"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

segunda-feira, 8 de março de 2010

Mad Maria: os trilhos do diabo

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, construída no coração da floresta Amazônica entre 1907 e 1912, foi uma das mais ousadas obras da engenharia ferroviária em todos os tempos. Estendida por mais de 300 km, foi aberta em meio a incríveis dificuldades climáticas e sanitárias, comuns à selva tropical, para prover a Bolívia de uma saída comercial pelo Atlântico. Poucos anos depois da sua inauguração em 1912, com o declínio da extração da borracha, ela foi desativada, restando por lá algumas locomotivas e outros trastes ferroviários como testemunhas mudas do enorme esforço inútil despendido na construção daquela que foi chamada de Ferrovia do Diabo, ou simplesmente Mad Maria (Maria a louca) O isolamento da Bolívia A pobre Bolívia não é um lugar muito feliz de se viver. Encerrada em meio às altíssimas montanhas dos Andes, uma infeliz guerra contra o Chile privou-a do acesso ao Oceano Pacífico desde 1879. Do outro lado, da fronteira voltada para o Brasil, é a muralha da floresta Amazônica que a deixa ainda mais isolada. Não só isso, o único rio que poderia ser aproveitado por ela para alcançar o Atlântico, cortando a selva e desaguando no rio Amazonas, é o rio Madeira, conhecido pelas suas perigosas e intransponíveis cachoeiras. Foi Raposo Tavares, numa bandeira organizada em 1647 no interesse de El Rei, quem por primeiro chegou a percorrê-lo na totalidade. Navegar no alto Madeira, meter-se de canoa e carga nele, era suicídio. Duzentos anos depois do bandeirante, o engenheiro boliviano José Augustin Palácios, um entusiasta da saída pelo Atlântico, num relatório aprontado em 1846, apresentou como solução a construção de uma estrada que contornasse as quedas d’água da confluência Madeira-Mamoré, como se ainda fosse fácil enfrentar depois os 3.300 quilômetros restantes, as febres, e os índios que não davam trégua a ninguém. Na medição feita pelo engenheiro brasileiro Silva Coutinho, em 1861, da primeira à última cachoeira do rio Madeira, percorria-se 70 léguas (ou 462 km), algo que somente poderia transposto por uma estrada–de-ferro construída ao longo das margens (sugestão que também foi apresentada pelo general boliviano Quentin Quevedo). Passado o trajeto dos limites bolivianos até Porto Velho, o rio Madeira tornava-se apto à navegação. Impulso para a construção da madeira-mamoré Foi a Guerra do Paraguai (1864-1870) quem por igual convenceu o governo brasileiro a planejar algum tipo de saída amazônica para o estado do Mato Grosso, tão afastado do restante do pais como a Bolívia da América do Sul e do mundo. Todavia, tudo isso ficou letra morta até dar-se a explosão da borracha no final do século 19. Então, milhares de seringueiros vindo do Brasil invadiram aquelas selvas desertas que separavam a Estado do Amazonas da Bolívia. O Acre, área boliviana, encheu-se de caucheiros sangrando tudo o que viam pela frente. Parecia, por fim, que havia-se encontrado o tão lendário El Dorado, o tesouro no meio da floresta que pusera a perder Francisco Orellana e o celerado do Lopo de Aguirre, ainda no século 16. Portanto, evitada a guerra entre a Bolívia e o Brasil pelo controle do Acre (Tratado de Petrópolis de 1903), foram as exigência da nascente industria dos transportes, automóveis e caminhões, faminta pela borracha para fazer pneus, transformada num ouro negro, quem forçou a que a estrada-de-ferro sonhada antes por tantos tomasse forma pelas mãos de Percival Farquhar, um empreendedor norte-americano que fazia de tudo naquela época e que havia ganho a concessão do govenro brasileiro para a sua construção. Construindo a estrada A partir de 1907, aquela parte da região amazônica virou um formigueiro com mais de 3 mil trabalhadores vindos de todos os cantos do mundo. Até uma loja maçônica, a dos “Temporários”, fundou-se por lá. Vindas de Nova York, modernas máquinas à vapor foram instaladas para ajudar os trabalhadores na derrubada da paisagem paleozóica que cercava os trilhos da temerária e desabrida ferrovia que, segundo seus detratores “ ligava o nada a lugar nenhum”. A bexiga, a beribéri, a diarréia, a pneumonia, a malária e enxames de mosquitos os devastou. Eram os anti-corpos usados pela floresta para expelir os invasores. Metade dos médicos morreu ou adoeceu com gravidade. Pavorosas ainda eram as chuvas. As trombas d’água, uma a cada 24 horas, dissolvendo tudo, punham o trabalho de meses a perder. Partindo do cais de Porto Velho em direção à fronteira boliviana, o primeiro trecho de 90 km da estrada de ferro Madeira-Mamoré foi inaugurado em 1910. No ano seguinte a Madeira-Mamoré Company, controlada por Farquhar, importou mais de 5 mil braços para afundá-los nos igarapés e pântanos que cercavam os trilhos da ferrovia, já conhecida então como Mad Maria (“Maria louca”), como a imprensa estrangeira começou a referir-se a ela. No total dos quatros anos e meio que durou sua construção foram contratados 21.817 operários que se espalharam ao longo do trajeto, habitando ranchos de folhas de palmeiras ou precários galpões, tudo supervisionado por uma equipe de engenheiros americanos sob a liderança do superintendente Harry Meyer. Manoel Rodrigues Ferreira, engenheiro paulista, historiador e sertanista que escreveu o mais detalhado e confiável livro sobre a ferrovia (“A Ferrovia do Diabo”, 1962) assegura que a mortandade dos operários não foi tão elevada como espalharam na época. Na verdade, pelo menos pelos registros oficiais, os óbitos foram de 1.552, ou seja 7% do total de trabalhadores empregados na obra, bem longe dos propalados 6 mil mortos que disseram que ela provocara. Em 1º de agosto de 1912, com 366 km completados, finalmente a inauguraram, encerrando assim um dos maiores feitos da engenharia do nascente século 20. A outra grande obra que se fazia naquele momento era a abertura do Canal do Panamá, construção mastodônica que de certo modo ofuscou o da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Naquele ano da sua inauguração a borracha correspondia a 39% das exportações brasileiras (equivalente a 60% da exportada no mundo inteiro). No ano seguinte, em 1913, Farquhar estava falido. Uns anos depois, superada os tormentos que o pagamento da ferrovia custou ao governo brasileiro (62 mil contos ou 28 toneladas de ouro), os trilhos que pareciam ser de ouro, com a estrada abandonada, viraram trilhos do diabo. A concorrência dos seringais do sudeste asiático e, depois, a invenção da borracha sintética, fizeram a extração amazonense entrar em crise definitiva. Tal como depois deu-se com Henry Ford (Fordlândia) e Daniel Ludwig (Projeto Jari), Percival Farquhar mediu forças com a floresta amazônica e perdeu. A Bolívia, enquanto isto continuou na mesma.

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