"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

sábado, 8 de outubro de 2011

O platinado

Quando eu era adolescente, sabia tão pouco do motor de um carro quanto sabia da alma humana. Olhava o que tinha debaixo do capô como se olhasse um abismo sem fundo e só pedia do motor do meu carro que funcionasse, sem precisar entrar na sua intimidade. Conhecia algumas partes do motor de ouvir falar, claro, como o radiador e a bateria, e simpatizava com o virabrequim apesar de não ter a menor idéia do que fosse. Mas o virabrequim era o limite do meu envolvimento com o abismo. Não sabia o que era o platinado, por exemplo. E me surpreendo até hoje com o número de vezes em que o platinado era citado quando buscava ajuda profissional para um motor com defeito, naquela época em que não existia ignição eletrônica.. Muitas vezes a opinião do mecânico precedia um exame do motor. — Talvez seja o platinado... Outras vezes o exame confirmava o diagnóstico precoce: — É o platinado. E era raro se ouvir que o platinado tinha conserto. Normalmente a única solução para um problema com o platinado era um procedimento radical. Transplante. — Tem que trocar o platinado. Cheguei a desconfiar que, como tinha (e ainda tenho) cara de quem não sabe nada de motores, estavam me enganando, e trocar o platinado fosse só uma maneira de me cobrar mais. Talvez o platinado velho estivesse em perfeitas condições. Talvez nem existisse o platinado! Ou então a troca do platinado era a maneira prática de dispensar uma intervenção mais trabalhosa. Na falta do que fazer, trocava-se o platinado. Penso no platinado sempre que ouço que mais um técnico de futebol foi trocado por outro, para melhorar a produção do time, acabar com uma fase má ou simplesmente aplacar uma torcida revoltada. A conclusão em todos os casos é que a culpa é do platinado e a solução é um platinado novo. Quase sempre a culpa real é de uma administração incompetente ou um time irreparavelmente ruim, mas trocar isto equivaleria a ter que trocar todo o motor. E trocar o platinado adquiriu até uma conotação mística. Um novo técnico teria, como um deus, a capacidade de mudar o clima no vestiário. De fazer pernas de pau acertarem chutes, jogadores cegos enxergarem a bola e ameaçados de sepultamento na zona de rebaixamento ressuscitarem. Raramente consegue, o que não diminui o poder da ortodoxia: quando as coisas vão mal, troque-se o platinado.

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