Ocidente, onde a social-democracia prevaleceu. Estamos vendo seu projeto político desmoronar. Quem, minimamente letrado em ciência econômica, observou os acontecimentos sabia que a construção de uma sociedade de rentistas sem capital, munidos apenas de “direitos” e de “conquistas”, protegidos pela lei estatal injusta, iria se deparar com esse beco sem saída. A social-democracia é a variante comunista que propõe manter formalmente o regime de propriedade privada, reconhecendo o fracasso do planejamento socialista, mas retirando os recursos de quem trabalha manipulando a via dos impostos e da inflação, emitindo moeda e alargando o endividamento público. Vemos que os limites da carga tributária foram batidos; agora estamos diante do esgotamento da via inflacionária. Na Grécia, como de resto em toda a Europa ocidental, assim como nos EUA, vemos que o setor financeiro está em vias de quebrar ou colocou limites claros aos tomadores de empréstimos. O limite é técnico, além do qual os próprios banqueiros poderão ir à bancarrota. Na Grécia todas as vias foram esgotadas. Impostos elevados convivem com dívidas impagáveis e a impossibilidade de desvalorizar a moeda comum, o euro. Só restou a via do corte de gastos públicos, com demissões de funcionários e a abolição de “conquistas” para aqueles que permanecerem no serviço público. Pouco a pouco a imprensa internacional vai informando o quanto o Estado grego tem sido generoso com seus empregados e aposentados. A casa ruiu. O governo grego, assim como o de toda a zona do euro, dos EUA e mesmo do Brasil sofrem de um único mal: o populismo econômico. Ele quer distribuir benesses sem contrapartida, pagando rendimentos crescentes a legiões de desocupados, na forma de salários aos funcionários públicos, aos aposentados, aos recebedores de bolsas e aos rentistas de forma geral. Quando a massa parasita dependente do Tesouro é pequena não há desequilíbrio, mas quando se torna um fenômeno de multidão, legiões cada vez mais numerosas vivendo à custa de uma população que trabalha, cada vez mais escassa, o jogo termina por ilogicismo. O parasita não pode ser maior do que o hospedeiro. O jogo da social-democracia acabou, e não apenas na Grécia. É chegada a hora dos ajustes dolorosos. Bem sabemos que há gerações de pessoas vivendo à custa dos que trabalham, recebendo ilegitimamente seu quinhão de impostos. A interrupção do ócio dourado será dolorida. Nada dura para sempre, nem mesmo a injustiça. Resta saber como a equação política será montada para a aplicação dos ajustes necessários. Haverá choro e ranger de dentes. Tempos de grandes perigos.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Mundo e a Democracia

Atacada há muito tempo pelos conservadores como “o regime político dos fracassados”, e pela esquerda como um ardil das classes dirigentes para manter-se no poder, dando ao povo a ilusão de participar dele, a democracia consagrou-se nos últimos decênios do século XX, continuando pelo século XXI, como um regime universal.
A democracia se difunde
Ao contrário das décadas que entremearam os anos vinte e cinqüenta, em larga parte ocupada por líderes ditatoriais ou autoritários, o “regime do povo para o povo e pelo povo”, no dizer de Lincoln, terminou por se impor em boa parte do mundo no decênio final do século XX (a exceção entre os macro-países é a China Comunista). Ainda assim ela, a democracia, tem causado também muita insatisfação, pois não se mostrou suficiente hábil para demolir com a rapidez desejada o muro das desigualdades sociais nem promover a prosperidade dos países mais pobres.
O que vem a ser a democracia?
Parte dessa frustração deve-se ao fato de que muitos depositam nela um conjunto de esperanças as quais ela não está habilitada a resolver. Entre elas a questão de impor uma igualdade social de fato, ou ainda, especialmente nos países de Terceiro Mundo, de resolver os gravíssimos problemas do subdesenvolvimento. De certo modo, isso conduziu ao que o professor Nelson Beira definiu como “uma evaporação, um certo enfraquecimento e até desvalorização da esfera pública”. Sem que, todavia, tenha ameaçado com o que Bobbio determinou como sendo os quatro grandes direitos da liberdade moderna: a liberdade pessoal, a liberdade de consciência, a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de reunião e a liberdade de associação.
As Regras do Jogo Para o acadêmico Michelangelo Bovero (2002), um dedicado discípulo do filósofo político Norberto Bobbio, falecido em Turim em janeiro de 2004, a democracia é uma espécie de jogo político cujo objetivo não é o conflito em si, mas sim em resolver o conflito seja entre os indivíduos ou entre grupos, em meio ao convívio coletivo. É um modo de resolver o “quem” e o “como”, estabelecendo regras de quem deve dele participar e como aferir a decisão coletiva. Se não sabemos quais são as regras, por igual, não saberemos que tipo de jogo estamos envolvidos. Se estas regras não são democráticas, é obvio que o regime também não o é. Também denominamos como democracia o regime em que as decisões são tomadas coletivamente, não estando sujeitas a serem resolvidas pelo alto, por um monarca, um tirano, ou por um pequeno grupo de pessoas que se colocam acima da coletividade. É um procedimento que envolve a todos os que têm direito de nele participar em igualdade de condições, por conseguinte a democracia é “o regime da igualdade política e da liberdade política” cujas regras do jogo político devem refletir exatamente isso: Igualdade & liberdade. Do mesmo modo é obvio que em países de grandes dimensões e com enormes concentrações populacionais não é possível obter-se outro meio de participação na política que não seja pelo sistema representativo (a democracia direta identificada com a Atenas da antiguidade só era possível devido ao pequeno número de cidadãos). Isso coloca em pauta a questão das eleições como o procedimento mais justo e correto de se aferir a vontade da coletividade. Por tanto qualquer tentativa que conduza a supressão das eleições, substituindo-as por um procedimento difuso (tal como o sistema de conselhos introduzidos na Rússia Soviética), significa na prática abolir com a democracia.
