"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

domingo, 28 de fevereiro de 2010

A imagem medieval do Mundo

Cada época histórica tem sua própria imagem do Homem e do Mundo. Certamente ela é influenciada por uma série de percepções e certezas que passam pela religião, pelo estágio material e pelo nível geral das crenças e dos hábitos das sociedades que a compõe. Não foi diferente disso a Idade Média que apresentou uma Imago Mundi completamente distinta daquela que vigia nos tempos do paganismo e da que iria surgir nos tempos modernos. Imagem de Deus Deus colocou o homem no mundo para não ficar só frente ao Cosmo. Esta era a explicação dos teólogos medievais em resposta a qual teria sido o motivo do surgimento de Adão e Eva. Assim sendo, seus descendentes trazem consigo a marca da divindade. O Homem é uma Imago Dei, isto é, uma imagem de Deus, trazendo em si, na sua anatomia e na sua fisiologia, órgãos e sentidos que apontam para uma similitude com o todo celestial. A cabeça, por exemplo, é um planeta, seus olhos são o Sol e a Lua, o espirro é o vento.., suas sete aberturas estão em consonância com os sete tons da harmonia universal, a alma, por seu lado, é o fogo que quando apaga faz o corpo perecer, etc. Tudo no Homem é um microcosmo, uma fração de algo bem maior, colossal, posto em ação pelo Todo-Poderoso. Medicina e astrologia Entende-se assim o motivo que levava a medicina medieval apelar para o horóscopo e para a astrologia, pois acreditava que a posição dos planetas nos 12 signos do Zodíaco de algum modo afetava a saúde dos homens e das mulheres, do mesmo modo que a Lua condicionava as marés e o Sol às boas safras. Cada órgão humano obedecia aos humores de um signo: Áries regia a cabeça, Sagitário as pernas, Peixes conduzia os pés, e assim por diante. Por conseguinte, como assegurou o sábio Avicena (980-1037), era “a má disposição dos céus quem rapidamente empeçonhenta os corpos”. Devia-se ao ar corrompido pelos astros a responsabilidade pelos surtos de epidemias que apavoravam e devastavam a sociedade medieval. Exatamente por isto os estudantes de medicina da Universidade de Bologna terem que estudar astrologia por quatro anos, para que quando aplicassem a sangria num paciente ela não fosse feita durante um estágio não conveniente da Lua (a Lua cheia, estavam certos, provocava uma hemorragia em excesso). Não havia, príncipe, conde ou barão daqueles tempos que não tivesse um astrólogo a sua disposição, mesmo que a Igreja Cristã fosse hostil a esse costume. Ainda no Renascimento, um renomado pesquisador e matemático e gênio como Johannes Kepler tirava seu rendimento preparando almanaques com previsões e elaborando mapas astrais para a corte do duque de Wallenstein. Como uma exposição interessante dessa visão geral que a teologia medieval tinha das coisas do Céu e da Terra, a sua Imago Mundi, foi a elaborada por Honório de Autum, um seguidor de Johannes Scotus Eriugena (c. 815–877) sobre como o famoso teólogo via o Universo, a Natureza e a História: 1 - Universo Universo “Mundo” deriva de “motus”, o mundo está em perpétuo movimento. O mundo é um ovo. O mundo é redondo como uma bola e similar ao ovo. Na beirada externa há uma casca, o céu que envolve o mundo inteiro, debaixo dela, como se fora a clara do ovo, o éter puro, que serve de envoluntório para o movimento, do mesmo modo como a clara encerra a gema. Na parte mais central dele, no germe, está a Terra. A Terra No seu centro está o Inferno, com fogo e enxofre tendo a forma de um cone vulcânico. O Inferno É um lugar de tormentos, prisão hedionda cheia de fogo. Divide-se em duas partes. Na parte