"Pensar que o homem nasceu sem uma história dentro de si próprio é uma doença. É absolutamente anormal, porque o homem não nasceu da noite para o dia.Nasceu num contexto histórico específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, só é completo quando tem relações com essas coisas.Se um indivíduo cresce sem ligação com o passado, é como se tivesse nascido sem olhos nem ouvidos e tentasse perceber o mundo exterior com exatidão. É o mesmo
que mutilá-lo."Carl Jung

sábado, 26 de dezembro de 2009

Cotas Raciais: é essa a solução?

Dada a enorme iniqüidade do sistema escolar brasileiro, que afeta as crianças e jovens de baixa renda e, com ainda maior gravidade, a população negra, são indispensáveis políticas compensatórias que promovam uma distribuição mais eqüitativa do capital escolar. A proposta de cotas para ingresso nas universidades públicas, entretanto, é uma medida desaconselhável por diversas razões. Precisamos reconhecer que os exames vestibulares, ao contrário do mercado de trabalho, não discriminam os candidatos por origem étnica, gênero, idade ou deficiência física. As provas são corrigidas por computador (com exceção da dissertativa) e sempre anonimamente. O vestibular discrimina, sim, por qualidade da formação escolar anterior. Dessa forma, a razão pela qual poucos negros e pobres ingressam na universidade reside no fato de que a formação que receberam no ensino fundamental público foi insuficiente para superar as dificuldades associadas à pobreza. Há uma forte relação (no mundo todo) entre níveis de renda e de escolarização. Isso não quer dizer que só os ricos ingressem na universidade: a maior parte dos estudantes universitários provém das camadas médias e médias-baixas. São os níveis mais baixos de renda os prejudicados. É fácil entender por que isso ocorre e a sua correlação ao nível de escolaridade dos pais. Filhos de pais analfabetos ou que mal completaram a 4.ª série, e de origem rural recente, ocupam as posições mais mal remuneradas do mercado de trabalho e constituem a maior parte das camadas mais pobres da população. Os filhos desses pais vivem num ambiente cultural muito limitado, em cujas casas não existem livros, jornais, revistas, papel para desenhar, lápis de cor, isto é, num ambiente não letrado. O ajustamento à escola, especialmente para aqueles que não freqüentaram o ensino infantil, é penoso. A formação dos professores e a pedagogia utilizada na escola são inteiramente inadequadas para promover o ajustamento dessas crianças à realidade escolar. Exemplo disso é a prática de mandar os alunos fazer pesquisas, sem ensiná-los a tanto e sem fornecer-lhes o material adequado. Esse tipo de tarefa supõe que os estudantes terão o auxílio de membros da família e que, nas casas, haverá material relevante. Tarefas como essa apresentam dificuldades insuperáveis às crianças cujos pais não são escolarizados, condenando-as ao fracasso. Já o fracasso leva à discriminação por parte dos professores ou à omissão deles – essas crianças são deixadas de lado. Sem a atenção carinhosa do professor, sem o controle da discriminação, por parte dos coleguinhas brancos, da qual são vítimas os estudantes negros (muito mais comum do que se imagina), tal situação não será superada. Soma-se a isso a necessidade de as crianças trabalharem muito cedo para auxiliar no orçamento doméstico. Não admira que boa parte dessa população sequer complete o ensino fundamental, não tendo, assim, nem a possibilidade formal de fazer o ensino médio. A cota não servirá para esses casos, que constituem a grande maioria da população negra e pobre. Essas são as razões básicas pelas quais negros e pobres não conseguem competir com jovens brancos (ou mesmo negros) de classe média. Tentar resolver o problema não na base, na qual ele é criado, mas no ingresso na universidade, corresponde a oferecer uma aspirina parta à doença que grassa no sistema escolar – é combater o sintoma, e não tratar as suas causas. Há ainda