"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

sábado, 15 de maio de 2010

França 1940: o general contra o marechal

Quando a França viu-se atacada em 10 de maio de 1940 pelas armas da Alemanha nazistas, o mundo inteiro espantou-se pela rapidez com que a grande nação fora dominada pelos invasores. Em apenas três semanas de combate, as outrora poderosas forças armadas francesas tinham sido reduzidas à impotência. O governo do presidente Paul Reynaud não tardou em dividir-se: capitular frente a Hitler ou continuar resistindo? A divisão Duas personalidades do alto escalão militar encarnaram então as alternativas resultantes da invasão e do descalabro geral. Henry Phillipe Pétain, o mais velho marechal da França era pela aceitação da derrota; Charles De Gaulle, o mais jovem general francês, propunha a resistência a qualquer custo. Estes dois homens, que até então mantinham uma relação de pai para filho, cada um ao seu modo, acreditavam estar salvando a nação do pior. Desde a arrancada alemã de 10 de maio de 1940, as vitórias das divisões panzers se acumulavam. As estradas francesas ficaram atulhadas de refugiados civis. Carroças, bicicletas, pequenos caminhões, automóveis, em meio a outros que fugiram a pé em direção à Paris, inviabilizaram a possibilidade do exército francês organizar melhor uma contra-ofensiva. A situação lembrava a descrição que Emile Zola fizera do pânico que se abatera sobre a população camponesa durante o avanço dos prussianos sobre Paris, em 1870 (na novela Le Débâcle, de 1892). Os aliados da Entente, a Grã-Bretanha e a França, viram-se cortados ao meio pela conjunção dos planos Gelb (Amarelo) e Rot (Vermelho), executados pelo Alto Comando Militar alemão, dando seguimento ao plano Halder-Mainstein, com presteza e disciplina de recursos. Eram 141 divisões alemãs, boa parte delas compostas por blindados e veículos motorizado que, protegidos por quase 6 mil aviões, perfaziam no total mais de três milhões de soldados. Um verdadeiro dilúvio armado se abateu sobre o território francês inerte. No dia 14 de junho, às 5 h30m , exatamente a um mês da data nacional francesa, as tropas do 17 º exército do general Von Kuchler marcharam pelas avenidas da capital rumo ao Arco do Triunfo frente a uma multidão de parisienses triste e emudecida.
A capitulação
Tentando ainda insuflar o governo de Paul Reynaud à resistência, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill desembarcara secretamente para uma reunião. Exortou com veemência os franceses presentes a lutar ‘ de casa em casa’ para não entregar a capital ao invasor. Se não desse resultado, que partissem para uma guerra de guerrilhas para atormentar os alemães. Nenhuma das suas propostas provocou senão horror aos generais franceses Gamelin e Weygand, que estavam mais preocupados com a possível repetição dos motins que os regimentos franceses padeceram em 1917 e com as questões de segurança e ordem decorrentes da invasão. No dia seguinte, Churchill reembarcou para Londres certo de que a batalha da França estava perdida. Em 10 de junho, o governo Reynaud, que se retirara de Paris para o sul - depois de acumular calamidades uma atrás da outra -, para Bordeaux, decidiu abdicar dos poderes em favor do marechal Pétain e assim encaminhar a capitulação. Phillipe Pétain, então com 84 anos, era naquela ocasião o maior herói de guerra da França. Um mito ainda em vida. Durante a Primeira Guerra Mundial ele comandara, em 1916, a brava resistência contra ofensiva alemã em Verdun e, depois, durante os amotinamentos das tropas em 1917, conseguira contornar a situação sem apelar para meios disciplinares violentos. Poucos dias antes do armistício com os alemães, em 11 de julho de 1940, ele instalou um governo em Vichy para administrar a parte da França que Hitler permitiu que continuasse sob controle do Marechal, regido pela trindade Travail, Famille, Patrie, lema da extrema-direita francesa. Consideravam-no uma espécie de ‘ Pai da Pátria’, um homem venerado pelos cidadãos e cidadãs. A noticia de que o velho guerreiro havia assumido o governo naquele momento trágico causou uma sensação de alívio junto à população apavorada com a seqüência de ataques mortíferos que a aviação nazista estava causando. Podia-se confiar no Marechal (a propaganda do governo de Vichy fazia questão de enfatizar-lhe o título militar: Le marechal), como a personalidade certa para empunhar a nau francesa em meio à tormenta, salvando-a do naufrágio.