central dele é o Erebo, habitado por dragões e serpentes. No Aqueronte encontram-se vapores nauseabundos, havendo ainda muitos outros lugares piores ainda. Os 4 elementos A Terra O mais pesado dos elementos, por estar no centro exato do mundo, conforme disposição de Deus A água Elemento leve, circunda e penetra a terra. Água significa “aequalitas”, superfície plana ou igual. O abismo é a parte mais profunda do mar. As marés, baixa e alta, dependem das inalações da Lua Ar e os ventos Assemelha-se ao vácuo e estende-se da terra à lua. É uma espécie de água mais leve, por isso as aves voam por ele como os peixes nada na água. nele habitam os demônios, aguardando o Dia do Juízo. É do ar que eles tiram seus corpos quando querem aparecer aos homens. Os ventos por sua vez são simples ondas de ar. Seu hálito condensado com água transforma-se em nuvem. O choque entre as nuvens produz raios e trovões, o fogo produz relâmpagos. O Fogo É o quarto elemento e chama-se “ignis, quase non gignis”, é o mais nobre deles, estendendo-se da Lua até o Firmamento. Confunde-se com o éter pelo seu brilho ininterrupto e por ser uma espécie de ar puro. Separa-se entre o Fogo da Terra, criado pelos homens, mais bando, e o Fogo do Inferno, criado pela Justiça de Deus para punir os réprobos e os condenados, fazendo com que, segundo Tertuliano, “cada condenado converter-se-á numa fornalha ardente”. A estrutura do Universo Os planetas A Lua é o primeiro dos planetas e a menor das estrelas. O Sol é o quarto planeta (depois de Mercúrio e Vênus), e é oito vezes maior do que a terra. Há ainda três outras esferas onde se movem Marte, Júpiter e Saturno. Harmonia das esferas A revolução dos planetas da origem a sons maviosos, que produz harmonia em consonância. Todavia não escutamos tal música por ser demasiado forte ao ouvido humano.. A escala da música vai da Terra ao Firmamento, havendo sete sons nesse espaço. A Terra é separada dos demais planetas por meio de tons (um tom inteiro é igual a 15.625 milhas) Além dos sete tons existem mais nove “consonâncias” (que correspondem as nove musas dos filósofos). O Céu Acima do fogo acha-se a oitava esfera, o Céu (distante 109.375 milhas, ou 203 mil km, da Terra). Ele gira em enorme velocidade ao redor da Terra, mantendo-se sempre eqüidistante do centro dela. Firmamento é o céu superior, situado em meio às águas condensadas em cristais, apresentando-se ornado de estrelas. É composto por dois pólos mas só vemos um deles, o pólo norte, sobre os quais o céu gira. As Estrelas encontram-se fixas no céu. A Via Láctea resulta da projeção luminosa de todas as estrelas. O Céu das Águas e o Céu dos Espíritos O Céu das águas está acima do firmamento e é aquoso devido às nuvens que lá se encontram. Já o Céu dos Espíritos é a morada dos anjos e das almas bem-aventuradas: é o paraíso do paraíso. O Céu dos Céus Bem além do paraíso, imensamente distante, encontra-se o Céu dos Céus, a Morada de Deus. Conclusão O Universo medieval caracteriza-se pela coesão singular e pelo simbolismo religioso. É um imenso globo material com dois pólos espirituais. A matéria religiosa vai até o céu dos espíritos bem-aventurados e a inferior desce até o inferno dos espíritos condenados. As nove penas do inferno correspondem às nove dos bem-aventurados do céu. Os homens ocupam um posto intermediário entre estes dois pólos, até que ocorra a separação entre os bons e os maus, indo então se incorporarem a um ou ao outro. 