outra questão: a escolarização é um processo cumulativo. Se a formação básica é deficiente, os alunos formam-se, no segundo grau, sem um conjunto de competências indispensáveis para cursar uma universidade: o domínio da linguagem falada e escrita, incluindo a capacidade de ler e entender textos complexos e utilizar conceitos, além de uma alfabetização científica e matemática razoável e o conhecimento mínimo da geografia política e econômica do mundo moderno, assim como da evolução histórica que criou a realidade presente. Por sua vez, a universidade não está equipada para suprir deficiências críticas no processo de escolarização básica – nem é sua essa tarefa. É verdade que a situação está melhorando, na medida em que se logrou, há pouco menos de dez anos, universalizar a educação fundamental, com o que aumentou substancialmente o número de jovens pobres e negros cursando o ensino médio. Embora lentamente, tem crescido o número de negros que consegue ingressar na universidade – em 2007, esse montante atingiu 16,9% do total de matrículas. Assim, a melhoria do ensino público é um objetivo inadiável, mas capaz de ser realizado só a médio prazo. Por isso mesmo, ações afirmativas para diminuir a desigualdade escolar são necessárias imediatamente. É preciso, em primeiro lugar, universalizar a prática de oferecer, aos alunos que apresentam déficit de aprendizagem, um acompanhamento especial que lhes permita igualar-se às demais crianças da sua faixa etária. No que toca ao ensino superior, uma ação afirmativa tão necessária quando viável é oferecer aos alunos com deficiências na sua formação anterior cursos especiais de complementação de estudos, de seis meses a um ano, ou seja, proporcionar cursos pré-vestibulares gratuitos, sempre que possível nas próprias universidades, aos candidatos de menor renda. Cumpre talvez lembrar que os alunos de classe média pagam cursinhos particulares para suprir essas mesmas deficiências e, na França, a maioria dos estudantes do ensino médio que almeja a universidade cursa um ano a mais do que os três regulamentares. Com isso contribuiríamos, e muito, para aumentar a possibilidade de acesso à universidade por parte de jovens pobres e negros, assegurando que recebam a preparação necessária para cursar o ensino superior.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Por que esperar para desarmar o Irã?

A contradição deve ser encarada por aqueles de nós que não gostam do nome "neoconservador", mas que gostariam que houvesse um termo para designar aqueles que são a favor de uma atitude mais ostensiva dos Estados Unidos em relação aos estados totalitários e agressivos. Essa contradição normalmente é expressa pelo desejo de enfatizar uma ameaça sem causar pânico. Há quem veja esse argumento do seu lado oposto. Recentemente, alguns perigosos regimes unipartidários ou totalitários na Sérvia e no Iraque causaram sérios problemas a seus vizinhos e tornaram-se um pesadelo para o seu "próprio" povo. Eles desprezaram todos os princípios de leis internacionais e ainda assim foram considerados por muitos comentaristas políticos como muito perigosos para serem confrontados. Basta pesquisar e você irá descobrir que aquelas pessoas contra o confronto com Slobodan Milosevic ou Saddam Hussein sempre enfatizavam a quantidade enorme de poder e potencial para violência que esses homens possuíam. Digamos que a OTAN tivesse bombardeado as bases sérvias em Sarajevo, isso iria causar uma reação monstruosa que causaria uma intervenção russa junto à Belgrado, ocasionando uma reação em cadeia pelos Bálcãs, lavando a região de sangue e guerra. Da mesma forma, uma investida militar contra Saddam Hussein iria incitá-lo a saturar nossas tropas com armas químicas, explodir campos de petróleo, destruir Israel, inflamar a "rua árabe" e depor todos os governos amigáveis do Oriente Médio. Aqueles que ousaram tentar se livrar desses governos ameaçadores foram bombardeados com argumentos que diziam no