"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A Arqueologia da Cultura Ocidental

O filósofo Michel Foucault, historiador das idéias, num ensaio famoso, procurando as raízes primeiras do conhecimento moderno, praticou um exercício que denominou de L'archeologie du savoir, a ‘arqueologia do saber’, identificando no Renascimento as fontes originais das ciências sociais como hoje elas são conhecidas. Se algum outro se atrevesse a uma escavação ainda mais profunda e ampla, buscando os umbrais da cultura ocidental, o que ele encontraria? Em qual arquivo arcaico estariam as provas e as pistas mais remotas das facetas desta cultura que ganhou o mundo? As grandes etapas culturais Em primeiro lugar, antes da procura pelas pistas mais remotas, é interessante observar que a cultura ocidental, ao longo dos seus três mil anos de existência, passou por três grandes fases, ou Períodos, muito distintos entre si: o do Paganismo, o do Cristianismo e o do Iluminismo, sob o qual vivemos no presente. O Paganismo: a) Tem, em sua primeira etapa, partindo-se do ano mil a.C., como ponto irradiador, a cidade de Atenas (desde o período Clássico), situada na Grécia continental e, depois, a cidade de Alexandria (até ser submetida a Roma no século I a.C.), localizada na margem mediterrânea do Egito. b) A sua segunda fase concentra-se na cidade de Roma, tornada império, até a conversão de Constantino, em 313. O Cristianismo: a) Em sua primeira fase, dividiu-se entre Roma e Constantinopla, tendo ambas a cidade de Jerusalém como força simbólica inspiradora. O livro guia torna-se a Bíblia. b) Com a divisão da Igreja Cristã (1054), em Igreja Ortodoxa (ou Bizantina) e Igreja Católica, Roma assume a função absoluta de capital da cristandade ocidental, enquanto Bizâncio e, depois Moscou, assumem a representação oriental do cristianismo. c) A partir do século XIV, a cidade de Florença ocupa o lugar de Roma como centro irradiador da cultura ocidental. Na Europa do norte este papel passa a ser exercido por Paris. O Iluminismo: a) Superando a longa fase do cristianismo, o Movimento Iluminista, no século XVIII, tem seu epicentro concentrado entre Paris e Londres, capitais que passam a liderar o desenvolvimento científico e a laicização da sociedade em geral, emancipando a cultura ocidental da influência das igrejas cristãs, acelerada desde a Revolução Francesa de 1789. b) Com o declínio da Europa, ao longo do século XX, o centro dinâmico, a partir de 1945, torna-se os Estados Unidos da América. A Gênese do Ocidente Nesta busca pela gênese da cultura ocidental, certamente poucos discordariam de que sua origem mais remota encontra-se na bacia do Mar Egeu, área situada no Mediterrâneo Oriental, entre a Europa Oriental e a Ásia Menor. Por igual, não rejeitariam a conclusão de que os três principais elementos constitutivos dela encontram-se na Grécia Antiga. Numa ordem de importância, o primeiro destes elementos certamente foi o surgimento da escrita, no século IX a.C., com a adoção do alfabeto grego, derivado do fenício, ao qual os seguidores de Zeus apenas tiveram o trabalho de acrescentar as vogais (‘alfa’, ‘épsilon’, ‘iota’. ‘ômicron’, ‘upsilon’, num total de 27 letras). O segundo destes elementos pode ser atribuído à arquitetura cretense, mais precisamente ao Palácio de Cnossos, do mitológico rei Minos de Creta, erguido ao redor do século XIX a.C., que teria servido como parâmetro para a maioria das construções palacianas feitas pelos gregos ao longo da sua história. As escavações em Micenas mostraram que o reino de Agamemnon seguia as mesmas diretrizes estilísticas do fabuloso Minos, não se duvidando que a influência cretense tenha se estendido por grande parte da Grécia continental. Creta também foi a principal usina dos mitos gregos, a começar pela lenda do rei Minos (filho de Zeus e de Europa, princesa fenícia raptada pelo deus grego), que engendrou o Minotauro e a tauromaquia, que séculos depois iria ressurgir nas touradas da península Ibérica. A façanha do fortíssimo Teseu, príncipe de Atenas, percorrendo o labirinto palaciano de Cnossos com o auxílio do fio de Ariadne para matar o feroz touro, já foi indicativa de que a cultura da Grécia continental começava a superar à da Grécia insular. O terceiro em importância certamente foi o legado de Homero com seus dois enormes poemas épicos, com quase 28 mil versos, a ‘Ilíada’ e a ‘Odisseia’, que teriam sido escritos ao redor do século VIII a.C.. Inspirando-se nestas duas obras é que a maioria dos poetas ocidentais, direta ou indiretamente, formularam seus versos. Uma linhagem que vem desde Virgílio, passando por Dante, Tasso e Camões, chegando, quase três mil anos depois, ao Ulisses de James Joyce e ao ‘Omeros’ de Derek Walcott, poema publicado em 1990, no qual ressurgem, em pleno mar do Caribe, os personagens de Aquiles, Heitor, Filoctetes e Helena. Ramificações Da escrita grega original, a arcado-cipriota, subdividida entre o alfabeto calcídico, ou ocidental, e o alfabeto jônico, ou oriental, originaram-se duas outras escritas que fariam história: o latim e o russo. O alfabeto latino certamente derivou do grego ocidental por força da presença das colônias helênicas que se espalharam pelo sul da Itália (Magna Grécia) e pela ilha da Sicília, enquanto o russo derivou da ação do monge bizantino Cirilo, o introdutor do cristianismo na Rússia, no