"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A OUTRA CANUDOS

Em Caldeirão, no Ceará, 700 pessoas foram mortas pelo Exército em 1937, acusadas de comunismo e fanatismo. O centenário da Guerra de Canudos, em 1997, renovou as atenções dedicadas ao massacre cometido contra os seguidores do beato Antônio Conselheiro, mas um outro episódio, com características semelhantes, continua sendo tratado de forma marginal pela historiografia brasileira. Trata-se da história de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, um arraial localizado no município de Crato (516 km ao sul de Fortaleza), que chegou a reunir 2.000 pessoas sob a liderança do beato José Lourenço, um fiel seguidor do padre Cícero Romão Batista. Assim como Canudos, Caldeirão foi marcado pelo catolicismo popular e a produção coletiva. Fundado em 1926, Caldeirão cresceu rapidamente, incomodando a cúpula da Igreja Católica e as oligarquias da região, que passaram a exigir o fim do que chamavam de "antro de fanáticos e comunistas”. A destruição final de Caldeirão ocorreu em 1937, 40 anos depois da de Canudos, num bombardeio que usou aviões de guerra e provocou a morte de cerca de 700 pessoas. Considerado o maior massacre da história do Ceará, Caldeirão foi assunto proibido durante muitos anos na região do Cariri, na qual está situada Crato, e até hoje não consta nos livros didáticos da rede oficial de ensino do Ceará. Fugindo da fome A gênese da experiência desenvolvida em Caldeirão coincidiu com o apocalipse de Canudos, em l897. Naquele ano, o padre Cícero destacou José Lourenço para cuidar da fazenda Baixa Dantas, de propriedade de seu amigo João Brito. Negro, forte e com grande disposição para o trabalho, Lourenço ganhara a confiança do padre Cícero pelas suas demonstrações de fé. Paraibano de Pilão de Dentro, Lourenço chegara a Juazeiro em 1890, atraído pelo prestígio místico de padre Cícero e porque considerava a cidade o melhor local para desenvolver práticas de penitência. Em Baixa Dantas, padre Cícero acolheu dezenas de famílias de fiéis que procuravam-no, fugindo da fome do sertão. Sob a liderança de Lourenço, o sítio passou a ser um celeiro de produção agrícola. Alternando sessões diárias de reza com jornadas de trabalho em regime de mutirão, os fiéis transformaram o lugar, diversificando a produção – o que destoava da monocultura da cana-de-açúcar predominante na região. Na década de 20, padre Cícero sofreu perseguição feroz de seus inimigos políticos e religiosos. Floro Bartolomeu, considerado o braço político do padre, era acusado na Câmara Federal de ser o deputado dos “fanáticos e cangaceiro". Querendo acabar com essa fama, Bartolomeu escolheu Lourenço como uma espécie de bode expiatório. Em 1922, mandou prendê-lo e divulgou que Lourenço era um fanático que adotava um animal corno objeto de culto religioso. O animal em questão era um boi, chamado de “Mansinho”, que havia sido doado ao padre Cícero por Delmiro Gouveia. Lourenço era acusado de atribuir milagres à urina e às fezes do boi. Preso, Lourenço foi obrigado a comer da carne de “Mansinho”. A humilhação e os sofrimentos da prisão criaram uma mística em torno de Lourenço, que viu crescer seu carisma de beato junto ao religioso povo da região. “Trabalhar e rezar” Lourenço ainda conseguiu retornar para Baixa Dantas, mas, em 1926, foi obrigado a deixar o local, pois o proprietário pediu as terras de volta. No mesmo ano, padre Cícero encaminhou Lourenço e seus seguidores ao sítio Caldeirão. Distante 20 km de Crato, Caldeirão estava encravado na região mais árida da serra do Araripe, numa área de 900 hectares. Neste sítio, Lourenço fundou a irmandade de Santa Cruz do Deserto, uma seita de penitentes que via no trabalho uma forma de salvar a alma. Com o lema “Trabalhar e rezar”, Lourenço organizou Caldeirão baseando-se em uma lógica coletivista, distribuindo a produção de acordo com as necessidades de cada fiel. A experiência transformou a paisagem do local, que em pouco tempo passou a abastecer Crato e Juazeiro com produtos agrícolas. Na grande seca de 1932, quando cerca de 40 mil pessoas se refugiaram num campo de concentração de flagelados armado pelo governo federal em Crato, a fartura do Caldeirão se tornou um referencial e o prestígio de Lourenço aumentou. A morte do padre Cícero, em 1934, serviu para detonar a ira da hierarquia da Igreja Católica e dos proprietários rurais contra Caldeirão. Os padres temiam que Lourenço canalizasse o prestígio de padre Cícero. Os latifundiários viam contingentes da sua mão-de-obra escoando para Caldeirão. Em artigos de jornais e sermões, pregavam que Caldeirão era uma reedição de Canudos, com Lourenço no papel de Conselheiro e os monarquistas substituídos por comunistas. No dia 9 de setembro de 1936, um batalhão liderado pelo chefe da Segurança Pública do Ceará, Cordeiro de Farias Neto, chegou ao Caldeirão com a missão de destrui-lo. Lourenço fugiu antes da chegada dos “macacos” (policiais). Seguindo a orientação pacifista de Lourenço, os fiéis não resistiram. Mesmo assim, a polícia pôs fogo nas 400 casas do arraial e confiscou todos os bens da coletividade. Os fiéis se refugiaram nas cercanias de Caldeirão. No ano seguinte, os fiéis dividiram-se em duas facções. A liderada por Lourenço defendia a volta negociada a Caldeirão e recorreu à Justiça para exigir uma indenização pelas benfeitorias destruídas. O outro grupo, liderado por Severino Tavares, pregava a formação de um braço armado para Caldeirão e a retomada do sítio pela força. Em maio de 1937, os seguidores de Tavares mataram o capitão da Polícia Militar José Bezerra e quatro policiais num conflito. A vingança da morte de Bezerra ganhou o aval do então ministro da Guerra, Eurico Dutra, que enviou um batalhão de 200 homens e três aviões com a missão de destruir o que sobrou de Caldeirão. O bombardeio de Caldeirão ficou registrado como a primeira ação da Aeronáutica contra populações civis no país. O saldo foi de 200 mortos, na versão oficial, mas o próprio comandante da operação admitiu depois que morreram 700 pessoas. Contrário ao confronto armado, Lourenço refugiou-se no sítio União, em Exu (PE), onde morreu de peste bubônica, no dia 12 de fevereiro de 1946. O seu corpo foi enterrado ao lado do túmulo do padre Cícero, em Juazeiro, depois de ter sido conduzido por uma multidão pela serra do Araripe, percorrendo a pé os 82 quilômetros que separam as duas cidades. O enterro de Lourenço aconteceu à revelia da Igreja Católica, que se recusou a oficiar o ritual de despedida. Atualmente, o túmulo de Lourenço é um dos mais freqüentados pelos milhares de romeiros fiéis de padre Cícero que visitam Juazeiro

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