2 - A Natureza A etimologia A existência das coisas em si é secundária. Nos Bestiários e Lapidários constam animais e objetos que não existem. O que interessa ao homem medieval não é a classificação das coisas, mas o conhecimento das forças místicas, ocultas em seus nomes. Por exemplo: havia crença de que determinadas pedras tinham poder mágico e medicinal de cura. A analogia Por mais diversas que sejam as coisas existe “correspondência” ou analogia entre elas. O Homem é um microcosmo estruturado em analogia com o macrocosmo: sua carne é a terra, seu sangue é água, seu hálito é o ar, sua cabeça é redonda tal como a esfera celeste, sendo que seus olhos são o sol e a lua. Suas sete aberturas correspondem aos sete tons da harmonia das esferas celestes. Os sentidos do homem resultam do fogo celeste, do ar superior e ar inferior, e da Terra. O simbolismo Um ser material pode exprimir uma realidade material. Por detrás da matéria há um espírito impresso pelo Criador. Deus manifesta-se por duas coisas: a Sagrada Escritura e a Natureza, e entre as duas revelações divinas vige um paralelismo. As palavras da escritura enunciam verdades morais, enquanto as coisas da natureza possuem um significado oculto. 3 - A História O conceito de história A história é um grande drama escrito por Deus e interpretado pela humanidade. Divide-se em três acontecimentos: a Criação, a Redenção e o Último Juízo, havendo dentro de cada um deles subdivisões em número de sete. Há somente uma História Universal uma História Santa (não há especializações, como história de uma nação ou de uma raça). Tudo gira ao redor da Encarnação e da Redenção de Cristo. “Nosso rei é o verbo Encarnado, que veio ao mundo para dar combate ao demônio”. O método da História Começa pela Cronologia, coligindo os dados sobre povos e soberanos que se sucederam desde a criação. Os fatos não passam de sinais a serem interpretados de maneira “tropológica” (quando exprime uma verdade moral) ou “alegórica” (quando alude a um mistério da fé). Sempre a interpretação religiosa predomina sobre qualquer outra. Somente mais tarde, por influencia da física aristotélica, avançou-se para as origens da ciência moderna. Segundo: Honório de Autum (que reproduz Scoto Erígena). Local:Regensburg (começo do século XII). Obras "Clavis physycae" e "De imagene mundi" e "Elucidarium sive Dialogus..." Fonte: Philotheus Boehner - Etienne Gilson - História da Filosofia Cristã. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1988, págs. 276-282.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Lutero, Erasmo e a reconciliação dos cristãos

O povo corre para as igrejas como a um teatro para divertir-se. Então é preciso levantar-se dinheiro para o grande tributo do órgão, por manter multidão de meninos...Neste meio tempo nada de bom é ensinado.” Erasmo – “..ad veram Theologiam”, 1519 Religião e Dinheiro misturados, em qualquer lugar ou época, sempre inspiraram suspeita ou provocaram confusão. E não sem motivo, pois a Religião associa-se às coisas do espirito, à fé e à pureza, enquanto que o sonante é emparelhado ao mundo da materialidade, da avareza e da corrupção. Jesus Cristo, como é sabido, desconfiava da presença das moedas nos campos da fé. Ainda quando ele aconselhou a um jovem abastado a desfazer-se dos bens em favor dos pobres, mesmo assim acreditava ser mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico alcançar o Reino de Deus (Mateus, 19). Para ele, quem tinha muito dinheiro era irrecuperável. Cristo e Lutero O Galileu redobrou sua posição em manter a fé longe do mundo argentário quando, num célebre episódio, expulsou os comerciantes que mercadejavam nas cercanias do Templo em Jerusalém e, em seguida, em resposta a uns fariseus e herodianos que lhe inquiram sobre a legitimidade dos imposto