século IX (alfabeto, com 43 letras, que se difundiu para os povos como o mongol, o cazaque, o uzbeque, o quirguiz e o tadjique, entre outros da Europa Oriental, do Cáucaso e da Sibéria). O alfabeto latino, por sua vez, graças às conquistas do Império Romano, terminou sendo adotado tanto pelas nações celtas como pelos povos germânicos da Europa central que conheceram a ocupação direta das legiões, expandindo-se, daí, para a Inglaterra e Escandinávia. Como efeito direto disto, surgiram então os idiomas neolatinos (português, espanhol, italiano, francês, romeno e catalão). O sucesso do alfabeto grego e a facilidade do seu aprendizado e difusão deveram-se ao fato de ele derivar dos interesses comerciais (o fenício, seu criador, era o mais renomado negociante da Antiguidade) e não da casta sacerdotal ou da burocracia real, como foi o caso dos hieróglifos egípcios ou das antigas escritas cuneiformes dos sumérios. A simplificação e a funcionalidade dele impulsionaram a alfabetização de uma parte considerável da população grega, que muito fez pela ilustração geral da população da Hélade. O Palácio de Cnossos, com algumas alterações, prestou-se como arquétipo dos edifícios públicos da Grécia Antiga, todos sustentados por colunas, como a morada de Minos. O tipo de pintura mural interna por igual se viu repetida nos demais palácios e mesmo nos templos consagrados aos deuses olímpicos e outros edifícios públicos de relevo. A Geografia da Cultura Ocidental Partindo-se por primeiro da Bacia do Mar Egeu, dividido em sua formação insular (Creta) e outra continental (a Ática e o Peloponeso), gerando a cultura grega (subdividida em fase heroica, arcaica, clássica e helenística) – que se tornou a maior matriz inspiradora – alcança-se, em seguida, a Itália onde se desenvolveu a cultura romana (que herdou, entre outras coisas, o alfabeto, a mitologia, a filosofia e a estética grega). Num outro momento, devido à expansão do Império Romano por largas partes da Europa celta e germânica, entre os séculos II a.C. e IV, alargou-se o círculo da cultura ocidental, englobando as regiões da Ibéria (Espanha-Portugal), da Gália (França), da Germânia (Alemanha Ocidental) e da Bretanha (Inglaterra). Com as invasões germânicas dos séculos IV-VI, povos bárbaros, que viviam afastados da influência ocidental (Alamanos, Bávaros, Godos, Suevos, Vândalos, Burgúndios, Francos, Lombardos, Anglo-Saxões, Teutões) se converteram aos valores do Ocidente (o uso do latim ou do alfabeto latino e a adesão à religião cristã). Expansão pelo ultramar Esta situação se estendeu por mil anos até que se deram os Grandes Descobrimentos, a partir do final do século XV, ocasião em que a cultura ocidental (principalmente a ibérica e a anglo-saxã) lançou raízes no Novo Mundo, agregando a si as Américas numa primeira etapa da Globalização. O passo seguinte desta propagação ocorreu na época do Imperialismo Colonialista, quando extensas regiões da África, da Ásia e da Oceania caíram sob o controle de metrópoles ocidentais (Grã-Bretanha, França, Bélgica, Holanda, Itália). Métodos administrativos e organização do estado se somaram à adesão dos nativos aos idiomas ocidentais. A esta altura, a cultura ocidental se fazia presente nos três grandes países da Ásia (Índia, China e Japão). Com as duas Guerras Mundiais, a de 1914-18 e a de 1939-45, que abalaram profundamente a hegemonia europeia sobre o planeta, os Estados Unidos e a Rússia (semiconvertida ao ideário ocidental desde Pedro o Grande), assumiram a liderança mundial, ofuscando gradativamente a importância da Europa Ocidental. Na etapa em que se vive presentemente, o processo de Globalização se intensificou com a ampliação do capitalismo ocidental, que lançou uma rede ao redor do mundo, colhendo em suas mãos todos os oceanos e mares, assim como as principais terras habitáveis do planeta (tendo o dólar e o euro como seu lastro), seguida da conversão aos regimes políticos identificados com o Iluminismo (republicanos e democráticos), sob a hegemonia mundial do idioma inglês. Avançando neste processo de integração geral, cada vez mais acelerada da humanidade, é bem possível que algum dia alcancemos a ‘unidade das civilizações’. O que permitirá com que as 21 civilizações classificadas por A.Toynbee no seu famoso Estudo (compostas hoje por 192 estados, 5 grandes religiões e 6.700 línguas), se fundam definitivamente numa só em algum momento do porvir da história. Bibliografia Abbagnano, Nicola – História da Filosofia. Lisboa. Editorial Presença, 1969. 14 v. Carpeaux, Otto M. – História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985-87, 6 v. Chevallier, Jean-Jacques – História do Pensamento Político. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1983. 5 v. Crouzet, Maurice – História Geral das Civilizações. São Paulo: Difel, 1955-58, 7 v. Duby, George – Laclotte, Michel – História Artística da Europa: a Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, 2 v. Grimal, Pierre – A Civilização Romana. Lisboa: Edições 70, 1988. Hauser, Arnold – História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Jaeger, Werner - Paidéia. São Paulo. Martins Fontes, 2001. Toynbee, Arnold J. – Estudio de la Historia. Buenos Aires: Emece Editores, 1951. 8 v. Turner, Ralph - Las Grandes Culturas de la Humanidad. México. F.C.E., 1992.

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