A degeneração da democracia
Ainda que Norberto Bobbio, num famoso ensaio publicado em 1984, não aceitasse a possibilidade de a democracia ter entrado num processo degenerativo, o professor Bovero (op. cit.), passados mais de vinte anos, empenhou-se em refutá-lo. Para ele, a democracia, ano a ano, assume uma forma diversa de governo. Se tomarmos como aceitável que ela é um regime no qual todos têm o direito de participar, sem nenhuma discriminação, verifica-se facilmente que isso não condiz com a realidade. Entre outras razões porque, pelo menos em muitos países ocidentais, cessou o processo de inclusão social e política dos imigrantes que aportaram à Europa nos últimos anos. Fenômeno esse claramente decorrente dos acontecimentos dramáticos provocados pelo Onze de Setembro de 2001 nos Estados Unidos (o ataque dos aviões conduzidos por jovens árabes jihadistas contra as Torres Gêmeas em Nova York e ao Pentágono em Washington). Tal infausto acentuou ainda mais a tendência em tratar os imigrantes clandestinos como não-pessoas, como se fossem inimigos internos ou infiltrados. A situação deles não é muito diferente daquilo que se encontra na América Latina, onde proliferam massas de cidadãos não efetivos, segregados ou auto-segregados, vistos por grande parte da sociedade civil e política como um corpo estranho, hostil ou mesmo inimigo. Não condiz, pois com o bom nome da democracia e os altos valores dos direitos humanos por ela professados, manter em seu espaço significativas agrupações humanas consideradas como párias, postas à margem de tudo. Outro ponto relevante da crítica de Bovero (op. cit.) à democracia atual trata da questão da validade do voto, pois o que acontece há uma violação sistemática da balança que procura distribuir equitativamente o peso de cada voto. Em geral, pouco se respeita a regra que diz que cada cabeça é um voto, alterando as determinações da proporcionalidade. Isso ocorre porque em muitos países procura-se alcançar um governo estável baseado numa maioria sólida, o que implica desrespeitar o mandamento igualitário que procura dar voz às minorias. Infringe-se também abertamente a regra que manda que todos os cidadãos sejam devidamente informados pelos agentes de comunicação (televisão, rádio, imprensa), que deveriam atuar com objetividade, oferecendo aos eleitores um quadro amplo das diferenças e das propostas de cada partido. Ainda que mantendo um clima de liberdade, sabe-se que a mídia intervém abertamente a favor de determinados candidatos ou partidos, forçando assim a que o cidadão se veja inclinado a dar seu voto em sintonia com ela, aviltando deste modo o principio do pluralismo da informação, abrindo assim o caminho para a manipulação eleitoral. Tanto assim que o clímax da campanha eleitoral – demonstrativo do poder da mídia - é atingido por um duelo televisivo. Além disso, os meios de comunicação estão nas mãos de um punhado de patrões que fazem aberto uso deles em seu próprio benefício político (o caso mais espalhafatoso disso foi a emergência de Silvio Berlusconi, um rei da mídia, no cenário político italiano, entre 2001 e 2006). Outro fator que contribuiu para a degenerescência da democracia foi a crescente proeminência dos órgãos executivos em detrimento dos órgãos colegiados representativos, o que se somou ao aumento do número de partidos que apenas atendem às ambições de certas personalidades e não às idéias ou propostas que poderiam levar a um aperfeiçoamento da sociedade.
Empobrecimento da Democracia
Bovero (op. cit.) ainda lamenta que o pluralismo político cedesse lugar ao dualismo, ao embate entre apenas dois grandes grêmios partidários que se alternam no poder pelos tempos afora a empobrecendo assim pela mesmice, pela ausência de outras opções. O que tem implicado numa espécie de “onipotência das maiorias”, pois ela impede que aflore em meio ao jogo outros parceiros que, ainda que minoritários, poderiam contribuir com novidades políticas mais criativas e imaginativas. Ressaltando ainda que seguramente mais da metade dos eleitores é composta por pessoas bem pouco educadas (fator apontado como um fracasso da democracia em poder instruir adequadamente seus cidadãos, como era a expectativa otimista dos pensadores reformistas do século XIX), o que constantemente faz com que eles “escolham os piores”, ou a kakistocracia (neologismo criado por Bovero para definir “o governo dos piores”). Como aconteceu no passado bíblico quando o povo de Jerusalém salvou o fora-da-lei Barrabás ao invés de Cristo. Um tanto pessimista, Bovero pergunta se a democracia futura não marcha para tornar-se num outro jogo, com outras regras, que termine por eleger um autocrata, que leve à consolidação de uma autocracia eletiva. Sua esperança para reverter tal marcha é a restauração da democracia, reconstruindo as partes dela como se ela fora uma obra de arte atingida por atos vandálicos, não se esquecendo de afirmar que ela tem sido a “melhor obra de arte” que o gênero humano escolheu para melhorar a convivência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, 372 p.
______. O futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
BOVERO, Michelangelo. Contra o governo dos piores. Rio de Janeiro, Campus, 2002, 188 p.

sábado, 15 de maio de 2010

França 1940: o general contra o marechal

Quando a França viu-se atacada em 10 de maio de 1940 pelas armas da Alemanha nazistas, o mundo inteiro espantou-se pela rapidez com que a grande nação fora dominada pelos invasores. Em apenas três semanas de combate, as outrora poderosas forças armadas francesas tinham sido reduzidas à impotência. O governo do presidente Paul Reynaud não tardou em dividir-se: capitular frente a Hitler ou continuar resistindo? A divisão Duas personalidades do alto escalão militar encarnaram então as alternativas resultantes da invasão e do descalabro geral. Henry Phillipe Pétain, o mais velho marechal da França era pela aceitação da derrota; Charles De Gaulle, o mais jovem general francês, propunha a resistência a qualquer custo. Estes dois homens, que até então mantinham uma relação de pai para filho, cada um ao seu modo, acreditavam estar salvando a nação do pior. Desde a arrancada alemã de 10 de maio de 1940, as vitórias das divisões panzers se acumulavam. As estradas francesas ficaram atulhadas de refugiados civis. Carroças, bicicletas, pequenos caminhões, automóveis, em meio a outros que fugiram a pé em direção à Paris, inviabilizaram a possibilidade do exército francês organizar melhor uma contra-ofensiva. A situação lembrava a descrição que Emile Zola fizera do pânico que se abatera sobre a população camponesa durante o avanço dos prussianos sobre Paris, em 1870 (na novela Le Débâcle, de 1892). Os aliados da Entente, a Grã-Bretanha e a França, viram-se cortados ao meio pela conjunção dos planos Gelb (Amarelo) e Rot (Vermelho), executados pelo Alto Comando Militar alemão, dando seguimento ao plano Halder-Mainstein, com presteza e disciplina de recursos. Eram 141 divisões alemãs, boa parte delas compostas por blindados e veículos motorizado que, protegidos por quase 6 mil aviões, perfaziam no total mais de três milhões de soldados. Um verdadeiro dilúvio armado se abateu sobre o território francês inerte. No dia 14 de junho, às 5 h30m , exatamente a um mês da data nacional francesa, as tropas do 17 º exército do general Von Kuchler marcharam pelas avenidas da capital rumo ao Arco do Triunfo frente a uma multidão de parisienses triste e emudecida.