fundo que eles não são apenas uma ameaça comum, mas uma ameaça mortal, com exércitos invencíveis. Em outras palavras, a contradição é uma faca de dois gumes. Então, parabéns a David Ignatius do Washington Post por sua coluna de sexta-feira, na qual ele reproduz dados coletados por uma publicação desconhecida de nome Nucleonics Week. O artigo conta que pode haver motivos para se pensar que "o estoque de urânio não enriquecido do Irã - matéria prima das bombas nucleares - parece ter certas 'impurezas' que 'poderiam causar falhas nas centrífugas' se os iranianos tentassem transformá-lo em armas". Entre outras coisas, isso deve explicar porque o Irã está negociando enviar seu urânio não enriquecido para outros países, como França e Rússia, para que ele seja enriquecido. Esta jogada, claro, seria compatível com o programa "pacífico", se alguém ainda acredita que é isso que a Republica Islâmica realmente quer. A teocracia fez de seu país tão retrógrado que o tornou inclusive vulnerável a sanções ao petróleo refinado. Diferente da vizinha e secular Turquia, que quase não tem petróleo, mas está à beira da qualificação, pelo menos econômica, para entrar na União Européia, o Irã está atrasado financeiramente, como se o país tivesse sido tomado por sádicos medievais. Então não me surpreenderia em nada se o regime que não tem qualquer respeito pela ciência nem qualquer senso crítico tivesse de fato arruinado sua possibilidade de adquirir armamento moderno. Um sistema em que quase nada funciona, exceto pelas forçar armadas e a polícia, está fadado, como a Coréia do Norte, a produzir um míssil aqui outro lá e algumas armas nucleares de menor poderio. Mas esses mísseis e armas nucleares supostamente menores ainda podem causar um grande estrago em alguns dos países vizinhos, além de desmoralizar o Tratado de Não Proliferação Nuclear e suas leis e tratados equivalentes. Portanto, se for verdade que o Irã não está próximo de uma "grande descoberta" como alguns de nós temiam, não seria este o momento de fazermos nossas deliberações serem ouvidas? Não seria este o melhor momento de desarmar os mulás? Não esqueça que o Irã adquiriu grande parte de sua matéria prima no mercado negro, comprando através de atravessadores e outras formas de fraude, às escondidas do mundo. Isso significa que seria muito mais difícil repor essas matérias primas, devido ao monitoramento das Nações Unidas, da Agência de Energia Atômica e vários serviços de inteligência. Parece lógico, então, que qualquer ruptura ou deslocamento que haja em alguma das plantas Iranianas já pode causar um atraso em todo o programa por bastante tempo. Enquanto isso, o tic tac do relógio interno da sociedade iraniana anuncia a chegada do fim da ditadura. Então de quem devemos ter medo? Eu nunca soube de qualquer discussão que envolvesse possíveis medidas contra o Teerã que não focassem obsessivamente nos resultados potencialmente calamitosos dessas ações. Israel ataca o Irã... bem, o resto você sabe. Os alvos estão muito dispersos e escondidos mesmo. Sabe como é... Aparentemente, nada pode ser feito sem piorar a situação. Mas nada pode ser pior do que o armamento nuclear de um estado messiânico e sem lei que quebrou todos os acordos que assinou, e só o fez para ganhar tempo. Neste caso, os presidentes George W. Bush, Barack Obama e muitos outros nunca deveriam ter dito que esse tipo de coisa era aceitável. Eles deveriam ter dito que havia algumas condições que as tornavam aceitáveis e dizer que condições eram essas. Quando se afirma uma coisa publicamente é bom poder provar. Deveríamos pelo menos pensar na idéia de, com o regime blefando e ganhando (talvez até roubando) tempo com as armas de destruição em massa, agora é o melhor momento de aumentar o custo desse tipo de infração, inibindo ou até sabotando sua preparação. Ou será que devemos esperar e lutar contra um inimigo com armas nucleares? Perguntar não ofende.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Alemães no sul do Brasil

