"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

sábado, 3 de dezembro de 2011

ROÇAS DE CRIMINALIDADE E SEARAS DE DIREITOS

A tomada da Rocinha no Rio de Janeiro, a maior favela da América Latina, por forças policiais, apesar de sinalizar o resgate do escopo da cidadania para uma comunidade de 70 mil habitantes, não afasta a sensação de que até mesmo eventos de alta significação no calendário cívico são usados como espetáculo midiático-político, coisa comum nesses tempos em que governantes procuram tirar proveito de vitórias sobre o mal.
Todas as loas para o secretário de segurança, o delegado federal José Mariano Beltrame, cujas atitudes e expressão parcimoniosa diferem do adjetivo grandiloquente de seus superiores, mesmo constatando-se que a anunciada “batalha da ocupação”, por dias seguidos, tenha ensejado a fuga da bandidagem que imperava na favela.
Assim, o aparato de guerra, os blindados, o desfile de soldados com armamentos pesados e o arsenal apreendido entram na paisagem como a estética de apoio à semântica do “discurso da libertação” de uma população que, há décadas, era obrigada a conviver com gangues e drogas. Situação que, vale registrar, tinha o endosso de grupos policiais que, hoje, emergem como heróis. A estratégia de ocupação das favelas cariocas para combate direto ao tráfico de drogas escancara uma verdade: a chave da política abre todas as portas. Do bem e do mal.
É sabido que, na década de 80 (l983/87), sob o governo de viés populista de Leonel Brizola, desenvolveu-se um processo de favelização no Rio de Janeiro, caracterizado pela proibição de deslocamento de famílias dos morros e cessão de espaços públicos para construções irregulares.
Embalado em romantismo, Brizola acedeu ao apelo de comunidades que se queixavam da violência policial. Proibiu incursões das forças policiais nas favelas, o que acabou expandindo a criminalidade. Dizia-se que negociava o apoio de criminosos que atuavam como cabos eleitorais, dando-lhes, em retribuição, autonomia para fazer suas operações. Corria a versão de acordo pelo qual os bandidos podiam agir livremente em seus territórios, contanto que não descessem dos morros para a cidade. Agora, a decisão política é de fazer valer a lei nos antros da bandidagem, a ação mais emblemática do atual governo do Rio, e que redundará em ganhos políticos. A bandeira está hasteada. Cada Unidade de Polícia Pacificadora (UPP)- a da Rocinha é a 19ª – significa um eixo de paz fincado onde antes se exibia o fuzil.
É cedo para antecipar os impactos da ocupação das favelas cariocas. A expulsão de máfias criminosas gera, em um primeiro momento, descontração geral.
As comunidades vêem e sentem potentia, o poder físico do Estado, conceito que os antigos romanos distinguiam do poder legal, potestas, e do poder político, auctoritas.
Passada a euforia, as populações passam a cobrar mais que força bruta.
Ou seja, rompidos os paredões do medo, chega a vez das demandas essenciais a cargo do Estado. O ponto de partida é o resgate dos direitos civis, a partir do direito à propriedade (regularização fundiária), passando pelo acesso à justiça (instâncias judiciárias como juizados de pequenas causas), chegando aos serviços básicos – postos de saúde, saneamento básico, coleta de lixo, energia, comunicações, educação – base do edifício da cidadania. Como se infere, a gestão passa a ser ferramenta central para o bem estar comunitário. Só no Rio de Janeiro, contam-se 197 programas destinados às favelas, dado que mostra a dispersão e a ausência de prioridades e urgências.
Sua integração resultaria em maior eficácia.
O planejamento, por sua vez, envolve decisões de natureza política: como restabelecer o Estado legal dentro de um espaço dominado pela barbárie? Por onde começar? Leis vigentes – que regulam as atividades comerciais, por exemplo– devem ser aplicadas com rigor nos territórios resgatados ou flexibilidade deve ser adotada, particularmente nos campos da burocracia e dos impostos?
Sem atividades produtivas e comerciais que possam absorver razoável parcela da mão de obra local, serão abertas janelas da ilegalidade, dentre as quais está o tráfico de drogas, chegando-se, assim, ao circulo vicioso da corrupção. Eis aqui um aspecto nevrálgico da estratégia de reconquista de espaços dominados pela bandidagem: como eliminar os focos da corrupção endêmica? Como evitar corrupção no aparelho policial?
Sabe-se da dificuldade de um soldado de primeira classe propiciar uma vida decente à sua família ganhando um soldo em torno de R$ 1.200,00. Encontra a solução nos trocados fazendo bicos, porta aberta para trafegar na ilegalidade. A corrupção no seio policial tem outras razões que não apenas parcos proventos. (Aliás, a PEC 300, que trata dos salários das polícias, seria um bom começo para a reestruturação da política de remuneração das forças policiais). A renovação de quadros, ao lado de sólida formação na carreira e melhoria das condições de trabalho, reforçaria o desempenho cívico dos batalhões. Uma comunidade amparada pelo Estado, inserida no mercado de trabalho, mostrando jovens engajados em projetos educacionais, desvaneceria o ímpeto do crime.
Em suma, a harmonia social exige raízes fincadas na seara dos direitos civis. A recíproca é verdadeira. A corrupção nasce em terrenos baldios do Estado ausente. Se a comunidade não dispuser dos braços do Estado formal para se socorrer, procurará outros meios de salvaguarda, dentre eles milícias e entidades de intermediação da pobreza, dentre as quais multiplicam-se organizações de clara orientação política, que agem como braços eleitorais de perfis mancomunados com as máfias.
Eis aí mais uma frente a ser depurada. Entidades que semeiam o bem devem reforçar a ação moral de ajuda às populações e denunciar enclaves criminosos. Por último, o alerta: todo cuidado é pouco para evitar que a experiência do Rio de Janeiro no mundo das favelas seja contaminada pelo vírus do oportunismo político. Ela pode ser um exemplo a ser seguido em outras rocinhas da bandidagem. Aqui e alhures.

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