exigido pelos romanos, ao mostrar-lhes um denário com a face do imperador, conclamou-os, afastando-o de si, que o devolvessem: “a César o que é de César, e o que é de Deus, a Deus” (Mateus,22). Martim Lutero, quinze séculos depois, de certo modo, seguiu-lhe nos ensinamentos. O rude monge alemão que se tornara doutor em teologia, mais de mil e quinhentos anos depois desses episódios relatados no Novo Testamento, não vira mal nenhum em rejeitar veementemente a comercialização de indulgências que estava sendo praticada por quase toda a Alemanha com a autorização papal. Quando o padre Tetzel, um representante do arcebispo Albert de Brandeburgo e do Banco Fugger, aproximou-se das propriedades de Frederico o sábio, o príncipe-eleitor da Saxônia e suserano do doutor, visando o escuso e nefando negócio de perdoar os pecados em troca de dinheiro, Lutero foi a luta. Sentiu-se no papel de Cristo empunhando um cajado contra os vendilhões do Templo, no caso Tetzel e a quem representava. Ao afixar no dia 31 de outubro de 1517, nas portas da igreja do Castelo de Wittemberg, em Augsburg, suas “95 teses” atacando a Igreja Romana, o monge alemão provocou o maior cisma na história da Cristandade Ocidental. O argumento central de Lutero, de raiz paulina, era simplíssimo. Ninguém estava autorizado na Terra, nem padre nem papa, a salvar fosse quem fosse. A salvação era um atributo exclusivo de Deus. Nem mesmo as boas ações adiantavam. Sequer gordas esmolas ou confissões arrependidas. Como poderia o Onipotente, policiando um universo infinito, levar em conta os gestos de caridade ou sincera constrição de um ou outro dos crentes? Logo, traficar perdão em nome de Deus era, no mínimo, obsceno. Erasmo sugere a reconciliação O Papado, porém, reagiu a Lutero como faria um chefe de corporação ofendido em seus privilégios. Em 1520, Leão X, um descendente dos Medici (um glutão, de quem Voltaire disse “ter Deus no estômago...e o dinheiro extorquido das indulgências nos seus cofres e nos da sua irmã”), expediu uma bula excomungando-o. Foi o início do desastre para a unidade cristã. Ao ter a Cúria permitido, ao longo dos séculos, que a Igreja-estado mantivesse ligações incestuosas com o dinheiro, fez por contribuir para que parte considerável da sua imensa construção medieval, estocada por Lutero, ruísse para nunca mais se compor. Erasmo de Rotterdam, o grande humanista que se antecipara a Lutero em suas críticas ao Papado, ainda tentou uma apaziguação entre as partes cada vez mais hostis apostando numa reforma do clero pela brandura, aconselhando Roma a que não levantasse o báculo em guerra contra Lutero. Aquela altura porém, por detrás do monge doutor vibrava indignada uma Alemanha quase que inteira em pé de guerra, furiosa contra o Pontífice de Roma. Nos decênios seguintes à insubmissão de Lutero, protestantes e católicos ensangüentaram a Europa com suas guerras a pretexto da fé. Todavia, mais recentemente, aproveitando-se do clima geral de concórdia existente na Cristandade por ocasião da passagem do Jubileu de Cristo, Católicos e Luteranos, após cinco séculos de turras e troca de desaforos, decidiram reconciliar-se assinando na mesma Augsburg, o epicentro da vulcânica reforma de 1517, a Declaração Conjunta Sobre a Doutrina da Justificação, harmonizando suas concepções sobre a Salvação, uma das causas teológicas de toda a discórdia anterior. É uma homenagem tardia a Erasmo. Porque não o ouviram então?

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O cristianismo e o sexo

"Não, a felicidade não é um corpo e por isso não se vê com os olhos." - Santo Agostinho "Confissões", 397-400 d.C.