A colonização alemã no sul do Brasil registrou no dia 25 de julho de 2004 os 180 anos do seu começo. As famílias que vieram das várias partes da Alemanha de então chegaram a atual São Leopoldo/RS em meio a uma intensa guerra ideológica e territorial. Uma guerra na qual as repúblicas platinas da Argentina e do Uruguai desafiavam simultaneamente a monarquia espanhola e o império luso-brasileiro. Os primeiros colonos alemães que foram assentados no Rio Grande do Sul vieram acima de tudo para cumprir uma função estratégica: reforçar as posições imperiais na região, assegurando assim a posse do antigo Continente de São Pedro nas mãos dos Braganças. Desembarcando em meio aos tiros Mal amainada a rivalidade dos dois impérios ibéricos, o espanhol e o português, na luta pelo controle das áreas platinas e rio-grandenses, acalmada pelo Tratado de Santo Ildefonso de 1777, uma nova sombra de ódios enturvou a incerta fronteira que separava os brasileiros dos castelhanos. Proclamada a independência Argentina em 1810, um regime republicano difundiu-se pelas duas margens do rio da Prata. O Brasil, ainda parte do Reino Unido, logo se envolveu nos tumultos provocados pela guerra ideológica desencadeada entre as monarquias absolutistas, representando o Antigo Regime, e os regimes republicanos de Buenos Aires e de Montevidéu que apontavam para o futuro da humanidade. De novo o Rio Grande do Sul, quando província do Império de D.Pedro I, viu-se centro de um cabo-de-guerra que de um lado era puxado pelas mãos conservadoras da monarquia absolutista, e do outro nas dos republicanos do Prata. Reproduzia-se nesta parte do mundo o mesmo conflito que se dava na Europa entre os interesses da reacionária Santa Aliança e as forças do liberalismo republicano emergente. Foi, pois, em meio a este cenário belicoso que os primeiros 39 imigrantes alemães desembarcaram no cais da antiga Feitoria do Linho Cânhamo, na atual São Leopoldo, no inverno de 1824, situada a pouco mais de 20 km de Porto Alegre, a capital da província Intenção antiga Diga-se que trazer colonos alemães ou italianos para o Brasil Meridional era antiga intenção do Conselho Ultramarino de Lisboa. Um despacho real de 19 de junho de 1729, lembrou a profª. Helga L.Picollo, já fazia menção em transladar para a fronteira sul um povo que não fosse castelhano, inglês, holandês ou francês, para afirmar a soberania da Corte Portuguesa sobre as vastas extensões de serras, coxilhas e planícies que iam do rio Uruguai até o rio da Prata. Intenção essa reafirmada por um outro decreto, este de D.João VI, datado de 16 de março de 1820, que em complemento a Lei da Abertura dos Portos de 1808, manifestava o desejo de abrir as fronteiras brasileiras à imigração estrangeira. Tal como os romanos, os portugueses sabiam que a única maneira efetiva de manter-se um território não era por meio de guarnições de soldados que podiam desertar a qualquer hora, mas sim ocupando-o com famílias de pequenos proprietários que fizessem dos acres ganhos coisa sua, pelos quais, se necessário, dariam não só o seu suor mas o seu sangue. A idéia de estimular os alemães a virem partiu da imperatriz D. Leopoldina, uma princesa germânica, e logo contou com apoio de D.Pedro I que recém sufocara as veleidades dos liberais brasileiros mandando fechar à força a constituinte de 1823, e impondo no seu lugar uma Carta outorgada redigida à feição dele e das suas posições pró-absolutistas. Soldados e lavradores Os colonos cumpririam um duplo papel: poderiam ser arregimentados pelas tropas imperiais que lutavam contra o republicano Gervásio Artigas e ao mesmo tempo garantir com seus lotes de terra a retaguarda do poder dos Braganças no Rio Grande do Sul. Podiam servir como soldados ou trabalharem como lavradores. Exemplo maior disso deu-se durante as Guerras Cisplatinas (1825-27) quando o doutor João Daniel Hillebrand (1800-1880), um médico de São Leopoldo formado em Hamburgo, na