As raízes do desastre francês
A grande interrogação que circulava pelo mundo de então se centrava nas razões do desastre da França, em tentar explicar o rápido e total débâcle dela frente ao inimigo. Tropa por tropa, as forças francesas equivaliam-se às alemãs, em certo setores até as superavam. A explicação do desastre de 1940 inclina-se, pois para as questões políticas. O país nos anos trinta era um ninho de marimbondos. Cada tendência desejava o esmagamento completo do adversário: monarquistas contra republicanos, crentes contra seculares, fascistas contra comunistas, autoritários contra democratas, havia de tudo no caleidoscópio ideológico do país. Em 6 de fevereiro de 1934 os militantes fascistas da Action Française e outras agrupações de extrema-direita, reunidos na Place de La Concorde, tentaram um golpe anti-parlamentar que fracassou, criando, por reação, um clima oposto que favoreceu a ascensão do Fronte Popular, coligação da esquerda ( socialistas, comunistas e radicais republicanos), que venceria as eleições em maio de 1936. Pela primeira vez na história um judeu, o socialista Leon Blum, assumia a chefia do poder executivo na França. Uma onda de ocupação de fábricas se seguiu, com quase mil estabelecimentos industriais tomados pelos trabalhadores que assim agiram para forçar a classe patronal a aceitar as reformas sociais e trabalhistas prometidas. Este fato assustou enormemente os setores proprietários e amplos segmentos da classe média francesa que começaram a cogitar se afinal ‘Hitler não era melhor do que Stalin’.
O impasse levou à inação
Se a direita francesa não mostrava muito entusiasmo por uma acelerada política de armamentos, visto que o inimigo seria fatalmente a Alemanha Nazista, a esquerda, ainda que por outros motivos, não lhe ficava atrás nesta falta de empenho. León Blum, presidente do Conselho de Ministros por duas vezes antes da guerra (1936-37 e 1938) era um socialista herdeiro da tradição humanista e pacifista dos tempos de Jean Jaures (um mártir da esquerda que fora assassinado em 1914 por tentar impedir a mobilização para a guerra) e, por igual, não manifestou nenhum interesse em reativar a indústria bélica como deveria ou ativar preparativos militares para uma futura guerra contra Hitler. De certo modo, ele expressou o que De Gaulle denominou de ‘psicose anti-guerra’ que predominava no cenário francês dos anos trinta, fruto do horror que a matança de 1914-1918 provocara junto à população. Exatamente o contrário do que se via na Alemanha. O resultado disto foi a inação (*). Quando finalmente as declarações de guerra foram anunciadas aos quatro ventos em setembro de 1939, era visível na população francesa a falta de qualquer vontade ou entusiasmo para mobilizar-se e ir lutar. Exemplo desta paralisia que a luta entre a esquerda e a direita provocara na França foi o fato de Leon Blum não ousar a apoiar militarmente o lado republicano na eclosão da guerra civil espanhola de 1936-1939. Enquanto as potencias fascistas (Itália e Alemanha atuavam abertamente ao lado do general Franco) e a URSS intervinham as escancaras na sangrenta arena espanhola, o líder socialista negou-se a tomar posição mais firme ao lado dos legalistas a pretexto de manter a política da ‘não-intervenção’ (de fato, ele temia que uma situação similar ocorresse na França, com a direita, na trilha dos golpistas franquistas, provocando um levante contra o Fronte Popular). Outro exemplo da virulência do ódio ideológico que fraturava a França nos anos trinta, foi a sórdida campanha que a direita moveu (orquestrada por Charles Maurras, monarquista e antissemita, intelectual líder dos extremistas) contra o Ministro do Interior da Frente Popular Roger Salengro, acusando-o de ter desertado na Primeira Guerra Mundial. Não suportando a virulência das manchetes diárias de que foi vítima, o ex-prefeito de Lille suicidou-se em 17 de novembro de 1936 (episódio que Leon Blum bem previu como a primeira derrota do Fronte Popular) Um excelente testemunho da situação política caótica e psicologicamente fraturada, e por que não dizer autodestrutiva em que o país se encontrava naquele momento, foi dado pelo jornalista paulista Paulo Duarte (in O espírito das catedrais), exilado em Paris nos meses que antecederam o ataque nazista. Certo dia, estando ele num café, viu chegar um coronel do exército francês, alguém de origem nobre, que depois de pedir uma bebida no balcão dirigiu-se aos presentes conclamando-os a brindar a futura queda do governo Reynaud. E isto quando as tropas nazistas já adentravam fundo no território nacional. Se um oficial superior agia assim, é de se imaginar o moral de boa parte da tropa. Enquanto Hitler erguia um monólito político na Alemanha - uma aliança total entre o povo, as forças armadas e a liderança política - a França era uma colcha composta de retalhos que se hostilizavam permanentemente.