A capitulação
Tentando ainda insuflar o governo de Paul Reynaud à resistência, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill desembarcara secretamente para uma reunião. Exortou com veemência os franceses presentes a lutar ‘ de casa em casa’ para não entregar a capital ao invasor. Se não desse resultado, que partissem para uma guerra de guerrilhas para atormentar os alemães. Nenhuma das suas propostas provocou senão horror aos generais franceses Gamelin e Weygand, que estavam mais preocupados com a possível repetição dos motins que os regimentos franceses padeceram em 1917 e com as questões de segurança e ordem decorrentes da invasão. No dia seguinte, Churchill reembarcou para Londres certo de que a batalha da França estava perdida. Em 10 de junho, o governo Reynaud, que se retirara de Paris para o sul - depois de acumular calamidades uma atrás da outra -, para Bordeaux, decidiu abdicar dos poderes em favor do marechal Pétain e assim encaminhar a capitulação. Phillipe Pétain, então com 84 anos, era naquela ocasião o maior herói de guerra da França. Um mito ainda em vida. Durante a Primeira Guerra Mundial ele comandara, em 1916, a brava resistência contra ofensiva alemã em Verdun e, depois, durante os amotinamentos das tropas em 1917, conseguira contornar a situação sem apelar para meios disciplinares violentos. Poucos dias antes do armistício com os alemães, em 11 de julho de 1940, ele instalou um governo em Vichy para administrar a parte da França que Hitler permitiu que continuasse sob controle do Marechal, regido pela trindade Travail, Famille, Patrie, lema da extrema-direita francesa. Consideravam-no uma espécie de ‘ Pai da Pátria’, um homem venerado pelos cidadãos e cidadãs. A noticia de que o velho guerreiro havia assumido o governo naquele momento trágico causou uma sensação de alívio junto à população apavorada com a seqüência de ataques mortíferos que a aviação nazista estava causando. Podia-se confiar no Marechal (a propaganda do governo de Vichy fazia questão de enfatizar-lhe o título militar: Le marechal), como a personalidade certa para empunhar a nau francesa em meio à tormenta, salvando-a do naufrágio.
As raízes do desastre francês
A grande interrogação que circulava pelo mundo de então se centrava nas razões do desastre da França, em tentar explicar o rápido e total débâcle dela frente ao inimigo. Tropa por tropa, as forças francesas equivaliam-se às alemãs, em certo setores até as superavam. A explicação do desastre de 1940 inclina-se, pois para as questões políticas. O país nos anos trinta era um ninho de marimbondos. Cada tendência desejava o esmagamento completo do adversário: monarquistas contra republicanos, crentes contra seculares, fascistas contra comunistas, autoritários contra democratas, havia de tudo no caleidoscópio ideológico do país. Em 6 de fevereiro de 1934 os militantes fascistas da Action Française e outras agrupações de extrema-direita, reunidos na Place de La Concorde, tentaram um golpe anti-parlamentar que fracassou, criando, por reação, um clima oposto que favoreceu a ascensão do Fronte Popular, coligação da esquerda ( socialistas, comunistas e radicais republicanos), que venceria as eleições em maio de 1936. Pela primeira vez na história um judeu, o socialista Leon Blum, assumia a chefia do poder executivo na França. Uma onda de ocupação de fábricas se seguiu, com quase mil estabelecimentos industriais tomados pelos trabalhadores que assim agiram para forçar a classe patronal a aceitar as reformas sociais e trabalhistas prometidas. Este fato assustou enormemente os setores proprietários e amplos segmentos da classe média francesa que começaram a cogitar se afinal ‘Hitler não era melhor do que Stalin’.
O impasse levou à inação
Se a direita francesa não mostrava muito entusiasmo por uma acelerada política de armamentos, visto que o inimigo seria fatalmente a Alemanha Nazista, a esquerda, ainda que por outros motivos, não lhe ficava atrás nesta falta de empenho. León Blum, presidente do Conselho de Ministros por duas vezes antes da guerra (1936-37 e 1938) era um socialista herdeiro da tradição humanista e pacifista dos tempos de Jean Jaures (um mártir da esquerda que fora assassinado em 1914 por tentar impedir a mobilização para a guerra) e, por igual, não manifestou nenhum interesse em reativar a indústria bélica como deveria ou ativar preparativos militares para uma futura guerra contra Hitler. De certo modo, ele expressou o que De Gaulle denominou de ‘psicose anti-guerra’ que predominava no cenário francês dos anos trinta, fruto do horror que a matança de 1914-1918 provocara junto à população. Exatamente o contrário do que se via na Alemanha. O resultado disto foi a inação (*). Quando finalmente as declarações de guerra foram anunciadas aos quatro ventos em setembro de 1939, era visível na população francesa a falta de qualquer vontade ou entusiasmo para mobilizar-se e ir lutar. Exemplo desta paralisia que a luta entre a esquerda e a direita provocara na França foi o fato de Leon Blum não ousar a apoiar militarmente o lado republicano na eclosão da guerra civil espanhola de 1936-1939. Enquanto as potencias fascistas (Itália e Alemanha atuavam abertamente ao lado do general Franco) e a URSS intervinham as escancaras na sangrenta arena espanhola, o líder socialista negou-se a tomar posição mais firme ao lado dos legalistas a pretexto de manter a política da ‘não-intervenção’ (de fato, ele temia que uma situação similar ocorresse na França, com a direita, na trilha dos golpistas franquistas, provocando um levante contra o Fronte Popular). Outro exemplo da virulência do ódio ideológico que fraturava a França nos anos trinta, foi a sórdida campanha que a direita moveu (orquestrada por Charles Maurras, monarquista e antissemita, intelectual líder dos extremistas) contra o Ministro do Interior da Frente Popular Roger Salengro, acusando-o de ter desertado na Primeira Guerra Mundial. Não suportando a virulência das manchetes diárias de que foi vítima, o ex-prefeito de Lille suicidou-se em 17 de novembro de 1936 (episódio que Leon Blum bem previu como a primeira derrota do Fronte Popular) Um excelente testemunho da situação política caótica e psicologicamente fraturada, e por que não dizer autodestrutiva em que o país se encontrava naquele momento, foi dado pelo jornalista paulista Paulo Duarte (in O espírito das catedrais), exilado em Paris nos meses que antecederam o ataque nazista. Certo dia, estando ele num café, viu chegar um coronel do exército francês, alguém de origem nobre, que depois de pedir uma bebida no balcão dirigiu-se aos presentes conclamando-os a brindar a futura queda do governo Reynaud. E isto quando as tropas nazistas já adentravam fundo no território nacional. Se um oficial superior agia assim, é de se imaginar o moral de boa parte da tropa. Enquanto Hitler erguia um monólito político na Alemanha - uma aliança total entre o povo, as forças armadas e a liderança política - a França era uma colcha composta de retalhos que se hostilizavam permanentemente.
(*) León Blum foi colocado frente a um tribunal depois da guerra para explicar os motivos de não ter perseverado numa política que visasse à preparação do país para a guerra.