Alemanha, e que bem jovem lutara na batalha de Waterloo, arregimentou mais de 120 colonos como voluntários para , segundo ele, “derramar até o último pingo de sangue em defesa da nossa justa causa”. Era um número substantivo de gente, sabendo-se que no biênio de 1824-5 o total deles, nas onze levas em que vieram, alcançara a 1.027 imigrantes. Entre 1824 e 1830, ano em que se encerrou o subsídio à imigração, quase 6 mil alemães ( renanos, prussianos, mecklenburgueses, hanoverianos, pomeranos, suábios, bávaros, etc...) chegaram ao Rio Grande do Sul, concentrando-se por primeiro no eixo que vai de São Leopoldo à Santa Cruz do Sul. Tratavam-se de artesãos, funileiros, ferreiros, curtidores, marceneiros e carpinteiros. Poucos deles eram gente do campo propriamente dita, mas que levantaram as mãos aos céus em terem seus acres de terra que lhes permitiram, longe das exigências feudais ainda existentes nos ducados e baronatos de onde vieram anteriormente, serem homens e mulheres livres no Brasil. Muitas décadas depois do desembarque da primeira leva trazida pelo bergantim São Joaquim Protector, o jornalista e escritor Karl von Koseritz (1832-1890), um dos principais porta-vozes da imigração alemã, sintetizou a missão deles no Brasil dizendo: "O colono não emigrou somente para progredir economicamente, mas também para adquirir um chão próprio, e com ele uma nova pátria. Por este motivo, sua existência, nos bons e maus momentos, está ligada ao destino do país, que é a sua pátria e a pátria dos seus filhos”. Vieram em sua maioria de uma parte da Alemanha que pertencera a um império que desabara, o de Napoleão, mortalmente ferido em Waterloo em 1815, para fazer parte de um outro que estava em construção: o Império do Brasil. Bibliografia AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem à Província do Rio Grande do Sul (1858). Belo Horizonte: Itatiaia,1980. FLORES, Hilda Agnes H. Alemães na guerra dos Farrapos. Porto Alegre: EDIPUCRS,1995. HUNCHE, Carlos H. O biênio 1824/25 da imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação/DAC/SEC,1975. MÜLLER, Telmo L (0rg.). Imigração e colonização alemã. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980. LANDO, Aldair M. & BARROS, Eliane C. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Movimento,1976. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. 2 vols. Porto Alegre: Globo,1969.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Napoleão, um legado polêmico

Enquanto escritores franceses como Balzac, que ‘desejava fazer com a pena o que Napoleão fizeram com a espada’, e Stendhal que revelara aberta e incondicional admiração pelo imperador, outros homens de letras europeus se dividiam frente a presença histórica e o legado de Bonaparte. Mesmo tendo a Alemanha sido invadida pelas forças francesas, a partir de 1806, filósofos como Hegel e Nietzsche mantiveram uma posição de admiração para com ele. Já os escritores russos, os dois gigantes da literatura nacional, Tolstoi e Dostoievski, cujo país por igual se viu atacado por Napoleão, em 1812, manifestaram profunda hostilidade ao papel desempenhado pelo general-conquistador no concerto europeu. O destino a cavalo O rumor estridente do tropel dos destacamentos a cavalo, seguidos pelas botas da infantaria batendo cadenciadas nas pedras das ruas da até então pacata cidade alemã de Iena, na Turingia, obrigou o filósofo Hegel interromper seus estudos e ir até o balcão da janela da sua casa. Espantou-se. No exato momento, era o próprio Napoleão quem passava montado num magnífico animal acompanhado pelo seu estado-maior para ir acampar na periferia da cidade. Naquele instante do dia de 9 de outubro de 1806, às vésperas de mais uma vitória do imperador frente aos prussianos do rei Frederico Guilherme III, sentiu a história marchando: Bonaparte era “o destino do mundo a cavalo”. Entendeu-o como “o último estágio da história, de nosso mundo, de nossa época”. A causa dele era nobre: o imperador dos