"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Napoleão, um legado polêmico

Enquanto escritores franceses como Balzac, que ‘desejava fazer com a pena o que Napoleão fizeram com a espada’, e Stendhal que revelara aberta e incondicional admiração pelo imperador, outros homens de letras europeus se dividiam frente a presença histórica e o legado de Bonaparte. Mesmo tendo a Alemanha sido invadida pelas forças francesas, a partir de 1806, filósofos como Hegel e Nietzsche mantiveram uma posição de admiração para com ele. Já os escritores russos, os dois gigantes da literatura nacional, Tolstoi e Dostoievski, cujo país por igual se viu atacado por Napoleão, em 1812, manifestaram profunda hostilidade ao papel desempenhado pelo general-conquistador no concerto europeu. O destino a cavalo O rumor estridente do tropel dos destacamentos a cavalo, seguidos pelas botas da infantaria batendo cadenciadas nas pedras das ruas da até então pacata cidade alemã de Iena, na Turingia, obrigou o filósofo Hegel interromper seus estudos e ir até o balcão da janela da sua casa. Espantou-se. No exato momento, era o próprio Napoleão quem passava montado num magnífico animal acompanhado pelo seu estado-maior para ir acampar na periferia da cidade. Naquele instante do dia de 9 de outubro de 1806, às vésperas de mais uma vitória do imperador frente aos prussianos do rei Frederico Guilherme III, sentiu a história marchando: Bonaparte era “o destino do mundo a cavalo”. Entendeu-o como “o último estágio da história, de nosso mundo, de nossa época”. A causa dele era nobre: o imperador dos franceses vinha tomar de assalto a “Bastilha da Alemanha”, a Prússia feudal, autocrática e antiiluminista. Exemplo disto foi a disposição dele em sepultar naquele mesmo mês e ano o Sacro Império Romano-Germano, o Iº Reich dos alemães, uma relíquia medieval dos tempos carolíngios que durava há 900 anos e não tinha mais nenhum a função no mundo moderno. Uns anos depois, quando professor catedrático da Universidade de Berlim (entre 1818 e 1831), quando o império de Bonaparte já se desfizera, ainda assim ele não deixou de ditar aos seus alunos nas suas famosas Lições sobre a Filosofia da História Universal as observações sobre a magnitude da presença do general nos acontecimentos mundiais. Comparando-o a César, imaginou-o a um gigante com seus saltos “esmagando muitas flores inocentes, destruindo pela força muitas coisas’, indiferente aos sofrimentos que causava, visto que quando se processam os grandes deslocamentos os ‘indivíduos são sacrificados e abandonados”. Ainda que sua conduta pudesse estar submetida à censura moral ele era a encarnação viva de uma outra etapa da história universal, era o novo estado, produto do Iluminismo, modelando a sociedade ao seu gosto. Era o mar violento das paixões desencadeadas pela Revolução Francesa de 1789, invadindo a pacata planície da Europa feudal e beata. As batalhas que travou nada mais eram do que as manifestações da paixão, tudo a serviço da Razão despertada pelos acontecimentos dramáticos que ocorreram em Paris desde que o povo daquela capital tomara de assalto a fortaleza do rei no histórico Quatorze de Julho. Ação e reflexão Envolvido pelo cotidiano da administração e absorvido pela guerra, era certo que o imperador não tinha consciência plena disto. Ele era “ação pura”, cabendo à filosofia alemã, vizinha da França, fazer a reflexão necessária. Hegel é quem tirava as conseqüências mais profundas do impacto causado por Napoleão na Europa e no Mundo. Era um Prometeu imbuído de uma missão extraordinária e não poderia deixar-se afetar por sentimentos comuns nem desviar-se dos confrontos que redundassem em sacrifício e morte: o destino dele era mudar o rumo da História. O herói de Nietzsche No final daquele mesmo século, em 1884 o filósofo Nietzsche recebeu a incumbência de uma amiga alemã de Roma para que estabelecesse um roteiro cultural para uma jovem doutoranda Resa Von Schirnofer, durante a curta estadia dela no sul da França. Levou-a para os altos do Monte Boron de onde, com sorte, poderia avistar-se a ilha de Córsega. Chegou a querer propor uma travessia até Ajaccio, a cidade em que Napoleão nascera para ver de perto o berço daquele que mais fizera para “ a transformação do homem num novo ser”. A peregrinação à ilha selvagem e remota fazia algum tempo que estava nos planos dele com o intento de visualizar o cenário original daquele que veio para executar a “transvaloração de todos os valores”, exemplo mais extremado da “vontade de poder”. Para ele, Napoleão amava o poder como um artista, uma alma aristocrática que brotara do caos da Revolução de 1789 – primeira rebelião dos escravos nos tempos modernos - capaz de modelar o mundo ao seu gosto e poder. O seu espírito nobre e sua vontade férrea domara