Um pouco antes de completar o penúltimo livro da suas "Confissões", terminado ao redor do ano 400, S.Agostinho implorou a Deus que se fosse ele o encarregado de escrever o Gênesis como anteriormente o fora Moisés, desejaria "receber de Vós uma tal arte de expressão que...até aqueles que não podem compreender como é que Deus cria... acreditassem nas minhas palavras." Foi atendido. Deus foi pródigo com ele, mas sovina com os demais escritores cristãos, tornando-o o maior e quase o único grande prosador do cristianismo até o surgimento de Pascal e do Padre Vieira, treze séculos depois. Não satisfeito com o dom das letras e com uma espantosa facilidade de comunicação, que o colocou entre os imortais da literatura mundial, deu início, logo depois, provavelmente em 401, à redação de uma leitura própria, muito sua, do real significado do Gênesis - De Genesi ad Litteram - na qual ainda demorou-se uns quinze anos. O que já havia esboçado nas "Confissões" então tomou corpo. Fazia tempo que os primeiros evangelistas vinham hostilizando o sexo. Mas foi com S.Agostinho que a questão tornou-se dominante, reveladora da sua idéia do homem e da humanidade da qual o cristianismo, até os nossos dias, teima em não abandonar. O horror ao sexo Impressionados pela liberalidade sexual e vocação orgiástica da elite romana, ainda majoritariamente não-cristã, os apologistas daqueles primeiros tempos fizeram questão de manter uma marcada distância em relação aos deuses e ritos pagãos e, inspirados pelos solitários "homens do deserto", eremitas e anacoretas, inauguraram uma política de completo repúdio ao sexo. Esse radicalismo - enfatizado pelas epistolas de Paulinas - acentuou-se pela prática da abstinência carnal, transformando-se num atrativo tão forte para novos seguidores como o martírio dos crentes nas arenas romanas. Enquanto estes davam suas entranhas para as feras devorarem, outros abandonavam as práticas sexuais para sempre: o martírio e a castidade eram faces diferentes da mesma moeda. Havia muito simbolismo atrás disso tudo. Não só a busca da perfeição atrás do "coração simples", mas uma nova visão do ser humano, na qual ele somente poderia manter-se na frescura com que saiu das mãos do criador permanecendo puro ou intocado. Sendo igualmente - por meio da propaganda do ascetismo - uma forma peculiar de manifestar abertamente seu protesto e desprezo pela época em que viviam, por sua excessiva concuspisciencia sua impiedade, libertinagem e crueldade pagã. O sexo para o cristão O problema que enfrentavam os pregadores da nova fé era em relação ao casamento: como conseguir manter um dos princípios básicos do cristianismo aceitos na forma do "crescei e multiplicai-vos" sem considerar a atração ou o prazer sexual? Tentado resolver esse conflito S. Agostinho, bispo de Hipona, no norte da África, terminou por gerar sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal. Donde viria, indagava ele, essa miséria que nos cerca, essa corrupção, essas heresias e a crassa maldade? Existia na sociedade, concluiu ele, uma mancha inapagável motivada pelo pecado original advindo do impulso sexual, que atormentava o homem até a morte. Essa era a maldição que acompanhava Adão e Eva e seus descendentes desde a queda do Paraíso. Para S.Agostinho, na situação paradisíaca não havia tensão entre o impulso e o ato sexual. Foi a partir da danação dos nossos pais primevos que essa desgraça começou. Parecia-lhe que o casamento, a relação sexual e o Paraíso eram tão incompatíveis como o Paraíso e a Morte. Desse modo, a sexualidade permanecia como o indicador da queda do homem, do seu triste declínio da anterior situação angelical, fazendo com que deslizasse para baixo, para a natureza física, e desta para a sepultura. Esta certo que os casais deveriam preocupar-se em gestar filhos, mas que o fizessem conscientes de estavam cometendo um ato de rebaixamento. Era algo necessário mas humilhante, que deveria ser praticado sob os acordes de uma intensa melancolia. O sexo como culpa Dessa forma, Agostinho introduziu entre os cristãos uma definitiva nódoa de consciência culpada quando faziam sexo ou tinham sentimentos e impulsos prazerosos. Trouxe para dentro dos lares e para os leitos conjugais uma sombra de coisa maligna, de impureza, perversão e vício, que arruinou a vida de incontáveis casais, para quem o sexo passou a ser associado a um "presente do demônio", ou um discordium malum, um princípio de discórdia alojado no interior de cada um desde a Queda. Opôs definitivamente a Carne a