A mentalidade defensiva
Certamente que pesou para o desastre geral a doutrina militar seguida pelo Estado Maior francês no período do pós-guerra. Se nos primórdios da Primeira Guerra Mundial a orientação estratégica voltava-se para La offensive à l´outrance, o ‘ataque a todo custo’, inspirado na filosofia do élan vital de Henry Bérgson, o transcorrer da guerra em si – a guerra de trincheiras - a modificara profundamente. A França estaria salva, concluíram os estrategistas do pós-guerra, se tivesse um bom sistema de proteção, uma grande barreira construída na fronteira oriental em concreto e ferro que dissuadisse um ataque dos boches. A razão mais óbvia desta conclusão fora a batalha de Verdun, travada ao longo do ano de 1916, na qual os alemães não puderam vencer devido ao complexo sistema de trincheiras e casamatas construídas pelos franceses no local.
A linha Maginot
Esta foi a matriz inspiradora da famosa Linha Maginot – sugestão do marechal Joffre - que começou a ser erguida a partir de 1929 e que deveria cobrir toda a linha fronteiriça com a Alemanha e parte mínima da Bélgica. Com 200 quilômetros de extensão, compunha-se de 108 grandes fortes subterrâneos construídos de 15 em 15 km, havendo ainda 410 casamatas para infantaria, 152 torres móveis e 1 536 cúpulas fixas além de 339 peças de artilharia, formavam um complexo de interligado por 100 km de galerias subterrâneas. O custo total orçou um tanto mais do que 6 bilhões de francos da época. Numa entrevista que o então talentoso jovem coronel De Gaulle teve em certa ocasião com León Blum, este garantiu ao militar que a França com aquele sistema era ‘invencível’. Sistema que se revelou completamente inútil frente à guerra aéro-mecanizada adotada pelos nazistas. Tanto assim que quando a França capitulou em 22 de junho, 600 mil soldados que ocupavam o complexo da Linha Maginot renderam-se sem dar um tiro sequer.
O general mostra sua inconformidade
Foi contra o predomínio do derrotismo que como uma névoa sombria tudo contaminava no Alto Comando tanto quanto sobre a sociedade francesa, que o jovem general de brigada Charles De Gaulle se insurgiu. Não estava convencido que o último tiro havia sido dado, nem que o derradeiro gesto de reação já fora feito. Era-lhe um absurdo a França dispor de um enorme império sem pensar em refluir para uma das suas partes a fim de manter-se na luta. Mas sua voz, naquele momento de desânimo nacional, clamou no deserto. Até aquele momento seu nome só era do conhecimento da elite militar e de um ou outro quadro do governo. Em 1934 ele publicara um livro polêmico La armée de métier, que defendia uma verdadeira revolução na estratégia geral das forças armadas francesas. Em primeiro lugar, no lugar de um exército de massas (tradição que de certo modo vinha do levée en masse de agosto de 1793, da época da revolução francesa: a nação em armas em defesa do país atacado) que perdurou na Guerra de 1914-18 e que continuava a formar o escopo da doutrina militar da época, ele propôs uma guarnição de 100 mil homens estritamente profissional. No entender de De Gaulle. o jovem conscrito que fazia o serviço militar obrigatório por um ano de nada servia numa guerra moderna conduzida por material moto-mecanizado. Era imperioso arregimentar uma poderosa formação de soldados calejados, um exército de elite destro em lidar com a tecnologia e capaz de responder rápida e eficazmente a qualquer ameaça ou desafio. Eles saberiam manobrar os tanques e demais carros de combate para espantar os inimigos da França. A Léon Blum tal idéia de formar uma espécie de Guarda Pretoriana, em frontal desacordo com a tradição nacional, era um convite para que no futuro ocorresse um golpe fascista. Para o restante dos generais franceses, De Gaulle, com sua defesa de uma guerra móvel no futuro, delirava ao apostar suas fichas nos carros de combate, desmerecendo a infantaria e as demais armas tradicionais. Alguns viram naquele projeto um embrião de uma futura ditadura militar que bem poderia ser empalmada pelo próprio De Gaulle, como se ele tivesse afiando uma espada para somente ele empunhar quando fosse necessário. Seja como for, apesar de reconhecerem seu talento e brilho, ele se tornou um inconveniente que caiu no desagrado tanto dos políticos como dos seus colegas de farda. Ainda assim, na hora do combate, coube a De Gaulle, na manhã do dia 17 de maio, ensaiar com seus tanques o único contra-ataque que o exército francês conseguiu esboçar contra os invasores. Seus 150 carros só não tiveram sucesso na ofensiva em Montcornet devido a total ausência de apoio aéreo. A De Gaulle, que ainda havia dedicado à publicação de um outro livro seu ao marechal Pétain, em 1938, quando este se tornou o mentor da capitulação final, só lhe restou o doloroso caminho do rompimento. Fazendo na ocasião parte do staff do governo Reynaud, ele percebeu que não havia mais nenhum ânimo de luta entre os supremos comandantes Weygand e Pétain. Eles só pensavam no armistício, em depor as armas e salvar o que fosse possível. No dia 17 de junho, na companhia do seu ajudante-de-ordem ele embarcou num vôo definitivo para Londres para buscar apoio junto a Churchill e de lá continuar com os Franceses Livres – um punhado de homens que se decidiram pelo exílio - a combater de qualquer modo. Com este gesto, o jovem general desafiava o velho marechal que aceitara o abandono das armas. Nas suas Memórias ele registrou: ‘ ali estava eu, sozinho, privado de tudo, como um homem na margem de um oceano que ele teria que cruzar nadando... ’ No dia seguinte, dia 18 de junho, socorrendo-se dos ofícios da BBC de Londres, lançou sua famosa mensagem:
A convocação à resistência
É um absurdo considerar que a luta acabou. Sim, temos sido pesadamente derrotado. O sistema militar ruim, Os erros cometidos na condução da operações, O espírito de abandono do governo frente aos derradeiros combates nos fez perder o Batalha de França. Mas ainda temos um grande império, uma intacta frota, um monte de ouro. Ainda temos aliados com imensos recursos. Se as forças da liberdade finalmente prevalecerem sobre os interesses da escravidão, o que seria o destino de uma França que apresentado ao inimigo? Honra, senso comum e os interesses superiores da Nação comando para todos os livre francês para continuar a lutar onde quer que estejam e por mais que podem. Eu, General de Gaulle, estou começando essa tarefa nacional aqui na Inglaterra. Convido todos os soldados franceses dos exércitos de terra, mar e ar, convido os engenheiros e trabalhadores especializados em armamento que estão em solo britânico ou que podem ir para lá. Convido os líderes, os soldados, os marinheiros, os pilotos das forças francesas de terra, mar e ar, onde quer que estejam, para entrar em contato comigo. Eu convido todos os franceses que querem permanecem livres para me ouvir e me seguir. Viva a França livre e independente!