(*) León Blum foi colocado frente a um tribunal depois da guerra para explicar os motivos de não ter perseverado numa política que visasse à preparação do país para a guerra.
A mentalidade defensiva
Certamente que pesou para o desastre geral a doutrina militar seguida pelo Estado Maior francês no período do pós-guerra. Se nos primórdios da Primeira Guerra Mundial a orientação estratégica voltava-se para La offensive à l´outrance, o ‘ataque a todo custo’, inspirado na filosofia do élan vital de Henry Bérgson, o transcorrer da guerra em si – a guerra de trincheiras - a modificara profundamente. A França estaria salva, concluíram os estrategistas do pós-guerra, se tivesse um bom sistema de proteção, uma grande barreira construída na fronteira oriental em concreto e ferro que dissuadisse um ataque dos boches. A razão mais óbvia desta conclusão fora a batalha de Verdun, travada ao longo do ano de 1916, na qual os alemães não puderam vencer devido ao complexo sistema de trincheiras e casamatas construídas pelos franceses no local.
A linha Maginot
Esta foi a matriz inspiradora da famosa Linha Maginot – sugestão do marechal Joffre - que começou a ser erguida a partir de 1929 e que deveria cobrir toda a linha fronteiriça com a Alemanha e parte mínima da Bélgica. Com 200 quilômetros de extensão, compunha-se de 108 grandes fortes subterrâneos construídos de 15 em 15 km, havendo ainda 410 casamatas para infantaria, 152 torres móveis e 1 536 cúpulas fixas além de 339 peças de artilharia, formavam um complexo de interligado por 100 km de galerias subterrâneas. O custo total orçou um tanto mais do que 6 bilhões de francos da época. Numa entrevista que o então talentoso jovem coronel De Gaulle teve em certa ocasião com León Blum, este garantiu ao militar que a França com aquele sistema era ‘invencível’. Sistema que se revelou completamente inútil frente à guerra aéro-mecanizada adotada pelos nazistas. Tanto assim que quando a França capitulou em 22 de junho, 600 mil soldados que ocupavam o complexo da Linha Maginot renderam-se sem dar um tiro sequer.
O general mostra sua inconformidade
Foi contra o predomínio do derrotismo que como uma névoa sombria tudo contaminava no Alto Comando tanto quanto sobre a sociedade francesa, que o jovem general de brigada Charles De Gaulle se insurgiu. Não estava convencido que o último tiro havia sido dado, nem que o derradeiro gesto de reação já fora feito. Era-lhe um absurdo a França dispor de um enorme império sem pensar em refluir para uma das suas partes a fim de manter-se na luta. Mas sua voz, naquele momento de desânimo nacional, clamou no deserto. Até aquele momento seu nome só era do conhecimento da elite militar e de um ou outro quadro do governo. Em 1934 ele publicara um livro polêmico La armée de métier, que defendia uma verdadeira revolução na estratégia geral das forças armadas francesas. Em primeiro lugar, no lugar de um exército de massas (tradição que de certo modo vinha do levée en masse de agosto de 1793, da época da revolução francesa: a nação em armas em defesa do país atacado) que perdurou na Guerra de 1914-18 e que continuava a formar o escopo da doutrina militar da época, ele propôs uma guarnição de 100 mil homens estritamente profissional. No entender de De Gaulle. o jovem conscrito que fazia o serviço militar obrigatório por um ano de nada servia numa guerra moderna conduzida por material moto-mecanizado. Era imperioso arregimentar uma poderosa formação de soldados calejados, um exército de elite destro em lidar com a tecnologia e capaz de responder rápida e eficazmente a qualquer ameaça ou desafio. Eles saberiam manobrar os tanques e demais carros de combate para espantar os inimigos da França. A Léon Blum tal idéia de formar uma espécie de Guarda Pretoriana, em frontal desacordo com a tradição nacional, era um convite para que no futuro ocorresse um golpe fascista. Para o restante dos generais franceses, De Gaulle, com sua defesa de uma guerra móvel no futuro, delirava ao apostar suas fichas nos carros de combate, desmerecendo a infantaria e as demais armas tradicionais. Alguns viram naquele projeto um embrião de uma futura ditadura militar que bem poderia ser empalmada pelo próprio De Gaulle, como se ele tivesse afiando uma espada para somente ele empunhar quando fosse necessário. Seja como for, apesar de reconhecerem seu talento e brilho, ele se tornou um inconveniente que caiu no desagrado tanto dos políticos como dos seus colegas de farda. Ainda assim, na hora do combate, coube a De Gaulle, na manhã do dia 17 de maio, ensaiar com seus tanques o único contra-ataque que