Deus! Talvez uma das maneiras de entender-se essa obsessão dele, de Santo Agostinho, em denunciar a sexualidade deve-se a ele ter sido um renegado do erotismo. Como todo abjurado das suas paixões sensuais pregressas, votou intenso ódio ao que, no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado nele tanta energia. Ele mesmo não negou ter sido dominado na sua juventude por uma intensa voluptuosidade, pela lasciva, ao ponto de que, em determinado momento, quando pediu a Deus que o fizesse casto, acrescentou... "mas não ainda!" E foi mais longe ainda. A presença do impulso sexual nos seres humanos era a marca da corrupção da nossa natureza. Tratava-se de uma perversidade intrínseca que, tal uma erva daninha espalhada numa pradaria, jamais poderia ser removida de todo. Santo Agostinho explicava a maldade como resultante desse tumor sensual e dissoluto existente em todos nós, provocador de uma desordem crônica nas nossas relações, que o tempo inteiro nos perturba com suas poluções, com seus sonhos inconvenientes, incestuosos, inconfessáveis. Não havia dieta ou jejum que nos salvasse ou nos libertasse dele, acompanhando-nos até na velhice e no encarquilhamento, como uma cicatriz não sarada do nosso passado libidinoso e pecador. Juliano contesta Agostinho Foi contra isso que mobilizou-se seu rival, Juliano, bispo de Eclanum que, depois de 418, embrenhou-se numa ruidosa polêmica com ele. Juliano mostrou-se indignado com as acusações de S.Agostinho ao sexo e ao casamento. Não podia conceber, explicou ele, que o ato necessário a nossa reprodução fosse algo demoníaco ou ter que ser praticado sobre o véu da vergonha e do enxovalhamento. Afinal, eram "impulsos do nosso corpos feitos por Deus". O prazer era necessário à reprodução, era a força que fundia as sementes masculinas e femininas num amplo calor genitalis, útil a que ocorresse uma conjunção saudável e feliz. Nada poderia haver de sinistro numa relação sexual bem realizada e completa. Bem ao contrário, viu-a natural, saudável, como "o instrumento de eleição de qualquer casamento.... merecedor de censura apenas em seus excessos." S. Agostinho em várias cartas da sua imensa correspondência tentou amenizar as objeções de Juliano, procurando mostrar-se menos radical do que nos seus escritos anteriores. Porém, sabe-se que, para a posteridade, foi essa sua visão trágica da existência - de sermos os infelizes portadores perpétuos do pecado capital - (de origem paulina-agostiniana), que irá marcar de uma maneira definitiva o cristianismo. E o sexo ficou, dali para sempre, visto como uma transgressão, como uma obscenidade... quiçá um ardil satânico para atormentar infinitamente a existência humana, até pelo menos o surgimento da psicanálise de Sigmund Freud, no século XX, que aboliu, pelos menos entre as elites ocidentais, com a idéia do pecado. A fonte da polêmica Essa polêmica encontra-se detalhada num dos capítulos, o 19º, do notável livro "Corpo e Sociedade" (The Body and Society", Jorge Zahar Editores, RJ.1990) de Peter Brown, um dos maiores historiadores da era clássica e professor da Universidade de Princetown, sendo o exposto acima apenas uma reduzida amostra da magistral reconstrução feita por ele da polêmica sobre a sexualidade nos tempos do cristianismo primitivo, visto pelos seus apóstolos e seguidores, como Tertuliano, Orígenes, Cipriano, Mani e João Clímaco, Ambrósio, Jerônimo e tantos outros.

Dante Alighieri como político

"Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália conheça, depois de tanto tempo, um seu redentor".MAQUIAVEL O Príncipe
Dante, morto em 1321, teve sua vida profundamente alterada em razão das questões políticas que dividiam sua Florença natal entre as duas facções do Partido Guelfo: os Neri (os negros, ou guelfos puros) e os Bianchi (os brancos, ou “gibelinos” escondidos), mais moderados, a qual ele pertencia. Derrotado, foi obrigado a passar os seus últimos vinte anos de vida vagando por outras cidade italianas, provando o amargo pão do exílio, percebendo então quão nociva era para a sua amada e infeliz Itália, o fato da península não ser unida politicamente. Assim, entende-se o seu clamor a favor de um imperador que viesse colocar a casa em ordem, mesmo que fosse um estrangeiro. Uma carta de Dante Mal pondo os pés na Itália, o imperador Henrique VII recebeu uma carta, curta mas bajulatória, datada de 18 de abril de 1311. Nela o autor, um poeta esplêndido, depois de chamá-lo de sucessor de César e de Augusto e, em versos, comentar que "o verdadeiro