Obras Perfeitas Arrancadas do Mármore
Mesmo com a morte de Savonarola, Michelangelo continuou em Roma, envolto cada vez mais em uma tristeza crônica e numa ansiedade de moldar obras grandiosas, de belezas perfeitas, arrancadas da frieza do mármore, convertidas em figuras pulsantes, quase vivas.
Na primavera de 1501 Michelangelo retornou a Florença, para executar a obra que refletiria o amadurecimento da sua arte. Tomou para si um imenso bloco de mármore abandonado há quarenta anos, pertencente à catedral da cidade. O bloco tinha sido entregue a Duccio, para que nele fosse talhada a figura de um profeta, mas o escultor morrera repentinamente. Michelangelo trabalhou no bloco, modelando a grandiosidade da sua obra monumental. Usou a sua força física, com golpes intensos de martelo, que deixavam o mármore aos poucos, tomar forma de um homem perfeito, de plena exuberância das suas formas, surgia “David”, jovem e vigoroso a vencer o gigante Golias.
A estátua colossal deslumbrou uma comissão de artistas, que incluía Botticelli, Leonardo da Vinci, Perugino e Pilippino Lippi. Cercado pelo fascínio de todos, Michelangelo explicava a sua técnica diante do mármore bruto e da concepção da figura: “A figura já está na pedra, trata-se de arrancá-la para fora.”
Ao ser questionado onde que se iria pôr a estátua de David, Michelangelo foi categórico, deveria ficar na praça central de Florença, a Piazza Della Signoria (Praça da Senhoria), em frente ao Palazzo Vecchio (Palácio Velho). Assim foi feito, a estátua ficou neste local de 1504 até 1873, quando foi transferida para a Galleria dell’Accademia, protegendo-a da depredação dos ataques constantes do povo, que consideraram a nudez do David um atentado à moral.
Encontro com o Papa, em Roma
Após o término da estátua colossal de David, concluída em 1504, Michelangelo retornou a Roma, em 1505, chamado pelo papa Júlio II. O pontífice encomendou-lhe um mausoléu monumental, digno da época áurea da Roma Antiga. Entusiasmado, o mestre partiu para Carrara, onde ficou oito meses, a conceber o projeto e a escolher o mármore que nele iria usar. Enormes blocos de pedra foram enviados para Roma, acumulando-se na Praça de São Pedro. Um desentendimento do escultor com Júlio II, fez com que este suspendesse a obra, em janeiro de 1506. No lugar do mausoléu, o papa decidiu reconstruir a Praça de São Pedro, sem consultar Michelangelo. O artista sentiu-se humilhado, além de ter ficado endividado. Sem alternativas, Michelangelo voltou para Florença.
A reconciliação com Júlio II viria algum tempo depois, quando este lhe encomendou uma estátua de bronze para a fachada da Igreja de São Petrônio, em Bolonha. Michelangelo protestou, pois não tinha técnica com o bronze, mas Júlio II insistiu no capricho, e durante quinze meses, o artista trabalhou arduamente na estátua, que seria erigida em 1508. A estátua de bronze de Júlio II teve apenas quatro anos de vida, sendo destruída, em dezembro de 1511, por políticos inimigos do papa, sendo o material usado para a construção de um canhão.
Ao voltar a Roma, Michelangelo teve, mais uma vez um pedido que não lhe agradou, vindo de Júlio II, o de decorar a abóbada da Capela Sistina. O artista menosprezava a pintura, não escondendo a sua paixão pela escultura. Tentou declinar da encomenda do papa, vociferando: “Não sou pintor, sou escultor.” Mas não conseguiu desvencilhar-se do trabalho e dos caprichos do papa. No dia 10 de maio de 1508, ele começou a produzir uma das mais grandiosas obras da sua autoria e da humanidade, os afrescos da Capela Sistina.
