"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

'VADA A BORDO, #&%@!'

Novo mote na praça. Sai "Menos a Luiza, que está no Canadá" (até porque ela está de volta) e entra "Vada a bordo, cazzo!". O resto do mundo não tomou conhecimento do bordão paraibano, febre na internet de fala portuguesa, mas a curta e grossa ordem do comandante da Capitania dos Portos de Livorno ao capitão do Costa Concordia já estampa até camisetas ucranianas. Sempre na versão original, eufonicamente insuperável. Experimente: "Volte já pro navio, cacete!" Não tem o mesmo efeito.
Em determinadas situações, nada compete com a arrebatada língua italiana. Palavras como "disgraziato" já vêm com um ponto de exclamação embutido. Operístico e tragicômico, quase tudo em italiano parece subir pelas paredes e descambar para a galhofa. "Disgraziati!" foi o que Fabiola Russo, mulher de Francesco Schettino, o capitão do sinistrado navio, berrou para os repórteres e paparazzi que se acotovelavam à porta da casa do casal, em Meta di Sorrento, na província de Nápoles. Já vimos a cena um sem-número de vezes no cinema.
Nem a xingação de Fabiola nem a solidariedade de parentes, vizinhos e amigos ("é um grande sujeito", disseram uns, "sempre pronto a ajudar o próximo", afiançaram outros, "o que estão fazendo com ele é uma infâmia, uma crueldade, um linchamento midiático", protestou dom Genaro Starita, pároco da cidade, "ele ajudou a salvar milhares de passageiros", socorreu-lhe uma amiga moldávia, testemunha ocular da colisão) conseguiram aliviar a barra do capitão, que antes mesmo de admitir sua barbeiragem já fora arrastado pela mídia ao Gólgota da difamação.
Um canal de televisão atribui-lhe "traços lombrosianos"; outro comparou-o maliciosamente ao comandante da antiga telessérie O Barco do Amor; um colunista de província, pegando carona na invectiva de um procurador, tachou Schettino de "scellerato". Estava armada a catarse de um povo que o atual arrocho econômico tornou ainda mais propenso à histeria.
O desastre em si, simbolicamente enriquecido pela evocativa imagem do navio a soçobrar (que nem a Itália, que nem o euro, que nem a União Europeia), foi relativamente modesto em número de vítimas: 11 mortos e 21 desaparecidos. Só o transatlântico italiano Andrea Doria, naufragado a caminho de Nova York em 1956, levou para o fundo do Atlântico 51 pessoas, estatisticamente irrisório se comparado ao naufrágio do Titanic (1.517 desaparecidos), para não mencionar os campeões da categoria: Doña Paz (1987, Filipinas, 4.375 mortos), MV Le Joola (2002, Costa de Gambia, 1.863) e o vapor Sultana (1865, Rio Mississippi, 1.800).
Uma catarse com direito a vilão e herói claramente definidos: Schettino, o bode expiatório para desafogar uma raiva coletiva recalcada há não sei quantos anos, e Gregorio Di Falco, comandante da Capitania dos Portos de Livorno, o oficial imaculado para aplacar a honra ferida da coletividade - o italiano mau, "vigliacco", e o italiano bom, eficiente
"Io sono Di Falco" (Eu sou De Falco) virou brado na blogosfera, a propagar um equívoco que o próprio comandante apressou-se em desfazer. "Só cumpri com meu dever", reiterou várias vezes o autor de "Vada a bordo, cazzo!". Como Di Falco não arriscou sua vida, o sine qua non do heroísmo, o único herói do resgate aos passageiros do Concordia acabou sendo aquele comissário de bordo que, mesmo ferido na perna, continuou salvando gente.
Segundo o jornal La Stampa, de Turim, Schettino e Di Falco nunca se toparam. Temperamentos conflitantes. O primeiro é extrovertido, bon vivant, gozador; o segundo, tímido, arredio, certinho. Dionísio e Apolo. Eis um contraste na medida para o fino olhar de Umberto Eco, que ainda não se manifestou a respeito do desastre, mas é provável que o faça em sua próxima coluna na revista L'Espresso, comparando Schettino, suponho, não a Berlusconi mas ao desertor Henry Fleming de O Emblema Vermelho da Coragem, de Stephen Crane, e a Lord Jim, o conflituoso homem do mar criado por Joseph Conrad.
Fleming e Jim são os dois mais notórios paradigmas da covardia que o imaginário criou nos últimos 120 anos, com ligeira vantagem para o personagem de Conrad: Jim, afinal, também abandonou os passageiros de um navio à própria sorte no meio de uma viagem. Todos se salvavam, menos Jim, que, transformado em bode expiatório de um delito com vários culpados, passava o resto da vida tentando purgar sua culpa nos cafundós da Malásia.
Um segundo vilão veio à tona na tragédia anunciada do Concordia: o prefeito da Ilha Giglio, Sergio Ortelli. É o maior incentivador dos shows de exibicionismo que os colossais cruzeiros turísticos costumam fazer a uma distância temerária da costa, com todas as luzes acesas e sirenes a mil decibéis, para ele, "um espetáculo inigualável" e "uma tradição indispensável", disse-o por e-mail ao comandante do Concordia, em agosto. A revista alemã Der Spiegel revelou o e-mail; o diário italiano Corriere della Sera pespegou-lhe o apelido de "magnetizador de cruzeiros" (que, obviamente, soa melhor no original, "sindaco acchiapa navi da crociere").
Há fortes interesses eleitoreiros em jogo nas relações entre os políticos italianos, sobretudo dos prefeitos, e as empresas de navegação turística. Se Schettino tem partes com Lord Jim, Ortelli lembra o prefeito do filme O Tubarão, que se recusava a suspender o banho de mar em suas praias para não afetar o afluxo de turistas. Depois do desastre do dia 13, Ortelli não falou mais em "tradição", que não é uma exclusividade da Ilha de Giglio nem do Tirreno, mas uma praga de toda a costa italiana, tema, aliás, de um recente dossiê da L'Espresso, pautado pelo estrago ambiental que mastodontes do porte do Concordia (59 m de altura, 294 m de comprimento, 3.800 passageiros) e até maiores vêm causando à Lagoa de Veneza. Ano passado, 800 navios dessa envergadura despejaram 2 milhões de turistas em Veneza, provocando o mesmo impacto que 11 milhões de automóveis causariam ao meio ambiente. De que adianta proibir a circulação de veículos dentro de Veneza se os seus maiores danos vêm pelo Adriático?

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