"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

quinta-feira, 25 de março de 2010

Carlos Gardel vive

“Onde está ( repito) a malandragem/Que fundou em ruela empoeirada/ De terra ou em perdidos povoados/ Uma seita da faca e da coragem? “J.L.Borges – O Tango Carlos Gardel foi o maior cantor de tangos de todos os tempos. A sua morte, motivada por um acidente aéreo durante uma tourné pela Colômbia ocorrido em junho de 1935, nunca foi aceita pelos seus admiradores que se contavam aos milhares , aos milhões, pelo continente americano inteiro. Ele é um caso raro de imortalidade, pois até hoje suas 930 gravações são ouvidas como na época em que as gravou, de 1917 a 1933, e sua voz continua ecoando pelas rádios e salões em todas as partes da Argentina como se nada houvesse. Gardel reaparece aos seus Viram-no, juravam, em todos os lugares. Se bem que sua aparência era assustadora, sem dúvida, diziam, era ele, era Carlos Gardel. As roupas em frangalhos, o cabelo castanho escuro, que ele sempre trazia impecavelmente engomado, estava chamuscado e em desalinho, parecia um torto. Mas quando o farrapo se punha a cantar, dedilhando a guitarra, tendo ao fundo um bandonéon e um par de violões, o público, em Bogotá, em Caracas, em Montevidéu, no Porto Rico, no Rio de Janeiro, ou na Corrientes com Paissandú, esquecido do seu rosto queimado e da sua aparência de além-túmulo, se convencia: era Carlitos sim quem estava no palco. A sua voz impressionante, inesquecível, não deixava um só espaço da bodega ou da taverna sem sua presença. Comoviam-se, pois tudo indicava que ele saíra vivo do acidente aéreo na Colômbia. A imprensa mentira ao noticiar o infausto de Medelin, pois Carlos Gardel estava ali, vivíssimo. Os fãs o tornam imortal Uns três dias antes da tragédia do vôo para Medelin, ainda em Bogotá, naquele ano estafante e fatídico de 1935, ele se emocionara com um coral de colegiais, dirigido por uma desconhecida professora, que ensaiara uma meia dúzia das suas letras. Gardel fora às lágrimas. Agora, depois da queda, parecia uma alma penada arrastando-se de salão em salão, assustando a platéia com sua aparência de assombração, mas logo fascinando-a com sua presença estentórea. Não deixaram Gardel morrer. Em todo o mundo latino-americano, inclusive no sempre afastado Brasil, ninguém aceitou a idéia de ele fosse um homem comum, desses que morrem e logo se enterram. Portanto, em uníssono, concordaram em que ele não podia simplesmente ir-se. Tanto é que viram-no trovando com Noel Rosa num botequim da Vila Isabel. O mausoléu no La Chacarita Está certo que promoveram-lhe exéquias fúnebres, dia em que Buenos Aires em peso, de luto fechado, acompanhou-lhe o féretro em prantos, e até um pequeno mausoléu lhe ergueram no cemitério de La Chacarita. Local de romaria kitsch, onde sua elegante figura em bronze negro - El bronze que sonrie -, está lá de corpo inteiro, coberto de placas de agradecimentos e ramadas de flores que sempre começam a se avolumar a partir de 24 de junho, data do pseudo-acidente, mas ninguém deu muito crédito a isso, pois todos sabem que Carlitos não morreu. Os músicos que partilhavam com ele nas suas aventuras, aquelas longas viagens que faziam de barco, lembravam-se dele aparecer no convés, com o pescoço sempre protegido, mas com um cigarro no canto da boca, imaginando qual seria o rateio do turfe no próximo porto em que desembarcariam, pois, diziam que Carlitos cantava para pagar suas apostas no prado. Depois ele as lamentava, como ele fez no célebre tango “ Por una cabeza”, onde o seu favorito, o potro Lunático, perdeu o páreo por um nada. O tango universalizou-se Se bem que seu nome se encontra no Dicionário de Mitos e Lendas, como podem dizer que ele se foi se sua voz melhora cada vez mais? Foi ele quem trouxe o tango - proibido em Buenos Aires desde 1806! -, dos arrabaldes suspeitos para dentro Teatro Colón. Dali, deixando a boina, o lenço suado no pescoço e o punhal para trás, com o tango enfatiotado, foi um passo para Barcelona , para Paris, para Nova Iorque, para Hollywood, para o mundo. Entre-se onde se entrar, pelos salões de dança de todas as partes, que o inconfundível som de Gardel se fará presente. Como qualquer outro ser mitológico, é impreciso o seu local de nascimento. Dizem, é Mme. Bricheteau quem assegura, que foi na rua du Canon d'Arcole em Toulose, na França, em 11 de dezembro de 1890, e que aos 27 meses de idade desembarcou em Buenos Aires. Os orientais, provavelmente para incomodar os portenhos, teimam em apontar Tacuarembó, no Uruguai. Gardel foi um garoto gorducho, chegando aos 104 quilos. O seu pai dera-lhe um acordeão e dona Berta, sua mãe, preocupada com o sedentarismo dele, encheu-lhe de comida. Depois ficou um rapagão: um boa pinta com bons dentes e um vozeirão, a loucura das mulheres. São elas que até hoje não o deixam morrer. O macho sofrido E elas têm toda a razão para isso, visto que Gardel, rompendo com a tradição milonguera do canalha ressentido, fazia às vezes do machão abalado, lamentando a rejeição e o abandono da amada. Numa das suas canções, Mano a mano, a preferida de Júlio Cortázar, até uma mulher da vida não deixa de ser “ una buena mujer”. Por essas e outras é que Borges disse que Gardel afeminara o tango, porque nenhum gaúcho que prestasse, um garanhão dos bons, chorava a perda de uma mina, ou, pior, oferecia o ombro a uma ex-amante que o traíra. Pois agora é Buenos Aires, a querida de Gardel, quem desastrou-se, derrotada pela insânia nacional. Longe, bem longe ficaram os tempos em que se dizia que alguém era “ rico como um argentino.” Não só Buenos Aires infelicitou-se, mas é a pátria argentina, vandalizada, pilhada e saqueada pelos seus, quem aparece a todos como um tenebroso espectro da antiga grandeza, obrigando o seu povo, outrora orgulhoso, varonil, com o coração aos pedaços, a - como diz a primeira estrofe do profético tango Cuesta abajo, de Alfredo La Pera, de 1933 - , “arrastar-se pelo mundo com a vergonha de ter sido e a dor de já não ser” .

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