Michelangelo Pinta os Afrescos da Capela Sistina
Michelangelo dispensou os pintores que lhe haviam sido dados como ajudantes. Sozinho, começou a executar um trabalho fustigante, que lhe consumiria a alma e a saúde. Tornou-se herói de si mesmo, numa luta árdua entre a sua intuição criativa, a reprodução da criação e os limites do corpo e da existência. Michelangelo mergulhou nas entranhas da sua inspiração, arrancando dela um vasto cenário da existência do homem, com as suas tragédias, esperanças e promessas eternas. Mais do que decorar uma abóbada, ele retratou a própria humanidade, desde o princípio da criação às profecias da existência.
Michelangelo sofreu todas as vicissitudes de quem estava disposto a erigir uma obra grandiosa. Decidiu pintar não só a abóbada da capela, como às suas paredes. O trabalho era lento, exaustivo, quase imperceptível em seu avanço, o que fez com que Júlio II não lhe pagasse um tostão por mais de um ano. Michelangelo foi atormentado pela falta de dinheiro. Sofreu com a cobrança constante de Júlio II, que lhe perguntava, impacientemente, quando teria a capela pronta, aa que ele respondia com ironia: “Quando eu puder!”. Os momentos de tensão foram tão intensos entre dois, que o artista chegou a ser agredido pelo pontífice com golpes de bengala. Diante das animosidades, Michelangelo tentou fugir de Roma, mas foi impedido pelo papa, que lhe pediu desculpas e mandou que lhe fosse entregue a quantia de quinhentos ducados.
Após longos quatro anos de agonia, sofrimento e criatividade única, Michelangelo concluiu a sua obra.
No dia 2 de novembro de 1512, o artista retirou os andaimes que encobriam a perspectiva total da obra, permitindo a presença do papa à capela, para que pudesse ver o resultado. A pintura trazia toda a trajetória humana, guiada pela plenitude do Criador. Trezentos personagens do Antigo Testamento desfilavam pela abóbada da capela, de 40 metros de largura por 13 de altura. Figuras dramáticas moviam-se em multidão, umas sentadas, outras que flutuavam. Michelangelo retratava Deus com um corpo vigoroso e retorcido, retesado no ato de criação do universo, a dar o toque vivificador, com a ponta do dedo, em Adão, primeiro ser vivente. Assim, os afrescos traziam os episódios do Gênesis, “A Criação”, “O Pecado” e o “Dilúvio”, acompanhados dos profetas. Nos quatro ângulos, reproduzia a libertação de Israel: a “Serpente de Bronze”, os “Triunfos de David”, “Judite” e “Ester”. Júlio II foi o primeiro a ter a visão de um esplendor criativo de beleza e genialidade jamais pensadas até então, imagem que conquistaria milhões de visões por mais de cinco séculos, atraindo e fascinando pessoas de todas as raças, credos e ideologias.
Esplendor nas Estátuas dos Mausoléus
Após quatro anos de sofrimentos, Michelangelo pôde, finalmente, sentir-se um vencedor diante da excepcional obra da Capela Sistina. Pôde respirar um pouco e descansar o corpo e a sua angústia existencial.
Mas o descanso durou pouco. Com a morte de Júlio II, em fevereiro de 1513, o artista assinou um contrato com a família do papa para executar, em sete anos, o antigo projeto do seu mausoléu. A obra final teria 32 grandes estátuas, constituindo o projeto que Michelangelo mais amou fazer. Logo criou a primeira estátua, “Moisés”, em cujos traços insinuou a fisionomia do papa. “Moisés” é considerada a mais perfeita obra de escultura de Michelangelo. Além desta figura, esculpiu para o mausoléu de Júlio II os dois célebres “Escravos”. Infelizmente a obra ficou inacabada. Sobre ela, Michelangelo falou, quando tinha 67 anos de idade: “Acho que perdi toda a minha juventude ligado a ela.”