[Il est absurde de considérer comme la lutte perdue. Oui, nous avons subi une défaite Grande. Un système mauvais militaire, les fautes commises dans la conduite des opérations, l'esprit d'abandonar du gouvernement pendant ces derniers combats ont fait nous perdre la bataille de France. Mais il nous reste un vaste Empire, Intacte flotte une, beaucoup d'or immenses, il nous reste des Alliés ressources dont sont les. Si les forças de la liberté triomphent finalement de celles de servidão la, quel serait le destin d'une France qui se serait soumise à l'ennemi? L'honneur, le bon sens, l'intérêt supérieur de la patrie commandent à tous les français libres de continuer le combat là où ils seront et comme ils pourront le. Moi, le General de Gaulle, j'entreprends ici en Angleterre nationale cette tâche. J'invite tous les militaires français des armées de terre, de mer et de l'air, j'invite les ingénieurs et les ouvriers spécialistes français de l'armement qui se trouvent en territoire britannique où qui pourraient y parvenir. J'invite les chefs, les soldats, les marins, les Aviateurs, françaises des forças de terre, de mer, de l'air, où qu'ils se trouvent actuellement, à se mettre en rapport avec moi. J'invite tous les français qui veulent rester libres à m'écouter et à me suivre. Vive la France libre dans l'honneur et dans l'indépendance!]
Bibliografia
Beevor, Antony e Cooper, Artemis. Paris after the liberation 1944-1949. New York: Penguin Books, 1994. Blum, León. L'histoire jugera. Paris: Éditeur Diderot Et L'Arbre, 1945. De Gaulle, general. Memórias de Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca editora do Exército, 1977, 3 v. Duarte, Paulo Alfeu Junqueira Monteiro. O Espírito Das Catedrais. São Paulo: Editora Anhembi, 1958 Lacouture, Jean – De Gaulle – Le rebelle ( 1890-1944). Paris: Le Seuil, 1987. Maurois, André - A tragédia na França, Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1941. Shirer, William – A queda da França. Rio de Janeiro- São Paulo: Editora Record, 1969, 3 v. Werth, Alexander – De Gaulle. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967.

Sigmund Freud e o Papado

[passei] grande parte de minha vida a destruir minhas próprias ilusões e as da humanidade. (Sigmund Freud em carta a Romain Rolland). O entendimento crítico que Sigmund Freud tinha do fenômeno religioso alinhava-se com o pensamento iconoclasta desencadeado pelo Iluminismo do século XVIII. A crescente visão psicanalista do comportamento humano, dominante nos dias de hoje no Ocidente, nos faz entender qual a razão da pedofilia ter se tornado tão abominável aos olhos da sociedade contemporânea,especialmente quando implica no envolvimento de integrantes do clero.
O general semita
Quando ginasiano, Sigmund Freud extasiou-se com a história de Aníbal Barca o general cartaginês que, ainda que não conquistasse Roma na sua campanha da Itália, em 218 a.C., fizera a grande urbe tremer de medo. Como judeu vivendo no império católico dos Habsburgos, sentiu-se um tanto quanto compensado em saber que, pelo menos uma vez, aquela cidade que depois abrigaria a sede do cristianismo, fora acuada por um semita (os cartagineses descendiam dos fenícios, e, como ele Freud, filhos de Sem). Dedicou então a maior parte da sua vida de sábio e cientista a desconstruir a estrutura moral em que se baseava a o poder do papado e da religião. Para ele, a missa, por exemplo, nada mais era do que uma simulação civilizada de um ato de canibalismo (a comunidade engole pedaços de carne [a hóstia] e bebe o sangue [vinho] do pai morto), e o pecado senão que um recurso para reprimir os instintos e pulsões naturais dos seres humanos. Além de a religião ser a manifestação da natural insegurança humana, da perpetuação dos temores infantis da humanidade - que requer um Deus-pai para protegê-la das desgraças e das doenças -, sua gênese girava ao redor do conflito entre pai e filho: Abrão recebe a incumbência de sacrificar seu filho Isaac; Zeus mata Cronos, que por sua vez desfizera-se do seu pai Urano, castrando-o; Jesus, crucificado, sente-se abandonado pelo Deus-pai que o deixou padecer no lenho; o totem tribal, centro das aglomerações selvagens, é uma recordação dos filhos que mataram o pai que, ao monopolizar as fêmeas, os excluía, etc.
Efeitos do abuso sexual
A obra de Freud, especialmente os ensaios ‘Totem e tabu’ (1913), ‘O Futuro de uma ilusão’(1927), ‘Moisés e o monoteísmo’(1938), seguindo a tradição contestadora da modernidade, ampliou enormemente a compreensão do fenômeno da fé e procurou superar as críticas anteriores que entendiam as crenças como obra da ignorância e do fanatismo (acusação dos iluministas), da alienação (o ‘ópio do povo’ de Marx), ou vestígio de épocas superadas (da ‘era mitológica’ de Comte e dos positivistas). Tinha consciência crescente de que a psicanálise, seu invento exclusivo, provocaria um sério estrago no aparato das crenças ocidentais. Entre outras razões, por ele também ter destruído o conceito cristão da pureza infantil, sendo um dos primeiros a denunciar os estragos que a pedofilia provocava no desenvolvimento de um ser humano. Todo este alarde que se faz hoje em relação ao abuso sexual de menores decorre da teoria freudiana de que a criança molestada é a precursora do adulto neurótico e infeliz (quando não, ao crescer, se transforma num outro predador sexual). O pedófilo não apenas é um violador ocasional, ele destrói uma vida. Freud fez dos impulsos sexuais e dos sonhos eróticos algo pertinente a qualquer homem ou mulher e não obra do demônio emboscado ou abrigado na alma humana. Por mais hediondos que parecessem, resultavam da repressão moral e religiosa que os indivíduos de ambos os sexos sofriam na comunidade em que nasciam e viviam. Tudo comuníssimo e humano. Assim, um por um, os dogmas religiosos e morais que formavam os indivíduos no Ocidente foram sendo desfeitos pela difusão da psicanálise. Como se fora um esquadrão armado do general Aníbal Barca ressurgido, sãos os argumentos de Freud que ora, mais do nunca, cercam e embaraçam a Cúria Romana, colocando-a na defensiva devido às sucessivas denúncias de práticas pedófilas por parte dos seus sacerdotes.
Obras consultadas
Freud, Sigmund. Moisés e o monoteísmo. São Paulo: Imago, 2006. ____ O futuro de uma ilusão. São Paulo: Imago, 2006. ____ Totem e tabu. São Paulo: Imago, 1999. Gay, Peter. Freud. Uma vida para o nosso tempo, São Paulo: Cia das Letras, 1989. Lee, R.S. Freud and Christianity. Londres: Penguin Books, 1967.