o exército francês conseguiu esboçar contra os invasores. Seus 150 carros só não tiveram sucesso na ofensiva em Montcornet devido a total ausência de apoio aéreo. A De Gaulle, que ainda havia dedicado à publicação de um outro livro seu ao marechal Pétain, em 1938, quando este se tornou o mentor da capitulação final, só lhe restou o doloroso caminho do rompimento. Fazendo na ocasião parte do staff do governo Reynaud, ele percebeu que não havia mais nenhum ânimo de luta entre os supremos comandantes Weygand e Pétain. Eles só pensavam no armistício, em depor as armas e salvar o que fosse possível. No dia 17 de junho, na companhia do seu ajudante-de-ordem ele embarcou num vôo definitivo para Londres para buscar apoio junto a Churchill e de lá continuar com os Franceses Livres – um punhado de homens que se decidiram pelo exílio - a combater de qualquer modo. Com este gesto, o jovem general desafiava o velho marechal que aceitara o abandono das armas. Nas suas Memórias ele registrou: ‘ ali estava eu, sozinho, privado de tudo, como um homem na margem de um oceano que ele teria que cruzar nadando... ’ No dia seguinte, dia 18 de junho, socorrendo-se dos ofícios da BBC de Londres, lançou sua famosa mensagem:
A convocação à resistência
É um absurdo considerar que a luta acabou. Sim, temos sido pesadamente derrotado. O sistema militar ruim, Os erros cometidos na condução da operações, O espírito de abandono do governo frente aos derradeiros combates nos fez perder o Batalha de França. Mas ainda temos um grande império, uma intacta frota, um monte de ouro. Ainda temos aliados com imensos recursos. Se as forças da liberdade finalmente prevalecerem sobre os interesses da escravidão, o que seria o destino de uma França que apresentado ao inimigo? Honra, senso comum e os interesses superiores da Nação comando para todos os livre francês para continuar a lutar onde quer que estejam e por mais que podem. Eu, General de Gaulle, estou começando essa tarefa nacional aqui na Inglaterra. Convido todos os soldados franceses dos exércitos de terra, mar e ar, convido os engenheiros e trabalhadores especializados em armamento que estão em solo britânico ou que podem ir para lá. Convido os líderes, os soldados, os marinheiros, os pilotos das forças francesas de terra, mar e ar, onde quer que estejam, para entrar em contato comigo. Eu convido todos os franceses que querem permanecem livres para me ouvir e me seguir. Viva a França livre e independente!
[Il est absurde de considérer comme la lutte perdue. Oui, nous avons subi une défaite Grande. Un système mauvais militaire, les fautes commises dans la conduite des opérations, l'esprit d'abandonar du gouvernement pendant ces derniers combats ont fait nous perdre la bataille de France. Mais il nous reste un vaste Empire, Intacte flotte une, beaucoup d'or immenses, il nous reste des Alliés ressources dont sont les. Si les forças de la liberté triomphent finalement de celles de servidão la, quel serait le destin d'une France qui se serait soumise à l'ennemi? L'honneur, le bon sens, l'intérêt supérieur de la patrie commandent à tous les français libres de continuer le combat là où ils seront et comme ils pourront le. Moi, le General de Gaulle, j'entreprends ici en Angleterre nationale cette tâche. J'invite tous les militaires français des armées de terre, de mer et de l'air, j'invite les ingénieurs et les ouvriers spécialistes français de l'armement qui se trouvent en territoire britannique où qui pourraient y parvenir. J'invite les chefs, les soldats, les marins, les Aviateurs, françaises des forças de terre, de mer, de l'air, où qu'ils se trouvent actuellement, à se mettre en rapport avec moi. J'invite tous les français qui veulent rester libres à m'écouter et à me suivre. Vive la France libre dans l'honneur et dans l'indépendance!]
Bibliografia
Beevor, Antony e Cooper, Artemis. Paris after the liberation 1944-1949. New York: Penguin Books, 1994. Blum, León. L'histoire jugera. Paris: Éditeur Diderot Et L'Arbre, 1945. De Gaulle, general. Memórias de Guerra. Rio de Janeiro: Biblioteca editora do Exército, 1977, 3 v. Duarte, Paulo Alfeu Junqueira Monteiro. O Espírito Das Catedrais. São Paulo: Editora Anhembi, 1958 Lacouture, Jean – De Gaulle – Le rebelle ( 1890-1944). Paris: Le Seuil, 1987. Maurois, André - A tragédia na França, Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1941. Shirer, William – A queda da França. Rio de Janeiro- São Paulo: Editora Record, 1969, 3 v. Werth, Alexander – De Gaulle. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1967.

Nenhum comentário:

Postar um comentário