limite do seu império era o oceano e o limite da sua fama as estrelas", tomava a liberdade de censurar o monarca na sua demora em pôr sítio a Florença. A missiva era de Dante Alighieri que, quase sempre, se assinava como "florentino injustamente desterrado", que se encontrava banido da sua cidade natal desde 1302. Seu partido, o partido branco, havia sido expulso pelo partido rival, dos negros, o partido guelfo, favorável ao poder papal e hostil ao do imperador. Desgostoso com o longo exílio imposto que, como disse no célebre verso do Paraíso: "Tu proverai si come sa di sale lo pane altrui, e come è duro calle lo scendere e I'salir per altrui scale" (XVIII, 58), isto é "onde se prova como é salgado o pão alheio e como é duro o caminho de subir e descer pelas escadas dos outros," Dante apressava o imperador. Que deixasse de lado o cerco às pequenas cidades rebeladas da Lombardia e se lançasse logo sobre aquela que, às ocultas, fomentava insubordinação - "a víbora que morde as entranhas da própria mãe" - "a perversa e ímpia Mirra" - a cidade de Florença. Dante e os guelfos brancos, “gibelinos” escondidos, como se chamavam os seguidores do poder imperial, eram uns reacionários empedernidos, representavam, segundo Carducci, "il popolo vecchio," ruínas sócio-humanas do velho patriciado dos tempos antigos que ainda sobreviviam espalhados pela Itália como se Roma não tivesse sucumbido. Como conseqüência, não aceitavam a hegemonia do Papa sobre as cidades italianas, afirmando que as intromissões da Cúria no universo da política não passavam de puras usurpações. Estatocratas versus Teocratas Para eles, para os Gibelinos, os imperadores bárbaros do Sacro Império Romano-Germano, fundado por Otão I, o Grande, no século X, eram os legítimos herdeiros da Roma Augusta. Povoada por microestados em que condes, duques, tiranos e condottieri infernizavam a vida um do outro em incontáveis guerras e intermináveis conspirações regadas a mortíferos venenos, a Itália suspirava por tranqüilidade. Le antiche famigle apostavam num príncipe vindo de fora para equilibrar ou contrabalançar a aliança do Sumo Pontífice com o povo miúdo e com a independência comunal. Um reforço contra o desaforamento da plebe. A favor da sua doutrina, da preeminência imperial sobre a sacerdotal. Dante começou a redigir um tratado em latim, Da Monarquia, provavelmente escrito entre 1310-14, onde lembrava os seguidores do poder teocrático que "mesmo Cristo, em frente a Pilatos, renunciou ao dito regime temporal: `Meu reino - afirmou - não é deste mundo ... meu reino não é daqui'." No final conclama a que o César imperial e o Pedro clerical guardem reverência um para com o outro e, ambos, para "Aquele que é o único governador de todas as coisas, espirituais e temporais". Tudo indica que Dante não ficou muito satisfeito com esta solução, pois, enquanto redigia a Comédia, terminou por povoar vários círculos do Inferno com papas, colocando-os em situações terrivelmente constrangedoras. Mas os apelos do poeta ao Imperador de nada serviram. Henrique VII deslocou-se até às portas de Florença, mas desistiu de assediá-la. Pouco tempo depois morria subitamente, em 1313. Dante expirou no exílio, em 1321, e a única represália que tomou contra seus rivais, que ainda dominavam Florença, foi negar que seus despojos fosse sepultados na sua cidade de origem. Maquiavel na estrada de Dante Dois séculos depois, outro florentino, também desterrado, havia perdido as esperanças em qualquer príncipe estrangeiro. Para Maquiavel, a Itália estava sendo sistematicamente pilhada por reis franceses e espanhóis, conquistadores transalpinos que haviam submetido a própria Florença ao saque. Tal como nos tempos do ilustre poeta toscano, o país se encontrava dilacerado em suas lutas fratricidas, alimentadas pela rivalidade empresarial e comercial das cidades-estado, que a presença estrangeira acirrava ainda mais. As expectativas de Maquiavel voltavam-se para um tirano italiano, qualquer um que fosse, desde que pusesse fim à anarquia e "ao bárbaro domínio" dos reis transalpinos. No capítulo final de O Príncipe, de 1512, afirma que a Itália merecia "um seu redentor." Mas a península ainda teve que esperar muitos séculos para alcançar sua unidade. Quando o fez, no século XIX, (a unidade Italiana foi celebrada em 1861) não foi por nenhum imperador gótico, como esperava Dante, ou por um tirano acima da lei, dotado de vontade de poder, como vaticinava Maquiavel, mas sim pelas mãos de um gorducho, insosso mas ardiloso, como Cavour.

