"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Do pré-natal ao túmulo

Pensadores filosóficos, históricos, políticos, jurídicos etc. compreendem o Estado como objeto de saber e nele reconhecem elementos essenciais: soberania, território, povo e finalidade. Desses, a teleologia suscita maiores controvérsias, porém, desde o ponto em que o ser do homem é movido por fins e o Estado, sua obra, exsurge, conseqüentemente, o sentido finalístico estatal. Os pensadores que refletem a partir dos modelos mentais baseados nas ideologias de esquerda, “progressista”, “moderna”, perfilham-se entre os defensores do Estado como agente finalístico de superação da “luta de classes” e criador do novo homem, do homem modelar, do homem ideal. Por outro lado, os pensadores que raciocinam desde os modelos mentais alicerçados nas ideologias de direita, conservadora, clássica, adotam o Estado como instrumento de realização final do homem que há, com seus vícios e virtudes. Valho-me, pois, da minha percepção de que o Estado existe para esse homem, com o propósito de asseverar que a sua finalidade essencial deve ser garantir os valores existenciais, gerais e universais da vida, da liberdade, da propriedade etc., imprescindíveis ao pleno desenvolvimento humano. Esse desiderato estatal concretiza-se mediante vetores de ação albergados pelos verbos: permitir, proibir, obrigar, cuja medida justa é sobremaneira difícil de encontrar, à proporção que podem implicar riscos aos próprios valores que devem assegurar. Almejando que se vá além de assegurar tais valores, abre-se enchança para o Estado expandir, de modo ilimitado, seu campo de ação, convolando-se, destarte, em grave ameaça àqueles valores, que originariamente deveria assegurar. Expansão e respectiva ameaça que se substanciam em vetores de ação representados pelos verbos: controlar, regular, prestar, que se aproximam de se realizar em danos efetivos, conforme o Estado – sob a autojustificativa de necessitar de mais amplos e eficazes poderes para assegurar aqueles valores existenciais, gerais e universais – alarga, desmesuradamente, os seus campos de atuação, embora não sem negligenciar severamente as suas competências clássicas de permitir, proibir e obrigar. Qual então a finalidade elementar do Estado brasileiro? Socorro-me do preâmbulo da nossa Carta Constitucional, mediante o qual o Poder Constituinte brasileiro estabelece legitimamente o compromisso seu, da sociedade e do Estado com os valores da Democracia, dos direitos individuais, da liberdade, da segurança etc. Eis pertinente questão: o Estado brasileiro tem cumprindo o seu dever constitucional de garantir a segurança dos os valores existenciais, gerais e universais da vida, da liberdade, da propriedade etc., indispensáveis ao pleno desenvolvimento de cada brasileiro? Não. Exemplo que, infelizmente, ratifica de modo categórico essa resposta: consoante o Mapa da Violência publicado pelo Ministério da Justiça: de 1988 a 2008, foram assassinados, no Brasil, 522.092 pessoas, média de 47.462 pessoas por ano, 130 por dia, no período. Malgrado a resposta seja não, não cumprindo sua finalidade elementar, ordenada pela Constituição da República, o Estado brasileiro, confessando a sua absurda ineficiência em cumprir a sua finalidade básica, resolve selecionar, entre os mortos de hoje e os marcados para morrer amanhã, as pessoas cujas vidas merecem mais valor do que outras. Nessa perspectiva, observa-se que, nas duas últimas semanas, cinco pessoas teriam sido mortas em decorrência de supostos conflitos agrárias, fundiárias e ambientais na região norte do país. Tais mortes, porque úteis ao proselitismo político do momento, motivaram extraordinária mobilização do governo federal, envolvendo ministérios, Forças Armadas, órgãos ambientais, polícias, ONGs, imprensa etc. – a despeito do discurso governamental autoexculpante de sempre, no sentido de que a insegurança pública é problema dos governos estaduais –. Mágica e solertemente, o esclarecimento desses seis homicídios e a punição dos criminosos ganhou contornos de questão de Estado. Todavia, no mesmo período, foram assassinadas, pelo menos, outras 1950 pessoas, cujas mortes não têm importância política, poucas serão esclarecidas e os autores penalizados; somente números na macabra estatística de quase 50 mil mortes anuais, objetos de futuros estudos e mapas da violência. Como se não bastasse, depois de receber uma lista, com pedido de proteção, apontando quase duas mil pessoas alegadamente marcadas para morrer, que integrariam “movimentos sociais”, o governo federal respondeu que não tem condições de garantir proteção a todas, somente a algumas “lideranças”, aquelas mais importantes e submetidas a maiores riscos. Iníqua escolha, sobretudo, à luz da Constituição Federal, o Estado brasileiro não deve garantir a vida de algumas pessoas selecionadas politicamente, mas de todos os milhões de brasileiros, inclusive daqueles milhares sem pedigree político, que serão, desgraçadamente, assassinados durante este ano. Todavia, apesar da indesculpável omissão de cumprir sua finalidade elementar, o Estado brasileiro, cada dia mais, arvora-se capacitado para regular, controlar, prestar tudo que é necessário ao cotidiano dos brasileiros, do pré-natal ao túmulo.

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