domingo, 2 de maio de 2010

O pensamento selvagem de Lèvi Strauss

O pensador francês levou a antropologia muito além do estudo de cada sociedade na tentativa de desvendar as leis da própria condição humana. E partiu numa aventura que mudaria sua vida e a história das ciências sociais.

Pense na cena: o rei da França e um cacique tupinambá, frente a frente, perante damas e cavalheiros da corte, em Paris. A cena inusitada se deu no século 16, quando os franceses haviam estabelecido no Brasil a sua efêmera França Antártica e o rei Carlos IX, desejoso de conhecer os hábitos estranhos de seus novos súditos, levou um chefe e dois guerreiros indígenas para a Europa. Foi uma sorte que entre cortesãos e servidores de Sua Alteza estivesse presente o filósofo Michel de Montaigne, que descreveu os acontecimentos no livro Ensaios. Graças a ele ficamos sabendo que os chamados “selvagens” ficaram tão espantados quanto os franceses. “Eles notaram”, escreveu, “que há entre nós homens bem fornidos que gozam de todas as comodidades da vida, enquanto às suas portas mendigam os homens da nossa outra metade, emagrecidos pela fome e pela pobreza.” As memórias de Montaigne diferem do relato que o conquistador Nicolas Durand de Villegaignon enviava da América: “Essa gente é muito arisca e selvagem, não tem nenhuma cortesia e é muito diferente de nós; não têm religião, não conhecem a honestidade e não sabem distinguir o certo do errado; são animais com figura de homens”. As duas narrativas revelam faces do comportamento que os europeus teriam frente aos povos do Novo Mundo: o colonizador, de olho nas riquezas naturais, sente-se filho de uma civilização superior, com direito a explorar os “selvagens”. O filósofo sabe não ser tão fácil distinguir o certo do errado e aproveita o contato para conhecer melhor não só a espécie humana, mas a própria civilização. Claude Lévi-Strauss, que criou, já no século 20, as teses da moderna antropologia, está no segundo caso. Um pajé tupi poderia dizer que o espírito de Montaigne continuou a inspirá-lo. O principal herdeiro dessa linhagem tornou-se o cacique do chamado estruturalismo até seu falecimento, ano passado, em sua taba às margens do Sena. Mas tratou-se de um descendente rebelde. Em Montaigne, o contato com os tupinambás inspirou o sentimento de que “por certo, o homem é um tema maravilhosamente vão, diverso e ondulante; não é apropriado nele fundar um juízo constante e uniforme”. Lévi-Strauss aceitou a primeira parte, mas desafiou a segunda. Para ele, a antropologia devia buscar, por trás da diversidade da espécie humana, o que ela tem de universal.
ESTRUTURAS
Essa busca, porém, não poderia se basear em preconceitos ocidentais. Era preciso romper com as teorias evolucionistas do século 19, segundo as quais as sociedades ditas “primitivas” representam estágios ultrapassados pelo Ocidente no caminho do progresso. A saída era comparar as mais variadas sociedades em busca das chamadas “invariantes”, aquilo que todas têm em comum. Por exemplo: o tabu do incesto, a capacidade de comunicação, a necessidade de preparar os alimentos e a interação com a natureza. Estudando como esses aspectos se manifestam em cada sociedade, Lévi-Strauss pretendeu decifrar as relações entre o ser humano, a natureza e a cultura já em sua primeira obra clássica: As Estruturas Elementares do Parentesco, de 1949. A inspiração para as “estruturas” veio da lingüística. Para o antropólogo, as sociedades se organizam como se fossem frases ou modos de falar, que podem ser diferentes entre si, mas obedecem a um mesmo código ou sistema universal. Essa concepção foi revolucionária, pois rompia para sempre a tradicional dicotomia entre natureza e cultura. O estruturalismo refutou a oposição entre esses termos ao mostrar como a cultura é uma produção – e não uma negação – da natureza.
TRISTES TRÓPICOS
Se os brasileiros do século 16 foram até Montaigne, Lévi-Strauss veio até os do século 20. Na década de 30, a recém-criada Universidade de São Paulo (USP) convidou o jovem Lévi-Strauss para a cadeira de sociologia. A aventura transatlântica mudaria sua vida e a história das ciências sociais. Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, na Bélgica, em 1908, filho de judeus de origem francesa. Seu pai era um pintor e o ambiente em sua casa era marcado pelo culto às artes, à poesia e à música. A Primeira Guerra Mundial marcou sua infância e quando ele chegou à Universidade de Paris, em 1927, pouco restava da confiança européia nos ideais de progresso da civilização ocidental. Formado em direito e filosofia, Lévi-Strauss lecionava num liceu quando lhe ofereceram o cargo na USP. Nos finais de semana, disseram-lhe, poderia visitar aldeias indígenas nos arredores da cidade. Imagine sua decepção quando chegou a São Paulo, que em 1934 já era a mais urbanizada das cidades brasileiras. Ele não se deu por vencido e aproveitou suas férias na Universidade para viajar pelo interior do país. Conheceu os cadiueus, junto à fronteira com o Paraguai e visitou aldeias bororos, no Mato Grosso do Sul. Foram cinco meses de contato direto com grupos indígenas. A temporada no Brasil durou até 1937 e está narrada no livro Tristes Trópicos, de 1955. Em 1938, com apoio do governo francês, Lévi-Strauss retornou ao Brasil. Dessa vez, a base foi Cuiabá e ele visitou os nambiquaras do Mato Grosso e os tupi-cavaíbas do Alto-Machado, no Amazonas. Mas os tambores do Ocidente começaram a soar e Segunda Guerra fez com que ele regressasse à França para o serviço militar. Quando os alemães invadiram o país ele partiu para Nova York, onde estava a nata da intelectualidade européia, com quem passou a conviver e debater suas idéias. Foi a conclusão de sua formação teórica. Na juventude, os interesses intelectuais de Lévi-Strauss foram a geologia, a psicanálise e o marxismo. De Sigmund Freud, ele herdou as teses sobre o inconsciente e a certeza de que a combinação de elementos mais insólita (como os sonhos) é sempre passível de uma interpretação. O legado de Karl Marx não foi apenas a crítica da civilização ocidental, mas a idéia de que é necessário organizar os dados da realidade numa teoria original. Anos depois, ele passaria a criticar vários aspectos da psicanálise e do marxismo e abandonaria os estudos de geologia em troca de uma paixão pela botânica e pela zoologia. Mas todos esses interesses marcaram o estruturalismo. “Os três demonstram que compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outro; que a realidade verdadeira nunca é a mais patente; e que a natureza do verdadeiro já transparece no zelo que este emprega em se ocultar”, escreveu.