as paixões das massas ressentidas que explodira no Terror de 1793, canalizando-as para a consolidação de um Império Europeu. Numa sociedade dominada pela mediocridade filistéia que se contentava na apologia ao homem comum, ordinário, a personalidade gigantesca do imperador, o herói dos heróis, anunciava o super-homem, figura emblemática da Zukunftphilosophie, da “filosofia do futuro” da qual Nietzsche sentia-se o principal arauto. Percebeu-o como “o europeu do futuro”, o estadista que podia enxergar acima dos limites dos estados-nacionais elevando-se até uma concepção de Europa Unificada e que antecipara outras personalidades cosmopolitas que lhe seguiram as pegadas: como Goethe, Beethoven, Stendhal, Heine e Schopenhauer. Napoleão era alguém de entendia a sociedade apenas como um “alicerce e andaime” que o serviam para que ele pudesse se erguer “até a sua missão superior” e também a “uma existência superior”, como se fosse uma planta gigantesca ávida de sol que usa a floresta ao seu redor para melhor expandir sua ramagem (Além do Bem e do Mal, §256-258). O gigante sem alma Leon Tolstoi, todavia, no Guerra e Paz ( 9ª parte, cap.II) descreveu-o no mesmo espírito de Hegel. Um Napoleão marmóreo, indiferente aos sofrimentos que provocava. Quando da invasão da Rússia em junho de 1812, da margem do rio Vístula assistiu com seu óculo apoiado no ombro de um pajem os ulanos poloneses, conduzidos por um coronel temerário, morrerem tragados com suas montarias, a quem se agarravam nas crinas desesperados, pela fria correnteza. Ainda que se afogando em morte horrível, davam vivas ao general sem que isso arrancasse dele qualquer expressão de compaixão. Para Tolstoi, Napoleão não era grande mas simplesmente inumano. Quem teria sido o responsável por aquela imensa invasão do solo russo, a colossal invasão do Ocidente das estepes do Oriente? A quem apontar o dedo acusatório para todas aquelas desgraças que se seguiram, os massacres, os roubos, as pilhagens, os incêndios devastadores, as vidas destruídas e as demais humilhações que os homens se infringem durante uma a guerra, senão que para Napoleão? Estimulo ao direito ao crime Dostoievski, um outro escritor russo, percebeu o efeito causado por Napoleão por um outro ângulo. Não como o maléfico arquiteto da destruição do Império dos Czares mas acima de tudo como um perigoso exemplo para a juventude niilista. Um homem daquele porte ostensivamente se colocara acima do bem e do mal, seu código era o das águias. O personagem dele na sua famosa novela Crime e Castigo (3ª parte , cap.V), o jovem Rodion Raskólhnikov, estudante pobre e atormentado, imbuído da idéia de que o ser excepcional, e por conseguinte fora dos quadros da lei, poderia ousar tudo. Inclusive ter o Direito ao Crime, como expôs num artigo de um jornal de São Petersburgo. De certa forma, para ele, os legisladores do passado (Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão), por si só já eram algum tipo de criminoso na medida em que abruptamente anulavam todas as normas anteriores a eles, e nenhum deles se deteve quando foi preciso derramar sangue para fazer vingar o novo. Eles “destroem o presente em nome de qualquer coisa melhor”. Assim sendo, ainda que o vulgo muitas vezes os condene, no universo da subjetividade deles, num exame de consciência os homens de gênio, os grandes inovadores, se auto-absolvem. A violência que desencadearam com suas ações e medidas terminarão a longo prazo sendo vista como necessárias e construtivas, fazendo com que os rigores que eles se auto-permitiram, “de saltarem sobre o sangue”, se visse historicamente plenamente sacramentada. Percebendo-se um ser extraordinário, um Napoleão em escala menor, Raskólhnikov engendra um crime. Assaltar e matar uma velha usurária, “um piolho”, como a classificou, para roubar-lhe os bens e com isso ajudar a sua família. Mas não era somente isto que ele buscava. Tratava-se de um assassinato-tese. A grande prova era suportar com todas as forças as imagens do crime, o peso que a culpa cobrava do homicida. Para Raskólhnikov o homem excepcional não sentiria nada, crime algum o abalaria pois ele estava acima do bem e do mal. Para Dostoievski este fora o pior exemplo que o legado de Bonaparte deixava para a juventude em geral: a possibilidade da impossibilidade. O desejo de ação sem cuidado ou reparação moral de qualquer tipo. Todo o movimento revolucionário que tomou corpo na Rússia do século XIX de certo modo era para Dostoievski tributário do perigoso exemplo de Napoleão, fazendo com que qualquer jovem narodniki (integrante do movimento terrorista russo) se sentisse com possibilidade de mudar o mundo como Bonaparte fizera no seu tempo, derrubando tronos ou humilhando os reis e príncipes.

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