Michelangelo voltaria a ser chamado pelo papa Clemente VII, para um novo trabalho grandioso, construir a capela e a tumba dos Médici, em Florença. Para executar o trabalho, receberia uma pensão três vezes superior a que ele pedira. Assim, de 1523 a 1531, Michelangelo esculpiu as estátuas de Juliano e Lourenço de Médici, que alegoricamente representavam a Ação e o Pensamento, e as quatro sombrias estátuas de base, “O Dia”, “A Noite”, “A Aurora” e “O Crepúsculo”. Durante este período, Michelangelo interrompeu o trabalho em 1527, quando eclodiu uma guerra contra os Médici, em Florença e o artista ajudou os rebeldes, projetando a defesa da cidade, atitude que o fez fugir para Veneza. Restabelecida a paz, foi perdoado por Clemente VII, e voltou a trabalhar nas estátuas com furor. As obras do mausoléu dos Médici são magníficas, elas refletem a amargura, a perda da juventude e a melancolia calcada na alma do artista ao longo dos anos, das perdas e dos amores diluídos nas mentiras dos preconceitos.
O Juízo Final de Michelangelo
Com a morte de Clemente VII, em 1534, Michelangelo deixou Florença. O ódio que o Duque Alexandre de Médici lhe dedicava, impediria-o de retornar a Florença, sem que jamais pudesse rever à terra natal.
Após vinte anos de ausência, Michelangelo regressou a Roma, onde viveria até a sua morte. Era um homem de quase 60 anos, longe da juventude e sem saúde. Vivia amargurado, numa solidão cortante, sem a vitalidade e o prazer que dantes retirava da criação da sua arte.
Em Roma, travou amizade com Tommaso dei Cavalieri e com a Marquesa Vittoria Colonna, que lhe deu um certo alento diante da solidão à qual agarrara-se com fervor. Foi neste período que aceitou a oferta do papa Paulo III, que o nomeou, em 1535, arquiteto-chefe, escultor e pintor do palácio apostólico, passando a idealizar um novo planejamento para a Colina do Capitólio, em Roma, obra que jamais concluiu.
Sob o pontificado de Paulo III, Michelangelo pintou, entre 1536 e 1541, um grande afresco na parede do altar da Capela Sistina, o “Juízo Final”. Na obra, um belo e vigoroso Cristo aparece no plano superior, ladeado pelos escolhidos, trazendo consigo a vingança implacável contra os seus inimigos, Maria, assustada, não ousa a contemplar a cena; os anjos travam uma luta imarcescível contra os condenados. No plano inferior, os que não se salvaram caem nos domínios infernais. Todos os movimentos da humanidade estão retratados neste afresco, feito para ser um retrato religioso, mas que traz um sabor profano, já que o autor só pintou nus. Este fato causou tanta polêmica, que se chegou a cogitar a destruição da obra, pensada pelo papa Paulo IV. Felizmente, o pontífice decidiu-se por mandar o pintor Daniel de Volterra obscurecer os órgãos dos nus mais ousados. Só em 1993, quando o afresco foi restaurado, que a nudez original voltou a imperar, deixando algumas figuras ainda cobertas como registro histórico.
Cansado e envelhecido, Michelangelo continuou a esculpir obras, mesmo já avançado na idade. Durante toda a vida foi perseguido pela família de Júlio II, que através de inúmeros contratos assinados, exigiam o término do seu mausoléu. A obra, jamais acabada, consumiu anos do artista.
No fim da vida, Michelangelo voltou-se para o misticismo religioso, negando o mundo e o profano, perdidos no tempo, como a sua juventude. Passou os últimos anos a dedicar-se às cenas da paixão de Cristo. Aos 88 anos, elaborava uma nova “Pietá”, mas uma doença prendeu-o definitivamente à cama, onde se iria definhar. No leito de morte, ditou com absoluta lucidez, um comovente testamento, pedindo para regressar, ainda que morto, à Florença, sua terra natal, inesquecível palco da sua juventude e aprendizado. Em 18 de fevereiro de 1564, Michelangelo doou o seu corpo à terra e a alma a Deus, morrendo em Roma. Homem feio, de rosto desfigurado, Michelangelo reproduziu externamente a beleza que tinha interiormente, transformando as dores humanas em um idílio visual. Além de pintor e escultor, era um poeta, registrando em seus poemas uma sublime linguagem homoerótica. Viveu imerso nas angústias e no trabalho, próximo da morte registrou em um poema: “Na verdade, nunca houve um só dia que tenha sido totalmente meu”. Os dias de genialidade criativa de Michelangelo foram doados à humanidade, através da beleza universal das suas obras.
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