SIGNOS E MITOS
Em Nova York, enquanto a Europa mergulhava na barbárie, o clima intelectual era de efervescência. Lévi-Strauss passou a freqüentar o grupo dos surrealistas – como o poeta André Breton e o artista Max Ernst – e familiarizou-se com as pesquisas de Franz Boas, a quem Lévi-Strauss sempre reconheceu como o verdadeiro precursor do estruturalismo. Primeiro, porque foi o alemão radicado nos Estados Unidos quem afastou de vez da antropologia o etnocentrismo – a presunção de superioridade ocidental –, instituindo a perspectiva relativista, segundo a qual é necessário entender as outras culturas sem impôr-lhes os valores da cultura ocidental. Mas principalmente porque ele era lingüista e concebia a gramática como uma “estrutura subjacente” da linguagem, inconsciente para os falantes. Mas o encontro mais importante desse período foi com o lingüista russo Roman Jakobson, seu amigo e interlocutor por toda a vida. Ele e Nicolai Troubetskoy tinham desenvolvido as idéias do suíço Ferdinand de Saussure sobre a linguagem. Eles mostraram que um fonema – a menor unidade lingüística – só é significativo quando relacionado a outros fonemas, formando sílabas e palavras. De forma análoga, Lévi-Strauss acreditava que os traços culturais de uma sociedade (mitos, rituais, práticas alimentares etc.) só podem ser compreendidos se analisados em conjunto. Sob o impacto dessa perspectiva estrutural, Lévi-Strauss formulou sua própria maneira de compreender o homem. Para ele, o que distingue o ser humano dos outros animais é o uso de símbolos para se comunicar. Essa sintonia com a lingüística serviu-lhe também para o perfil do antropólogo estruturalista. Ele não se preocupou com as particularidades de cada grupo humano: seu objetivo não foi conhecer uma sociedade específica, mas o que há de universal em todas elas. Há em todas as sociedades, por exemplo, sistemas de parentesco e restrições matrimoniais. Trata-se de um fenômeno humano tão universal quanto a linguagem. Lévi-Strauss estudou tais regras como se fossem signos articulados num processo de comunicação das alianças entre grupos sociais. O resultado foi uma nova compreensão do incesto, que refutou as explicações biológicas ou morais. O mais importante não é a proibição de manter relações sexuais com certas mulheres (como a mãe ou a irmã) e sim a permissão para tê-las com outras. A interdição de umas permite a circulação de outras e assim constitui alianças fundadoras da vida social. Por isso, o sistema de parentesco é visto como um artifício “por meio do qual se cumpre a transição entre a natureza e a cultura”. O estudo sobre o parentesco – um dos temas tradicionais da antropologia – foi uma espécie de prova de fogo do estruturalismo e Lévi-Strauss passaria a testar seu método numa área menos explorada: a mitologia. Num artigo de 1955, “O Estudo Estrutural do Mito”, ele afirmou que os mitos não podem ser estudados isoladamente: “Um mito é composto de todas as suas variantes”. Era preciso pesquisar como as narrativas tradicionais passam de uma sociedade para outra e vão se transformando. Foi isso o que Lévi-Strauss fez na sua obra máxima: a série em quatro volumes das Mitológicas, de 1960. Em mais de 2 mil páginas, ele analisa um total de 813 mitos – e suas centenas de variantes – originários de povos do continente americano, desde os bororos, os jês e os tupi-cavaíbas do Brasil até os hopi, os pueblo, os mohawk e os kwakiutl da América do Norte. O objetivo é desvendar a lógica interna dos mitos e mostrar como eles representam a passagem da natureza para a cultura. No primeiro volume, chamado O Cru e o Cozido, o antropólogo compara a análise conjunta dos mitos americanos à audição de uma sinfonia. Os membros da orquestra, porém, estão separados no tempo e no espaço, e cada um executa seu fragmento sem saber que não tem a partitura completa. Só é capaz de ouvir a música inteira quem estiver à distância. O concerto, segundo Lévi-Strauss, iniciou-se há milênios e hoje uns poucos músicos remanescentes continuam a tocar. O antropólogo estudou a recorrência de temas e narrativas e reduziu-as a oposições simples como cru/cozido, molhado/seco, macho/fêmea. Influenciado pela lógica binária da informática, que então se desenvolvia rapidamente, o antropólogo sustentou que esses antagonismos que organizam a cultura têm uma origem natural: correspondem à estrutura do próprio cérebro humano.
CONCRETO
Os mitos, portanto, são maneiras de pensar. Mas toda a exploração da mitologia ameríndia teria sido impossível sem que o autor tivesse, antes, desenvolvido sua própria teoria sobre o modo de pensar dos povos considerados “primitivos”. Tradicionalmente, os antropólogos distinguiam a “mentalidade lógica” da moderna civilização ocidental da “mentalidade pré-lógica” das sociedades primitivas. Lévi-Strauss abandonou essa divisão. Em O Pensamento Selvagem, de 1962, ele demonstrou que a maneira de pensar dos primitivos também tem sua lógica própria e que ela não é estranha ao pensamento domesticado ocidental. A distinção maior é entre a lógica construída a partir dos dados sensoriais da experiência – uma ciência do concreto – e a lógica que privilegia categorias abstratas, como sinais matemáticos e classificações biológicas. Do lado “selvagem”, há uma atenção maior ao específico. Do lado “domesticado”, buscam-se as totalidades, os grandes esquemas explicativos. O segundo modo prevaleceu na civilização ocidental, mas mesmo nela só é empregado por uma minoria de especialistas, cada um em seu campo de atuação. O engenheiro, por exemplo, só pensa como tal no domínio da engenharia, em termos de culinária ou futebol seu modo de pensar pode ser considerado “selvagem”. O pensamento “selvagem”, portanto, não é restrito aos povos primitivos, ainda que entre eles seja dominante. Assim, o que era antes visto como “atraso” ou “vestígio” passou a ser entendido como um dos modos possíveis de o homem organizar sua relação com o mundo. É como se o pensamento primitivo trabalhasse diretamente com as coisas que o ser humano tem ao alcance dos cinco sentidos do seu corpo. Já o pensamento científico trabalha com teorias e conceitos, que servem de mediadores entre o ser humano e o mundo. O Pensamento Selvagem marcou o apogeu do prestígio do estruturalismo e estabeleceu definitivamente um espaço para a antropologia entre as ciências sociais mais importantes. Mas não sem polêmica. O lugar ao sol significava desafiar o predomínio de outra disciplina: a história. O livro contesta duramente a Crítica da Razão Dialética, do filósofo Jean-Paul Sartre, na época um dos ídolos da esquerda mundial. Lévi-Strauss contestou o privilégio concedido por Sartre à história, em detrimento das outras ciências sociais. E negou sobretudo a idéia de que o desenvolvimento da