franceses vinha tomar de assalto a “Bastilha da Alemanha”, a Prússia feudal, autocrática e antiiluminista. Exemplo disto foi a disposição dele em sepultar naquele mesmo mês e ano o Sacro Império Romano-Germano, o Iº Reich dos alemães, uma relíquia medieval dos tempos carolíngios que durava há 900 anos e não tinha mais nenhum a função no mundo moderno. Uns anos depois, quando professor catedrático da Universidade de Berlim (entre 1818 e 1831), quando o império de Bonaparte já se desfizera, ainda assim ele não deixou de ditar aos seus alunos nas suas famosas Lições sobre a Filosofia da História Universal as observações sobre a magnitude da presença do general nos acontecimentos mundiais. Comparando-o a César, imaginou-o a um gigante com seus saltos “esmagando muitas flores inocentes, destruindo pela força muitas coisas’, indiferente aos sofrimentos que causava, visto que quando se processam os grandes deslocamentos os ‘indivíduos são sacrificados e abandonados”. Ainda que sua conduta pudesse estar submetida à censura moral ele era a encarnação viva de uma outra etapa da história universal, era o novo estado, produto do Iluminismo, modelando a sociedade ao seu gosto. Era o mar violento das paixões desencadeadas pela Revolução Francesa de 1789, invadindo a pacata planície da Europa feudal e beata. As batalhas que travou nada mais eram do que as manifestações da paixão, tudo a serviço da Razão despertada pelos acontecimentos dramáticos que ocorreram em Paris desde que o povo daquela capital tomara de assalto a fortaleza do rei no histórico Quatorze de Julho. Ação e reflexão Envolvido pelo cotidiano da administração e absorvido pela guerra, era certo que o imperador não tinha consciência plena disto. Ele era “ação pura”, cabendo à filosofia alemã, vizinha da França, fazer a reflexão necessária. Hegel é quem tirava as conseqüências mais profundas do impacto causado por Napoleão na Europa e no Mundo. Era um Prometeu imbuído de uma missão extraordinária e não poderia deixar-se afetar por sentimentos comuns nem desviar-se dos confrontos que redundassem em sacrifício e morte: o destino dele era mudar o rumo da História. O herói de Nietzsche No final daquele mesmo século, em 1884 o filósofo Nietzsche recebeu a incumbência de uma amiga alemã de Roma para que estabelecesse um roteiro cultural para uma jovem doutoranda Resa Von Schirnofer, durante a curta estadia dela no sul da França. Levou-a para os altos do Monte Boron de onde, com sorte, poderia avistar-se a ilha de Córsega. Chegou a querer propor uma travessia até Ajaccio, a cidade em que Napoleão nascera para ver de perto o berço daquele que mais fizera para “ a transformação do homem num novo ser”. A peregrinação à ilha selvagem e remota fazia algum tempo que estava nos planos dele com o intento de visualizar o cenário original daquele que veio para executar a “transvaloração de todos os valores”, exemplo mais extremado da “vontade de poder”. Para ele, Napoleão amava o poder como um artista, uma alma aristocrática que brotara do caos da Revolução de 1789 – primeira rebelião dos escravos nos tempos modernos - capaz de modelar o mundo ao seu gosto e poder. O seu espírito nobre e sua vontade férrea domara as paixões das massas ressentidas que explodira no Terror de 1793, canalizando-as para a consolidação de um Império Europeu. Numa sociedade dominada pela mediocridade filistéia que se contentava na apologia ao homem comum, ordinário, a personalidade gigantesca do imperador, o herói dos heróis, anunciava o super-homem, figura emblemática da Zukunftphilosophie, da “filosofia do futuro” da qual Nietzsche sentia-se o principal arauto. Percebeu-o como “o europeu do futuro”, o estadista que podia enxergar acima dos limites dos estados-nacionais elevando-se até uma concepção de Europa Unificada e que antecipara outras personalidades cosmopolitas que lhe seguiram as pegadas: como Goethe, Beethoven, Stendhal, Heine e Schopenhauer. Napoleão era alguém de entendia