Calvino contra Obama

Deus eterno, que é conhecedor do escondido ...sabe absolutamente de antemão que os bons haverão de ser bons por sua graça e ... haverão de receber os prêmios eternos e previu que os maus haveriam de ser maus por sua própria malícia e haveria de condená-los com o castigo eterno da justiça.’(Concilio de Valence, 855)
O presidente Barak Obana colocou como uma das prioridades do seu governo fazer aprovar o Medical Care, um sistema de previdência que cubra os gastos com a saúde da parte mais pobre da população norte-americana. Todavia, mesmo sendo os Estados Unidos a única nação rica do mundo destituída de um sistema previdenciário publico, continua havendo uma enorme oposição ao seu projeto. Qual seria o motivo disto? A doutrina calvinista da predestinação Quem deveria habitar o Reino dos Céus? Para Cristo a resposta era clara: ‘os pobres de espírito’, os até então deserdados da terra veriam que as portas celestiais se abririam para eles desde que, entre outros quesitos, reconhecesse a indiscutível soberania do Senhor. Os ricos, ao revés, estavam de antemão banidos. Como ele demonstrou na parábola do camelo e da agulha era impossível a alguém endinheirado chegar ao patamar divino. Foi exatamente contra isto que Jean Calvino, o famoso reformador de Genebra – cidade suíça na qual instaurou uma republica teocrática em 1536 e cujo quinto centenário do nascimento registrou-se neste ano de 2009 - se revoltou. Não lhe pareceu lógico que Deus concedesse a um individuo em vida todas as facilidade possíveis ( bom posicionamento social, sucesso profissional, excelência matrimonial e bem estar material) para depois jogar a alma dele nas profundezas perversas do inferno, condenando-a a suplícios atrozes. E como aceitar como pertinente a esta estranha lógica divina que indivíduos que nada contribuíam para a riqueza social, que em geral eram um estorvo, materialmente miseráveis vivendo de esmolas e da caridade pública, intelectualmente limitados, fossem herdar a melhor parte do céu? Havia algo de errado nesta proposição vinda dos Evangelhos. Os ricos e bem situados é quem são os eleitos Para Calvino dava-se o contrário. Pela sua Doutrina da Predestinação, inserida no seu ‘Instituto da Religião Cristã’, livro que se tornou o catecismo do calvinismo militante, também de 1536, estar bem na vida, próspero e feliz, já era um sinal evidente que Deus estava reservando para aquela pessoa uma situação melhor ainda no Além. Na teologia de Calvino invertia-se o propósito de Jesus Cristo: quem alcançava o Reino dos Céus eram os bem situados. Quando os ‘Pais Fundadores’ dos Estados Unidos da América emigraram para o Novo Mundo nos começos do século XVII, trouxeram com eles a Doutrina da Predestinação de Calvino e a consequente concepção da divisão da sociedade entre os winners ( os vencedores, isto é, os predestinado por Deus) e os losers (os perdedores, os que estavam marcados para o fracasso). Para eles a pobreza era um estigma, um sinal evidente que o Senhor havia abandonado os mal-sucedidos na vida, sendo um absurdo supor as almas deles, dos ‘perdedores’, bem acomodadas no Outro Mundo. De fato, o verdadeiro lugar deles estava reservado no inferno. Por igual, se soma na resistência de boa parte da sociedade contra a extensão da previdência aos pobres a inexistência nos Estados Unidos de um partido social-democrata no molde dos europeus. Papel que por ora é representado palidamente pelo Partido Democrata, o partido do presidente Obama, mas sensível às causas sociais e aos apelos de igualdade.