consciência histórica seria um critério válido para distinguir os “primitivos” dos “civilizados”. A própria noção de “fato histórico”, para o antropólogo, é falsa: a história só é percebida “em situação”, enquanto processo vivido, pois a Revolução Francesa, por exemplo, não teve o mesmo significado para um camponês do Loire e para um cortesão de Versalhes. O fato histórico, portanto, é uma abstração criada pelo historiador e nunca independente do seu ponto de vista. Por isso, a história não pode pretender alcançar uma verdade objetiva – como queriam os positivistas e os marxistas. No final das contas, ela também pertence ao domínio da mitologia. Nos anos 1960, o estruturalismo se tornou – para constrangimento de seu criador – um modismo global, com adeptos em outras áreas do conhecimento, como o psicanalista Jacques Lacan, o sociólogo Louis Althusser e o crítico literário Roland Barthes. Mas o clima de contestação generalizada que marcou aqueles anos, culminando com o movimento estudantil de maio de 1968, na França, atingiu também a onda estruturalista. Jovens pensadores como o filósofo e historiador Michel Foucault abandonaram seus vínculos com essa linha de pensamento, questionando o determinismo das “estruturas” e também a possibilidade de estudá-las com o distanciamento e a objetividade exigida por seus mestres. Na antropologia, a corrente pós-estruturalista abandona o próprio conceito de estrutura, por se parecer com uma espécie de “teologia” das sociedades: uma instância imaterial e superior que determina os destinos humanos. Também criticam a propensão do estruturalismo para as generalizações, em detrimento do conhecimento das especificidades. Hoje, poucos antropólogos mantêm-se fiéis aos principais postulados de Lévi-Strauss, embora, no Brasil, sua obra ainda seja obrigatória nas cadeiras das universidades, ou como inspiração ou como ponto de partida. Porém uma das coisas que mais incomodam aos críticos de Lévi-Strauss é o fato de ele ter sido também um escritor admirável. Mas, se hoje o trabalho de Lévi-Strauss é mais valorizado como obra literária, o salto não deixa de ser irônico. O estruturalismo passou do campo do pensamento “domesticado” e científico direto para o seu oposto. Porque, como explicou o autor em sua obra de 1962, as artes formam na civilização ocidental uma espécie de reserva ecológica do pensamento selvagem. “Este livro sobre mitos é ele próprio um tipo de mito”, escreveu.

Sobre "Deus, um Delírio"

Tive, ultimamente, oportunidade de ler o livro “Deus, Um Delírio”, de Richard Dawkins.
Concluí, ao término da leitura, que era um livro desigual, mas que merecia ser lido. Trata-se de uma obra ambiciosa, pois pretende demonstrar, para um público culto, porém leigo, não apenas que a probabilidade de que Deus não exista é infinitamente maior do que a probabilidade de que exista, mas que o ateísmo é uma posição eticamente superior ao teísmo. Segue-se que uma sociedade democrática composta de indivíduos que, em sua maioria, conseguissem dispensar a religião -ou, pelo menos, torná-la assunto puramente privado- teria grande probabilidade de ser melhor e mais feliz do que as sociedades em que isso não havia ocorrido. Tal convicção explica por que "Deus um Delírio" não tem apenas um objetivo teórico, mas também -e sobretudo- prático. Não se trata, para o seu autor, meramente de interpretar, mas também de transformar o mundo. Daí o seu caráter militante. Muito esquematicamente, pode-se dizer que o esforço de Dawkins se encaminha por três vertentes diferentes, porém interligadas: a do esclarecimento de determinados conceitos, a da crítica ao teísmo e a da defesa do ateísmo. No que diz respeito ao primeiro ponto -ao qual, dadas as limitações espaciais, terei que me limitar, ao menos no presente texto-, Dawkins faz algumas distinções como, por exemplo, entre deísmo, panteísmo e teísmo, entre as diferentes modalidades de agnosticismo etc. O sentido dessas distinções elementares não é meramente didático, mas polêmico. Explico. Creio não ter sido o único adolescente que, ao manifestar certas dúvidas, ouvia dos adultos reprimendas como: "Quem é você para duvidar da existência de Deus, quando os maiores gênios da humanidade, como Einstein, acreditam nela?". Pois bem, as distinções feitas por Dawkins se dirigem contra esse tipo de argumento. É que grande parte dos pensadores citados como crentes em Deus são, na verdade, deístas ou panteístas; e nem estes nem aqueles acreditam num Deus pessoal, tal qual o das religiões abraâmicas, que são o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Para a maior parte dos deístas, "Deus" é o nome do princípio e causa do universo, no qual, porém, uma vez criado, jamais interfere. Sendo assim, o Deus dos deístas não produz milagres nem se interessa pelos homens. Pode haver algo mais distante do Deus do Velho ou do Novo Testamento? Sim: o Deus dos panteístas, que se identifica com o próprio universo, a natureza ou as leis da natureza. Tal é o Deus de Einstein, que, neste ponto, se identifica, segundo ele mesmo, com Spinoza. A rigor, pode-se, portanto, dizer que o descobridor da teoria da relatividade se encontra muito mais próximo do ateísmo do que do Deus de Abraão. "Não creio num Deus pessoal", afirmou ele certa vez, "e jamais neguei isso: sempre o exprimi com clareza". Como, então, forjou-se o mito da religiosidade de Einstein? Entre as razões para se pensar que ele acreditava em Deus está, sem dúvida, o seu uso metafórico -por puro charme- dessa palavra. Algumas das suas mais famosas declarações são "Deus não joga dados", que, como diz Dawkins, pode ser interpretada como "o acaso não se encontra no cerne das coisas", ou a pergunta retórica "Deus tinha escolha, ao criar o universo?", que se pode entender como "o universo poderia ter começado de outro modo?" Porém, mais importante é que, como Dawkins observa, com razão, é comum entre os cientistas e racionalistas uma reação quase mística -mas que nada tem de sobrenatural- à natureza e ao universo. "Se há algo em mim que pode ser considerado religioso", disse Einstein, "é a admiração incontida pela estrutura do mundo, na medida em que a ciência é capaz de revelá-la". O fato de que há, no fundo, uma incompatibilidade entre essa atitude e a religião é expresso pela perplexidade que o astrônomo Carl Sagan, citado por Dawkins, exprime ao se perguntar: "Como é possível que nenhuma grande religião tenha olhado para a ciência e concluído: Isto é melhor do que pensávamos! O universo é muito maior do que nossos profetas haviam dito, mais grandioso, mais sutil, mais elegante'?”. Confesso sentir um espanto semelhante ao de Sagan. Ademais, parece-me que, para cada ser humano, o mais grandioso é ter a consciência de tal grandiosidade, de tal maravilha e de tal mistério.