a sociedade apenas como um “alicerce e andaime” que o serviam para que ele pudesse se erguer “até a sua missão superior” e também a “uma existência superior”, como se fosse uma planta gigantesca ávida de sol que usa a floresta ao seu redor para melhor expandir sua ramagem (Além do Bem e do Mal, §256-258). O gigante sem alma Leon Tolstoi, todavia, no Guerra e Paz ( 9ª parte, cap.II) descreveu-o no mesmo espírito de Hegel. Um Napoleão marmóreo, indiferente aos sofrimentos que provocava. Quando da invasão da Rússia em junho de 1812, da margem do rio Vístula assistiu com seu óculo apoiado no ombro de um pajem os ulanos poloneses, conduzidos por um coronel temerário, morrerem tragados com suas montarias, a quem se agarravam nas crinas desesperados, pela fria correnteza. Ainda que se afogando em morte horrível, davam vivas ao general sem que isso arrancasse dele qualquer expressão de compaixão. Para Tolstoi, Napoleão não era grande mas simplesmente inumano. Quem teria sido o responsável por aquela imensa invasão do solo russo, a colossal invasão do Ocidente das estepes do Oriente? A quem apontar o dedo acusatório para todas aquelas desgraças que se seguiram, os massacres, os roubos, as pilhagens, os incêndios devastadores, as vidas destruídas e as demais humilhações que os homens se infringem durante uma a guerra, senão que para Napoleão? Estimulo ao direito ao crime Dostoievski, um outro escritor russo, percebeu o efeito causado por Napoleão por um outro ângulo. Não como o maléfico arquiteto da destruição do Império dos Czares mas acima de tudo como um perigoso exemplo para a juventude niilista. Um homem daquele porte ostensivamente se colocara acima do bem e do mal, seu código era o das águias. O personagem dele na sua famosa novela Crime e Castigo (3ª parte , cap.V), o jovem Rodion Raskólhnikov, estudante pobre e atormentado, imbuído da idéia de que o ser excepcional, e por conseguinte fora dos quadros da lei, poderia ousar tudo. Inclusive ter o Direito ao Crime, como expôs num artigo de um jornal de São Petersburgo. De certa forma, para ele, os legisladores do passado (Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão), por si só já eram algum tipo de criminoso na medida em que abruptamente anulavam todas as normas anteriores a eles, e nenhum deles se deteve quando foi preciso derramar sangue para fazer vingar o novo. Eles “destroem o presente em nome de qualquer coisa melhor”. Assim sendo, ainda que o vulgo muitas vezes os condene, no universo da subjetividade deles, num exame de consciência os homens de gênio, os grandes inovadores, se auto-absolvem. A violência que desencadearam com suas ações e medidas terminarão a longo prazo sendo vista como necessárias e construtivas, fazendo com que os rigores que eles se auto-permitiram, “de saltarem sobre o sangue”, se visse historicamente plenamente sacramentada. Percebendo-se um ser extraordinário, um Napoleão em escala menor, Raskólhnikov engendra um crime. Assaltar e matar uma velha usurária, “um piolho”, como a classificou, para roubar-lhe os bens e com isso ajudar a sua família. Mas não era somente isto que ele buscava. Tratava-se de um assassinato-tese. A grande prova era suportar com todas as forças as imagens do crime, o peso que a culpa cobrava do homicida. Para Raskólhnikov o homem excepcional não sentiria nada, crime algum o abalaria pois ele estava acima do bem e do mal. Para Dostoievski este fora o pior exemplo que o legado de Bonaparte deixava para a juventude em geral: a possibilidade da impossibilidade. O desejo de ação sem cuidado ou reparação moral de qualquer tipo. Todo o movimento revolucionário que tomou corpo na Rússia do século XIX de certo modo era para Dostoievski tributário do perigoso exemplo de Napoleão, fazendo com que qualquer jovem narodniki (integrante do movimento terrorista russo) se sentisse com possibilidade de mudar o mundo como Bonaparte fizera no seu tempo, derrubando tronos ou humilhando os reis e príncipes.